Atualizado em 30/04/2024 por Sylvia Leite
Da última janela do casarão onde morava, em Vila Rica, atual Ouro Preto, o poeta Tomás Antônio Gonzaga olhava rua abaixo e enxergava ao longe uma casa larga e avarandada. Nela, avistava uma adolescente de no máximo 16 anos1. Era Maria Doroteia Joaquina de Seixas Brandão, musa do poema Marília de Dirceu, de sua própria autoria, que acabou se transformando em um dos ícones da cidade. Gonzaga e Doroteia chegaram a marcar casamento, mas o noivado foi bruscamente interrompido e os dois nunca mais se encontraram.
O desfecho dramático deveu-se à prisão repentina do noivo. Tomás Antônio Gonzaga, que além de poeta era jurista e ativista político, foi um dos líderes da Inconfidêcia Mineira – a conspiração separatista que lutava para tornar Minas Gerais independente de Portugal e livrar sua população do excesso de impostos. Acusado de traição, foi preso em 1789 – ano em que se casaria com Dorotéa – e levado para a Fortaleza da Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, onde ficou detido por três anos. Ao final desse período, saiu da prisão, mas foi degredado para Moçambique, na África, que na época também era colônia de Portugal.
No exílio, Gonzaga casou-se com a filha de um traficante de escravos, com quem teve dois filhos. Morreu por lá, em 1810. Doroteia retirou-se para uma fazenda da família no município de Ituverava, de onde não saiu até a morte de seu pai, em 1815. Depois retornou à casa de Vila Rica, onde permaneceu até morrer, solteira, aos 85 anos de idade. Doroteia teria criado um menino, chamado Anacleto, que segundo alguns era seu filho mas, para outros, era um sobrinho, filho da irmã Emerenciana, que teria feito algumas manobras para esconder sua maternidade.
As liras imortais em homenagem a Marília de Dirceu
O poema Marília de Dirceu, inspirado nesse caso de amor frustrado entre Gonzaga e
Dorotéia, conta, em versos, a história de dois pastores de ovelhas. Marília é a musa inspiradora e Dirceu é o personagem narrador.
Na primeira parte, composta por 33 liras e publicado em Portugal no ano do degredo de Tomás Gonzaga, Dirceu exalta a beleza de Marília, com quem deseja ter uma vida simples e bucólica. O segundo livro, publicado sete anos depois, tem 38 liras e fala, em tom pessimista, da saudade que sente na solidão no presídio.
O sucesso das duas primeiras partes fez com que os editores portugueses acrescentassem uma terceira, provavelmente apócrifa, publicada em 1812, dois anos após a morte de Gonzaga. Nele, Dirceu expõe a saudade da amada no exílio.
De título de livro a nome de cidade
A obra do poeta inconfidente ganhou tamanha projeção que Minas Gerais tem hoje um município denominado Marília, em referência à sua personagem. E por todo estado é comum que se encontrem ruas, instituições e estabelecimentos comerciais – como lojas, pousadas e restaurantes – batizados em homenagem ao livro ou a seus personagens.
Mas a repercussão de ‘Marília de Dirceu’ não alcançou apenas os mineiros. Por causa dessa obra, importantes escritores e críticos classificaram Gonzaga como o mais importante poeta árcade do Brasil. Machado de Asis, por exemplo, comparou a popularidade de Gonzaga à de Basílio da Gama, dizendo que ‘ninguém deixa de ter lido ao menos uma vez o livro do Inconfidente’, e acrescentando ainda que ‘muitos de seus versos correm de cor’.
Manuel Bandeira afirmou em seu livro “Apresentação da poesia brasileira”, que ‘Marília de Dirceu’ ‘tornou-se desde logo a lírica amorosa mais popular da literatura de língua portuguesa e nenhum
, a não ser ‘Os lusíadas’, tem tido tão numerosas edições”.
Uma das homenagens mais significativas ocorreu em 1962, quando os Correios do Brasil decidiram incluir Marília em uma série de selos que reunia mulheres ilustres, fazendo a personagem literária ocupar um lugar de honra junto a personagens reais como Ana Neri e Anita Garibaldi.
Quem foi Marília de Dirceu?
Até aqui contamos a versão oficial do ‘mito’ Marília da Dirceu, que relaciona Doroteia com Marília e sua relação com Gonzaga ao romance literário. Mas apesar do noivado e seu desfecho terem acontecido de fato, há quem suspeite que Marília não era um pseudônimo de Dorotéia, mas uma figura simbólica usada por Gonzaga para representar genericamente a mulher amada e que podia estar relacionada não apenas a ela, mas a diferentes pessoas, em distintos momentos.
Há, ainda, uma terceira tese, defendida pelo historiador Tarquínio de Oliveira – estudioso da obra de Gonzaga –, segundo a qual a personagem Marília estaria associada a Maria Joaquina Anselma de Figueiredo, uma abastada viúva que teria sido amante de Gonzaga, e seria a causa de sua inimizade com o governador de Vila Rica, Luís Cunha Meneses. De acordo com Oliveira, Maria Joaquina seria não apenas a ‘Marília’, mas também a personagem ‘Nise’ do livro Cartas Chilenas, lançado no ano da prisão de Gonzaga.
A memória de Marília Dorotéia
As teses que contestam a conexão entre Marília e Doroteia são cada vez mais conhecidas dos mineiros, dos amantes da literatura e até de quem visita Ouro Preto. É possível que seus autores tenham razão e não se descarta a hipótese de que uma ou outra dessas suposições possam um dia ser comprovadas. Mas, provavelmente, nada disso destruirá o mito que encanta os visitantes e enche de orgulho os nativos da antiga Vila Rica.
No imaginário local, Marília e Dorotéia continuam se encontrando em vários pontos da cidade. A começar pelo casarão onde viveu Tomás Antônio Gonzaga, hoje ocupado por setores da Secretaria de Turismo e por um museu. Conta o mito que, de sua janela, ele não apenas admirava a amada à distância, como já foi fal como pedia a uma vizinha que levasse bilhetes para ela.
As duas ressurgem juntas, também, na Ponte Antônio Dias, apelidada de Ponte dos Suspiros, por ser o lugar onde, supostamente, Dorotéia recebia e lia os escritos de Gonzaga. E voltam a se mesclar na Praça do Chafariz batizado com o nome de Marília, por estar próximo à casa onde Doroteia morava, hoje transformada na Escola Marília de Dirceu.
Passeando pela cidade, é possível encontrar praças e igrejas onde Doroteia e Gonzaga, ou melhor, Marília e Dirceu estiveram juntos. E para completar o passeio, é importante visitar o Museu da Inconfidência, onde os dois descansam lado a lado.12
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, matérias que nos remetem à vida e à obra de escritores: Cordisburgo / Ilumiara Jaúna / Casa do Rio Vermelho / Cartagena / Havana / Dublin
- 2 Leia, também, outras matérias sobre de Minas Gerais: Congonhas /Cordisburgo / Sagarana / Serra das Araras / Paracatu / Gruta do Salitre / Gruta de Maquiné / Morrinhos / Igreja da Pampulha / Marília de Dirceu / Curralinho / Vila de Biribiri / Dez lugares que nos remetem à Literatura de Guimarães Rosa
Para saber mais
- Você pode encontrar mais informações sobre essa cidade histórica de Minas Gerais na postagem O que fazer em Ouro Preto, do blog Vou no Mundo
Referências
- Site Oficial Ouro Preto
Livros:
- Marília de Dirceu - Tomás Antônio Gonzaga
Para saber mais
- Para informações completas sobre Ouro Preto, leia matéria do blog Uma Senhora Viagem
Adoro esse tema. Paixão quase igual a de Dirceu por Marilia, por tudo o que ele representa de cívico e de romance. Obrigado Sylvia
Eu que agradeço, Gilberto. Pela leitura e pelo comentário.
Não conhecia a fundo a história de Marília de Dirceu, obrigada por nós proporcionar o texto acima. Parabéns. Divulguei com amigos
Eu que agradeço. Pelo comentário e pela divulgação. Da próxima vez deixe seu nome, ok?
Excelente, apesar das visitas que já fiz, desconhecia esses detalhes. Parabéns Silvinha.
Bom saber que a matéria acrescentou alguma coisa. Obrigada pelo comentário.
Que legal conhecer tão a fundo a história de Marília de Dirceu, Ainda não conheço a cidade de ouro preto, mas tenho certeza que vou amar por todas as histórias e romance.
São tão famosos os versos dedicados a Marília que sei alguns de cor.
Mas existe outra face da obra de Gonzaga muito importante. Uma veia cortante, uma ironia que influenciou vários outros autores. Isso temos em Cartas chilenas. Vale um comentário.
Muito legal, Helô. Eu gostaria de saber alguns versos de cor, mas minha memória é horrível. Se eu não ler ou ouvir todo dia, não gravo rsrsrs Quanto às Cartas Chilenas, você tem toda razão. Vale o comentário que você fez e vale uma matéria só pra elas. Quem sabe não rola? Fique ligada! Beijo.
Vai amar com certeza. Pelas histórias e pela Arquitetura. Não deixe de ir.
Perfeito este conteudo sobre Marilia de Dirceu com romance e poesia. Interessante que vemos várias ruas com o nome Marilia de Dirceu mas até então não sabia quem era. Foi bom ver neste post. Abraços
Que bom que você gosotu. Toda quinta tem matéria nova no blog. Volte sempre.
Que leitura magnífica… Cada vez mais me apaixono por Ouro Preto … Não vejo a hora de ir viajar para esse lugar tão encantador…
Você não vai se arrepender. Ouro preto é um lugar especial. Aqui no blog tem matéria também sobre São Bartolomeu, que fica na mesma região.