Dublin: a cidade que respira Literatura

Tempo de Leitura: 7 minutos

Atualizado em 29/04/2024 por Sylvia Leite

Biblioteca do Trinnity College - Foto Pixabay - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAQualquer roteiro de visita à capital irlandesa, Dublin, está repleta de atrativos instigantes, que vão dos badalados pubs até a fábrica da lendária cerveja Guinness, sem falar na música popular de influência Celta que permeia boa parte da programação. Apesar de toda essa riqueza cultural, o que realmente impressiona é o quanto a cidade está impregnada pela literatura.

Cada rua, bairro, praça ou edifício histórico já foi, direta ou indiretamente, palco de situações vividas por grandes escritores ou, no sentido inverso, acabou tornando-se cenário das respectivas obras. James Joyce, autor do festejado romance Ulysses, tinha orgulho de dizer que se algum dia a cidade fosse destruída, a reconstrução poderia ser feita a partir de seus livros.

Bortão da Biblioteca do Trinnity College - Foto Sylvia Leite -- BLOG LUGARES DE MEMÓRIACertamente a interação de escritores com sua cidade natal não é exclusividade dos irlandeses, mas em Dublin esse elo ganha contornos específicos seja pela paixão que alguns deles demonstraram em relação à cidade e à cultura local, seja porque há um empenho na preservação de sua memória tanto da parte da população como das autoridades. Prova disso são os museus dedicados à Literatura e os lugares públicos batizados com nomes de escritores.

Muito além da percepção dos visitantes, a relação da capital irlandesa com a Literatura é reconhecida de forma institucional. Dublin foi a quarta a receber o título de Cidade Patrimônio Mundial de Literatura, concedido pela Unesco, e ocupa o segundo lugar – atrás apenas de Paris – em número de ganhadores do Prêmio Nobel de Literatura, com três premiados: William Butler Yeats (1923), George Bernard Shaw (1925) e Samuel Beckett (1969).Dublin's Writer Museum - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

Dublin’s Writer Museum

A vida e a obra desses e de outros importantes escritores é contada com fotos, objetos, documentos e exemplares históricos no Museu dos Escritores de Dublin (Dublin’s Writer Museum). São cerca de 300 anos de história da literatura irlandesa reunidos em uma mansão de estilo georgiano que por si só já valeria o esforço de ir até lá.

Para boa parte dos visitantes, é uma surpresa descobrir que nomes famosos como Oscar Wilde, Bernard Shaw e Samuel Beckett são irlandeses e não ingleses como supunham. Outras surpresas vêm do acervo, que nos faz voltar à infância com As Viagens de Guliver, de Jonathan Swift, e apresenta raridades como um exemplar da primeira edição de Drácula, de Bram Stoker, a máquina de escrever de James Joyce, as impressões digitais de Brendan Behan ou o telefone de Samuel Beckett.

Museu Bernard Shaw - Foto de Sylvia Leite - - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAOs escritores James Joyce e Bernard Shaw, além de estarem representados no Museu dos Escritores, ganharam museus particulares. O de Shaw é um museu casa e nele se pode ter uma ideia de como vivia o escritor com sua família. Já o de Joyce é uma espécie de centro cultural , onde estão reunidos exemplares de suas obras e várias outras referências.

Ao longo da cidade, encontram-se também monumentos a personagens da literatura, como as pontes James Joyce e Samuel Beckett, as estátuas de Oscar Wilde e do próprio Joyce, entre outros.

As bibliotecas de Dublin

Para fazer jus a tantos escritores famosos – ou mesmo para garantir a sua existência – Dublin está repleta de bibliotecas. Pelo menos três não podem deixar de ser visitadas, tanto pelo que são como pelo que representam.

A do Trinity College é a maior de toda Irlanda. Tem uma arquitetura de tirar o fôlego, tanto que foi eleita, em 2015, em votação online promovida pelo site Architecture and Design, a biblioteca mais bonita do mundo.POnte em Dublin - Foto Pixabay - - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

De quebra, abriga a harpa mais antiga do país e o famoso Livro de Kells (Book of Kells) – um manuscrito cristão que contém os quatro evangelhos do Novo Testamento – e é considerado por especialistas como um dos mais importantes vestígios da arte religiosa medieval.

Com tudo isso, é provável que tenha sido frequentada pela maioria dos grandes escritores irlandeses. Sabe-se da presença frequente de pelo menos um deles, Oscar Wilde, que foi aluno do Trinity College .

Pouco divulgada, mas não menos interessante é a Chester Beatty Library, onde encontra-se uma extensa coleção de pergaminhos com inúmeras canções egípcias de amor. O acervo dessa biblioteca está organizado em duas coleções – de tradições sagradas e de tradições artísticas – que incluem desde manuscritos até pinturas das mais diversas origens.

 Dublin - Foto Pixabay - - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAOutra que precisa ser vista é a Biblioteca Nacional da Irlanda, criada em 1890 para abrigar o acervo bibliográfico da Sociedade Real de Dublin.

Além de estar instalada em um prédio monumental, que vale a pena conhecer, essa biblioteca é palco de um dos dezoito episódios do romance Ulysses, de James Joyce. Na cena, o protagonista Leopold Bloom vai ao local para procurar um anúncio de jornal publicado no ano anterior.

A Literatura está nos pubs

EScultura em Dublin- Foto Pixabay -BLOG LUGARES DE MEMÓRIAMas para encontrar literatura viva é preciso procurar, entre os inúmeros pubs, aqueles que têm sessões de storytelling, com atores narrando trechos de livros ou episódios vividos por escritores.

Outra opção é embarcar no Literary Pub Crawl – um circuito a pé ao longo de aproximadamente 1,6 km, com duração de quase três horas, que faz rápidas visitas a diversos pubs. No percurso, atores profissionais lêem e interpretam trechos de obras dos escritores mais conhecidos ou encenam episódios ora de suas ficções ora de suas vidas pessoais, sempre temperados pelo famoso humor irlandês.

Os pubs incluídos no roteiro estão diretamente relacionados à literatura – alguns por terem sido frequentados por escritores, outros por terem sido citados em suas obras. Há também os que fazem parte do circuito pelas duas Atores do Literary Pub Crawl - Foto Divulgação - - BLOG LUGARES DE MEMÓRIArazões. O ponto de partida é o The Duke, pub que foi criado há quase dois séculos e recebia constantes visitas de James Joyce.

Apesar da música e do ruído característico desse tipo de estabelecimento, os pubs são vistos por muitos irlandeses como locais de reflexão, por isso foram e ainda são tão procurados pelos escritores. Para esse tipo de frequentador, quanto menos barulho melhor, para permitir a introspecção ou uma conversa mais aprofundada.

Talvez um dos que melhor ofereça esse ambiente propício à reflexão e à troca de ideias seja o Davy Byrne’s. O pub parece ter sido o preferido do dramaturgo Samuel Beckett que, segundo contam, era avesso à invasão de privacidade e ao barulho excessivo de alguns bares da cidade.

Pub em Dublin - Foto Sylvia - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAJames Joyce também foi frequentador assíduo e acabou tornando-se amigo de Davy, o proprietário. Quando escreveu Ulysses, usou o pub como cenário do episódio em que o protagonista Leopold Bloom relembra os primeiros tempos de seu casamento e reflete sobre o quanto a relação entre ele e a mulher, Molly, se deteriorou.

O Bloomsday

Para os que não leram Ulysses, deve ter ficado uma certa curiosidade provocada pela citação de alguns episódios. Se isso aconteceu, está na hora de preencher a lacuna. Ulysses é um romance baseado na Odisseia, de Homero, mas enquanto a obra inspiradora abrange um intervalo de alguns anos, a de Joyce leva apenas 18 horas para se desenrolar, percorrendo um dia e uma madrugada na vida do protagonista Leopold Bloom. São 18 episódios e cada um deles equivale a uma hora.

Decoração externa de Pub - Foto Pixabay - - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAA história se passa em Dublin, no dia 16 de junho de 1904, e os lugares visitados pelo personagem principal existem até hoje, o que permite facilmente a sua reconstituição. E isso é feito anualmente em uma comemoração festiva batizada de Bloomsday, em referência ao personagem Leopold Bloom.

Para participar de um Bloomsday não é preciso ir à Irlanda, porque a festa já se espalhou pelo mundo inteiro. Em São Paulo, por exemplo, a comemoração é organizada anualmente pelo pub Finnegan’s. Mas quem visita Dublin pode ter uma experiência mais viva, passando pelos mesmos locais por que passou o Mr. Bloom.

A boa notícia é que isso não precisa ser feito no mês da comemoração. Em praticamente qualquer época do ano, o James Joyce Centre realiza um tour que, embora não seja festivo como o do Bloomsday, também reconstitui oThe Temple Bar - Foto Pixabay - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA trajeto percorrido por Mr. Bloom naquele 16 de junho.

A preservação de uma cultura

Todos os grandes escritores irlandeses escreveram em inglês, – a língua do colonizador – porque o irlandês praticamente deixou de existir. Mesmo assim, fizeram obras que valorizam os costumes e o modo de vida locais, contribuindo de maneira decisiva para a preservação da identidade do país, ameaçada de dissolução por cerca de 700 anos de domínio inglês.

Alguns autores, como Willian Butler Yeats, foram ainda mais longe: lideraram movimentos em favor da valorização da cultura popular, a partir do resgate da tradição oral, da mitologia, do folclore, das lendas e da religiosidade.

A música – com seus conteúdos de protesto, que ora tomam forma de lamento e outras vezes assumem tons humorísticos ou picantes – foi provavelmente um dos veículos dessa preservação e também da construção de uma literatura forte e autêntica.

O próprio Joyce, que muitos dizem ter esnobado os movimentos de resgate, acabou contribuindo para o milagre que foi a preservação da cultura de um povo sem língua. Isso se deve, em parte, ao fato dele ter registrado em suas obras o perfil e os costumes do cidadão Irlandês mas, principalmente, ao sucesso de sua obra, que projetou a literatura irlandesa internacionalmente e, com ela, sua cultura e identidade. 1

Notas

Dublin – Irlanda – Europa

Texto

Fotos

  • Sylvia Leite (2, 3,4,9)
  • Pixabay (1,5,6,7,10,11)
  • Divulgação (8)

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18 Comentários
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Val Cantanhede
5 anos atrás

Que riqueza de detalhes em seu texto, Sylvinha! Esse itinerário em que a literatura e a música estão presentes é um estímulo a mais para conhecer a Irlanda.

Unknown
5 anos atrás

Oi Sylvinha,
Você sabe como eu gosto de uma cervejinha. Lendo então sobre as entranhas da querida De ela fica com aquele sabor especial. Tim Tim.

Unknown
5 anos atrás

Dublin

Anônimo
Anônimo
5 anos atrás

Meu Deus quem me dera passar pelo menos um mês em Dublin. Preciso antes resussitar meu marido Spike que sonhava fazer isso. Para ele muita musica, cerveja e conversa fiada nos pubs. Para min musica , literatura e um grande senso de humor e de história . Obrigado Sylvia por reviver meus sonhos.
Augusta Leite Campos

Unknown
5 anos atrás

Tentei ler Ulysses, li vários textos e até um livro sobre Ulysses, mas já disse um litarato: "Ulysses é um livro a ser dissecado", este seu texto, Sylvia,do Lugaresdememoria.com.br, é o estímulo que me motiva a quando for a Dublin levar Ulysses dissecado na memória e dizer sim. Sim. Eu digo sim.

sonia pedrosa cury
5 anos atrás

Que delícia….país incrível! Texto maravlhoso! Valeu, Sylvinha!

Elizete Cordeiro de Miranda
5 anos atrás

Que maravilha! Com tantos detalhes fica tudo muito mais claro

Letícia
Letícia
4 anos atrás

Amei seu post, Sylvia! Sempre tive vontade de visitar a Irlanda e, pricipalmente, Dublin. Seu post me fez ver a cidade de outra maneira! Obrigada! 🙂

Angela Beatriz Camara Martins
4 anos atrás

J[a era encantada com Dublin. Fiquei ainda mais depois que li esse ótimo post! Uma cidade que respira literatura é inspiradora. Já com muita vontade de conhecer!

Iara
Iara
2 anos atrás

Que riqueza é Dublin, com tanta cultura. anao sabianque era uma cidade que tao ligada à Literatura.