Congonhas: um reduto de fé e de arte barroca

Tempo de Leitura: 7 minutos

Atualizado em 16/10/2024 por Sylvia Leite

Congonhas - Foto de Marcelo Prates - BLOG LUGARES DE MEMÓRIALá no alto da colina, onde fica o Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, os 12 profetas esculpidos em
pedra sabão por Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho parecem fazer uma intermediação entre a realidade terrena e as esferas celestes. Para chegar até a igreja, é preciso passar por eles e, ao admirá-los, já começamos a experimentar a serenidade que costuma nos envolver quando entramos nos templos. Não se sabe se por coincidência ou por ‘artimanha divina’, os arredores já foram cobertos por uma erva medicinal que tem o poder de acalmar e cujo nome em tupi – ‘congõi’ –, significa ‘o que alimenta’ e acabou derivando para Congonhas, que batiza a cidade.

A dramaticidade das esculturas, aliadas à sua localização estratégica, na subida de acesso ao templo, fazem delas o mais famoso conjunto de imagens barrocas do Brasil e talvez um dos mais conhecidos do mundo. Mas não é o único. No próprio santuário, num espaço denominado Jardim dos Passos, existem outras 66 peças, também em tamanho natural, e distribuídas em capelas que compõem as estações de uma Via Sacra, isto é, os passos da Paixão de Cristo. São imagens esculpidas em cedro, todas elas também atribuídas a , ou a seus auxiliares, e pintadas pelo Mestre Ataíde. Segundo um dos estudiosos do Barroco Mineiro, o francês Germain Bazin, esses dois conjuntos, que reúnem 78 esculturas, estão entre os mais belos da Terra.

A força da fé

Congonhas - Imagem de FredWanderley em Pixabay - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAA basílica que abriga esses dois conjuntos de imagens nasceu da devoção de um homem – Feliciano Mendes – que contraiu uma doença grave no trabalho do garimpo. Além de doar toda a sua fortuna em ouro para a construção da igreja, o minerador perambulou de porta em porta, junto com um escravo, pedindo doações para completar a quantia necessária à execução da obra.

Conta-se que meses antes do início da construção da igreja, ele fincou uma cruz na colina onde hoje se encontra a basílica, fez ali um pequeno oratório e ficou vivendo no local como ermitão. Para alguns, sua devoção deve-se ao fato de ter se curado. Outros não falam em cura e dizem que ele estava em busca da salvação da alma.

Da colocação da cruz, em 1756 , até o período em que o Aleijadinho começou a esculpir os 12 profetas e as 66 imagens da Paixão, passaram-se cerca de 40 anos. Feliciano alcançou o início do funcionamento da igreja, mas não viveu para conhecer as obras de arte que dariam fama a Congonhas. Não pôde presenciar, também, o  tamanho da fé que sua obra foi capaz de movimentar, e que foi materializada, ao longo do tempo, no impressionante Salão de Ex-votos1 da basílica, que reúne as imagens ofertadas ao santo em agradecimento por graças recebidas.

Uma homenagem aos inconfidentes?Congonhas - Foto de Marcelo Prates - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

A importância artística que se deu aos ‘profetas do aleijadinho’ e às imagens da Via Sacra fez com que essas obras fossem estudadas por especialistas. As interpretações são inúmeras, divergentes, e de várias naturezas. Parte dos estudiosos, no entanto, enxergam nos dois conjuntos traços de manifestações políticas.

Gilberto Freyre, por exemplo, acreditava que as expressões grotescas dos soldados tinham o propósito de denunciar a opressão exercida pelos
mais fortes sobre os mais vulneráveis – no período colonial brasileiro: seja dos portugueses sobre os nativos, seja dos brancos sobre os negros.

Já a artista plástica Marilusa Moreira Vasconcelos, autora do livro ‘Confidências de um inconfidente’*,  acredita que os 12 profetas foram inspirados nos principais integrantes do movimento político batizado como Inconfidência Mineira. Ela acredita, ainda, que a caracterização dos profetas, seja por meio de semblantes, gestos, ou mesmo de posicionamento, revelam a inconformação do Aleijadinho com o desfecho do
movimento.

Congonhas é Patrimônio da Humanidade

Congonhas - Foto de Marcelo Prates - BLOG LUGARES DE MEMÓRIATanto o santuário, como o Jardim dos Passos estão tombados pelo Iphan desde 1939 e foram reconhecidos pela Unesco como Patrimônio Mundial da Humanidade, em 1985. Incluem-se no tombamento as ruas do entorno que preservam a arquitetura característica do período colonial. Um dos pontos mais interessantes desses arredores é o Beco dos Canudos, formado por pequenas casas contíguas que já foram usadas para pouso dos romeiros e hoje funcionam como um mercado de artesanato.

Na esteira dos tombamentos, foi criado o Museu de Congonhas – o primeiro ‘museu sítio’ do Brasil, voltado para levantar e reunir informações históricas e contextuais sobre o Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, com foco tanto nos aspectos artísticos e arquitetônicos do complexo, como na devoção ao santo.

Outra atribuição do museu é monitorar o estado de conservação do conjunto arquitetônico e artístico de Bom Jesus dos Matosinhos e promover estudos sobre a arte barroca e a utilização artística da pedra-
sabão.

A história fora da basílica

Congonhas - Foto Google no site iPatrimonio - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAPor mais difícil que seja sair do complexo da basílica, não se pode deixar de conhecer os outros encantos da cidade, a começar pela Igreja do Rosário, a mais antiga de Congonhas. É interessante contrapor a grandiosidade da basílica com a singeleza dessa igreja, que na verdade é uma capela construída pelos escravizados dos primeiros mineradores e três deles deixaram ali os seus nomes gravados: João, Maurício e Januário. A capelinha abriga várias imagens entre as quais se destacam as dos santos negros São Benedito e Santa Efigênia.

Congonhas tem, ainda, outras igrejas, que também merecem ser visitadas. É o caso da Matriz de São José Operário, que tem construção neoclássica, com torres arredondadas e em seu interior sobressaem colunas toscanas, incomuns nas igrejas de Minas Gerais. Além disso, vale observar a pintura do forro que, entre outras cenas, retrata São José ensinando o Menino jesus a rezar. Já na Matriz de Nossa Senhora da Conceição encontra-se uma das maiores naves de Minas Gerais e seu frontispício foi esculpido pelo Aleijadinho.

De fé católica a mediunidade

Museu da Imagem e Memória de Congonhas - Foto PHistorias em Wikimedia- BLOG LUGARES DE MEMÓRIAQuem vê tantas igrejas e tantas obras de arte de cunho religioso não imagina que a mesma Congonhas, durante os
anos 1960, ficou famosa pelas curas realizadas por um médium – atividade própria do Espiritismo. O funcionário público José Pedro de Freitas, mais conhecido como Zé Arigó, realizava cirurgias espirituais e dizia fazer isso incorporado com o espírito do médico alemão Dr Fritz, que morreu durante a Primeira Guerra Mundial.

Mesmo sendo católico e não tendo recebido apoio da Igreja, Zé Arigó montou uma clínica onde atendia gratuitamente cerca de duzentas pessoas por dia, vindas de toda parte. Ele chegou a ser preso por exercício ilegal da medicina, mas as curas que realizava eram cada vez mais respeitadas em todo o mundo. Consta nas biografias de Arigó que os médicos norte-americanos Laurence John e P. Aile Breveter, da William Benk Psychic Foundation vieram ao Brasil especialmente para estudá-lo e chegaram à conclusão de que 95 por cento de seus diagnósticos eram corretos e suas práticas não tinham qualquer teor de ilusionismo ou feitiçaria.

A história de Zé Arigó foi contada em uma grande exposição que tomou todas as salas do Museu da Imagem e Memória, hoje transformada em mostra permanente e reduzida a uma uma das salas da instituição. O museu tem como foco a história de Congonhas e de seus habitantes e conserva essa memória por meio de fotos e objetos.

O Centro Cultural Romaria

Centro Cultural da Romaria em Congonhas - Foto Rodrigo Gouvea Divulgação - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAAlém do Museu da Imagem e Memória e do Museu de Congonhas, a cidade, com aproximadamente 50 mil habitantes, tem ainda outra importante instituição de memória – o Centro Cultural Romaria, recentemente restaurado e integrado ao Parque Natural Municipal da Romaria e ao Teatro Municipal Dom Silvério, ambos em obras.

O centro funciona em um prédio histórico da década de 1930 que até os anos 1960 era usado como hospedaria para romeiros. Depois foi vendido e parcialmente demolido, restando apenas o portal. O resgate e a restauração foram feitos pelo governo de Minas, com verbas do Iphan. Além dos espaços e equipamentos para eventos e cursos, o Centro Cultural Romaria abriga, ainda, o Museu de Mineralogia e Arte Sacra e um restaurante.

A noiva da Fundação

Vista de Congonhas_do_Campo_- Foto de Leclercq em Wikimedia - BLOG LUGARES DE MEMORIAComo toda pequena cidade, especialmente as consideradas históricas, Congonhas não poderia deixar de ter suas lendas. E a mais conhecida delas é a Lenda da Noiva, que, como não poderia deixar de ser, envolve o Santuário de Bom Jesus do Matosinhos.

Conta essa lenda que um certo casal havia feito todos os preparativos para uma grande cerimônia de casamento que aconteceria na basílica. O noivo já aguardava no altar quando recebeu a notícia de que o carro que transportava a noiva capotou e ninguém sobreviveu.

Sem saber o que fazer, o noivo foi viver no seminário e a noiva, inconformada, passou a vagar nos corredores do prédio com o buquê nas mãos. Hoje, o local abriga a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (Fafic), mais conhecido como Fundação.2

Notas

Congonhas – Minhas Gerais – Brasil – América do Sul

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Sidney Jones de Santana Menezes
Sidney Jones de Santana Menezes
3 anos atrás

Para quem quando ouvia algo sobre Congonhas, apenas vinculava a um aeroporto por força da vida profissional, excelente Silvinha..

Augusta Leite Campos
Augusta Leite Campos
3 anos atrás

Incrivelmente bem escrito. Li sobre os Passos da Paixão de Cristo de Congonhas e fiz minha prática lá num curso de Guia de Turismo da América Latina. Fiquei na ocasião muito emocionada com tanta perfeição e beleza. Obrigado Sylvia por me fazer reviver a experiência.

Deyse
Deyse
3 anos atrás

Congonhas é uma cidade linda e encantadora, por sua história, monumentos e outros encantos turísticos. Amei seu texto.

hebe
hebe
3 anos atrás

Congonhas está muito na minha lista de cidades para visitar em Minas, realmente a cidade é um reduto de fé e arte barroca. Exatamente por isso me encanta tanto.