Atualizado em 16/10/2024 por Sylvia Leite
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce! O verso de Fernando Pessoa, que abre a segunda parte do seu poema Mar Portuguez, foi recitado pelo escritor Ariano Suassuna, depois de alguns minutos de silêncio, quando ele viu, pela primeira vez, a Ilumiara Jaúna – uma espécie de santuário que está sendo construído na Fazenda Carnaúba, em Taperoá, no sertão da Paraíba, inspirado nas inscrições rupestres da Pedra do Ingá 1
A Ilumiara foi a missão duplamente deixada pelo escritor para seu filho, o artista plástico Manuel Dantas Suassuna: uma vez na vida, outra na literatura. A entrega do bastão veio na forma de um simples pedido: que o filho encontrasse uma pedra parecida com a do Ingá.
Questionado sobre o motivo da incumbência, o pai teria dito mais ou menos o seguinte: “no romance que eu estou escrevendo tem um personagem baseado em mim, que tem um discípulo baseado em você, e eles vão fazer uma releitura das inscrições do Ingá.” Esse monumento, tanto no livro como na vida, seria batizado como Ilumiara Jaúna.
Dantas – como é conhecido o artista Manuel Dantas Suassuna – andou depressa e ainda teve tempo de compartilhar com o pai tanto o projeto como a materialização de seus primeiros traços. A visão da Ilumiara nascente impactou o escritor a ponto de deixá-lo uma noite em claro e de fazê-lo repaginar o livro inteiro.
Depois de se deparar com os primeiros resultados do trabalho de Dantas, Ariano aumentou a presença e a importância da Ilumiara no enredo do romance fazendo com que um se confundisse com o outro – senão em tudo, pelo menos na missão de reunir e sintetizar vida e obra, tanto dele próprio como do seu personagem principal.
Mas a onça Caetana 2 estava à espreita e deu o bote de surpresa, conduzindo o inventor de toda essa história ao encantamento 3. Para nossa sorte, tanto o livro como a Ilumiara já haviam nascido e seguiram adiante. O livro foi lançado postumamente sob o título “O romance de Dom Pantero no palco dos pecadores”, em edição coordenada por Carlos Newton Júnior, um dos maiores conhecedores de sua obra. A Ilumiara Jaúna segue em construção, talvez para sempre – porque seu caráter é interminável -, sob o comando do filho Dantas, com o apoio e a cumplicidade de um primo que tem quase o mesmo nome: o advogado Manuel Dantas Vilar, o Dantinhas, que conhece profundamente a obra de Ariano.
Ilumiara: diversos lugares e múltiplos sentidos
Definir ilumiara é coisa muito difícil talvez porque seu conceito seja mesmo de indefinição, de mobilidade e de duplo ou até múltiplos sentidos, mas Carlos Newton consegue chegar a um termo: diz que o escritor usava a palavra ilumiara tanto para “se referir a ‘anfiteatros’ formados por pedras insculpidas e ou pintadas que os primeiros habitantes do Brasil provavelmente usavam como locais de culto”, como a conjuntos artísticos e a “lugares que pudessem ser vistos como símbolos da força criadora de um povo ou espaços de celebração da sua cultura”.
No romance, e também na vida, a Ilumiara Jaúna se confunde com a obra de Ariano e estabelece diálogo com outros quatro lugares, também chamados ilumiaras, que se encontram em diferentes estágios de construção.
A Zumbi e a Pedra do Reino são as mais antigas e foram criadas por Ariano nas duas vezes em que ele exerceu o cargo de Secretário da Cultura de Pernambuco. A Ilumiara Zumbi, da década de 1980, é sede do famoso Maracatu Piaba de Ouro, do mestre Salustiano. Fica em Olinda, no bairro Cidade Tabajara, e sua praça em forma de meia lua é palco de eventos folclóricos e de cultura popular.
Já a Ilumiara Pedra do Reino 4foi erguida no sertão, na década de 1990. No local, duas enormes pedras naturais trazem a marca de um episódio sangrento da história de Pernambuco – o sacrifício de dezenas de crentes em um movimento profético que acreditava na volta do rei português Dom Sebastião, desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir, na África, em 1580. O sebastianismo, como era chamado esse movimento, inspirou diversas obras literárias, entre as quais o Romance d’A Pedra do Reino, de Ariano. Fizeram parte do projeto da Ilumiara Pedra do Reino a elaboração de esculturas gigantescas em granito assinados pelo artista popular Arnaldo Barbosa – que representam santos e personagens do romance -, além da criação de uma cavalgada anual, no último fim de semana de maio, que é realizada até hoje.
A terceira Ilumiara é a casa da família Suassuna, no Recife, que, por abrigar anos de história do escritor e de sua família, caminha para tornar-se um museu. A Jaúna é considerada a quarta Ilumiara e, antes mesmo que seja inaugurada, Dantas já tem pronto o projeto da quinta – a Ilumiara Acauã – e, junto com o primo Dantinhas, procura patrocínio para viabilizá-lo paralelamente ao da Jaúna. A Acauã será instalada em uma fazenda de mesmo nome, onde Ariano Suassuna viveu até os três anos de Idade e nela funcionará o Museu Armorial dos Sertões.
Ilumiara Jaúna: um reencontro artístico entre filho e pai
Além de sintetizar a obra de Ariano e de chamar a atenção para a importância das inscrições do Ingá, a Ilumiara Jaúna traz em si a perspectiva de união artística entre filho e pai, que sempre andaram juntos na relação familiar, mas trilharam caminhos estéticos próprios, embora mantendo sempre alguma afinidade.
E se, por um lado, a proposta nasceu de Ariano, por outro é Dantas quem a executa e, neste sentido, a Ilumiara Janúna, segundo o artista visual, “é uma reaproximação do filho em busca do pai”- uma busca que ele abraçou completamente e cujos frutos já ultrapassam o projeto inicial.
Ao lado da pedra onde está sendo feita a releitura das inscrições do Ingá, Dantas começou a construir uma espécie de muralha que cerca um anfiteatro natural, também em pedra. Nesse espaço, ele pretende encenar para os visitantes da Ilumiara Jaúna, a peça “Os Homens de Barro” – escrita pelo pai em 1948 – sobre um grupo de homens que, após uma visão, decide esculpir um anjo e acaba perseguido por autoridades e poderosos. A peça já foi adaptada por Carlos Newton Júnior para a Ilumiara Pedra do Reino e terá nova adaptação para a a Ilumiara Jaúna. Ao final de cada encenação, todos sairão em cortejo para visitar as inscrições.
Mas a busca de Dantas não para aí. Com o fiel apoio do primo Dantinhas, ele pretende realizar, algum dia, um sonho que de tão grandioso Ariano nunca ousou expressar na vida real, mas está claramente lavrado na página 949 do “Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores”: inscrever as mais de mil páginas que compõem esse livro em placas de pedra, e reproduzir suas ilustrações em painéis de mosaico, ao longo das estradas que ligam Taperoá a Belmonte, Belmonte a Recife e Recife a Taperoá de modo que possam ser lidas por quem percorrer esses caminhos a pé, fazendo da leitura uma peregrinação.5
Notas
- 1 A Pedra do Ingá já foi tema de matéria neste blog.
- 2 No sertão, a morte recebe o nome de onça Caetana. Quando o morto era do sexo feminino, Ariano chamava a morte de Caetano, em combate ao machismo.
- 3 Encantamento era o nome usado por Guimarães Rosa para se referir à morte e Ariano o adotava também.
- 4 A Ilumiara Pedra do Reino será tema de matéria neste blog.
- 5 Leia, aqui no blog, outras matérias que nos remetem à vida e à obra de escritores: Cordisburgo / Casa do Rio Vermelho / Cartagena / Havana / Dublin
Ilumiara Jaúna – Fazenda Carnaúba – Taperoá – Paraíba – Brasil – América do Sul
Referências - Livros de Ariano Suassuna:
- Ferros do Cariri
- Os Homens de Barro
- Romance d'A Pedra do Reino
- Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores
Para realizar esta matéria, o blog Lugares de Memória contou com importantes colaboradores
- O artista plástico Manuel Dantas Suassuna, filho de Ariano e herdeiro do projeto da Ilumiara Jaúna
- O advogado Manuel Dantas Vilar, sobrinho de Ariano e um dos grandes conhecedores de sua obra
- O fotografo Gustavo Moura, que proporcionou o encontro com a família Dantas Suassuna, participou de todas as conversas e é autor da maioria das fotos da Pedra do Ingá e da Ilumiara Jaúna
Apoio institucional
- Universidade Federal da Paraíba - UFPB/ PRAC/COEX
Ariano é de grande importância para a nossa literatura e Cultura artística, muito bom ver a continuação de seus projetos sendo cuidados por seus descendentes.Parabéns !Sucesso !
Torcendo para que a concretização desse encontro transcultural entre pai e filho. O grande Ariano merece!
Amei a matéria, Sylvinha!
Abraços
Val Cantanhede
Por favor, ignore o "que" da primeira frase…
Bjs
Obrigada, Marivalda. É muito legal mesmo. Abs
Obrigada, Val! Abs
Ok, Val, vamos desconsiderar o 'que' da primeira frase! Abs
Belíssimo registro, Sylvinha. Adorei!
Valeu, Soninha, bjs
Fico muito feliz de ver o quanto a cultura nordestina é grande. Parabéns ao Dantas por cumprir a grandiosa missão de registrar e perpetuar através do seu talento artístico, a valorosa obra do inesquecível Suassuna.
Obrigada pelo comentário, Ana. Dantas realmente recebeu uma missão grandiosa e está cumprindo maravilhosamente bem com a ajuda de Dantinhas.
Muito bom falar sobre o Ariano em algo que não conhecemos.
Valeu, Sidney, bjs
Oi Silvia apenas hoje consegui ler com calma seu texto. Excelente como sempre…desperta a curiosidade de conhecer os lugares, as pessoas e as memórias!! Grande abraço! Hugo Leite Britto
Obrigada Hugo. Bom saber que você continua acompanhando o blog. Beijos!
Bela história de encontro entre Pai e Filho e a concretização de um sonho.
Augusta Leite Campos
Valeu, Gusta. Bom saber que é leitora assídua. Beijos.
Compartilhei.
Importante registro para marcar a história da literatura de um grande escritor. Como profundo apaixonado por tudo que Ariano escreveu, fiquei feliz por essa importante iniciativa.
Que bom. Obrigada pela visita. Espero que volte a acessar o blog. Temos postagens novas todas as quintas. Acompanhe!
Obrigada, mas você esqueceu de deixar seu nome. Não sei a quem estou agradecendo.
Ariano foi um autor que ultrapassou a literatura e inspirou diversas artes, como a dança e as artes plásticas. Não sabia sobre a Ilumiara Jaúna, mas as imagens que você compartilhou me pareceram muito familiares pela admiração à obra do escritor. Aprendi mais com seu post.
Que texto incrível. Eu adoro quando a literatura encontra a história e o Turismo. Adoro acompanhar o blog. Parabéns e beijinhos
Sylvia, seu blog me inspira, que texto lindo sobre Ariano esse grande escritor. Parabaéns!
Que material importante que você apresenta, um olhar atento ao nosso Ariano, nosso grande escritor e muito mais do que isso, um grande artista. E em particular essa parte de sua obra, Ilumiara Jaúna, que eu particularmente desconhecia. Parabéns!
Obrigada pelas palavras, Hebe. Bom saber que gostou. O blog tem outras matérias relacionadas à literatura, especialmente a Guimarães Rosa.
Pois é: a Ilumiara Jaúna é uma preciosidade. Vale a pena conhecer.
Verdade, Fabíola, ele inspirou, incentivou e produziu em várias áreas. Um artista completo e pra lá de especial.
Que bom, Elizabeth. Volte sempre. O blog tem outras matérias sobre literatura. Navegue um pouquinho que você vai descobrir.
Uau, que preciosidade se revela Ilumiara Jaúna: a literatura de Ariano gravada em pedra. Quero muito conhecer pessoalmente. De fato, o legado que ele deixou é magnifico e é bom ver a família preservando.
A Ilumiara Jaúna é realmente uma preciosidade. Não é muito fácil agendar uma visita, mas vale a pena o esforço.
Que lugar interessante essa Ilumiara Jaúna! Eu não conhecia, e nem sabia que a literatura de Ariano era gravada em pedra. Obrigada por compartilhar!
Ilumiara Jaúna: a literatura de Ariano gravada em pedra é um post para ler e reler diversas vezes! Que história incrível esse encontro artístico entre um pai e um filho. Entre um gênio e seu discípulo.
Pois é, Luana. Eu esperei alguns meses para ter acesso a esse lugar e finalmente consegui com a ajuda do meu amigo Gustavo Moura. Foi uma das matérias que mais desejei fazer para o blog.
Eu não conhecia Ilumiara Jaúna. Achei incrível essa proposta de gravar a literatura de Ariano na pedra. Adorei o post!
A Ilumiara Jaúna é um projeto incrível, como tudo que é relacionado a Ariano Suassuna. Vale a pena conhecer.