Morrinhos: uma história perdida no tempo

Tempo de Leitura: 5 minutos

Atualizado em 01/12/2024 por Sylvia Leite

Igreja de Morrinhos - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAOs rastros do passado ainda estão por lá, mas não há textos sobre a história de Morrinhos – uma vila de pescadores que, segundo o historiador Xico Mendes, foi ponto de intermediação comercial entre o Centro-Oeste e o Nordeste do Brasil durante o Ciclo do Ouro.

Localizado à margem esquerda do rio Urucuia, afluente do São Francisco, o pequeno povoado do Município de Arinos parece ter parado no tempo, com aproximadamente 150 moradores segundo cálculo de alguns nativos.

O chão é de areia e o traçado urbano se resume a uma praça, onde fica a igreja e a antiga casa do padre. Além disso, existe apenas uma rua, também sem calçamento, que liga esse centro ao leito do rio; e outra que logo se transforma em um caminho de terra batida. São os dois pontos de acesso ao lugar.

Quem chega pela estrada que leva à outra margem do rio, tem que fazer a travessia em canoa, ou em uma mini-balsa. Como lá não se usa motor, os condutores agarram-se a uma corda que não deixa as embarcações serem vencidas pela correnteza. Entretidos com a beleza Travessia_do_rio_Urucuia-Foto_de_Sylvia_Leite-BLOG_LUGARES_DE_MEMORIAda paisagem, não vemos o tempo passar e a travessia parece mais curta do que esperávamos.

Ao desembarcarmos do outro lado, parece que entramos em outra dimensão. Um silêncio absoluto, quase ninguém na rua de terra. Para usar celular, é preciso andar em volta de uma determinada casa que fica ao lado da igreja, no ponto mais alto da povoado. Com sorte, o sinal entra em cinco ou dez minutos – isso se a linha for da única operadora que atua na região. Mas a espera vale a pena porque, enquanto o sinal não vem, vamos fazendo descobertas.

A principal delas é uma escultura que, à primeira vista, parece uma representação de nativos atravessando um rio, imagina-se que o próprio Urucuia. Em um olhar mais atento, percebemos que se trata da cena do primeiro encontro entre Riobaldo e Diadorim – os personagens principais do romance “Grande Sertão: Veredas“, de Guimarães Rosa – quando se conhecem, ainda meninos, e fazem um passeio de canoa.

Urucuia: o rio do amor

Escultura que reproduz cena do Grande Sertão: Veredas - Foto de Sylvia Leite- BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

No livro, a cena se dá em um rio chamado De Janeiro, também na bacia do São Francisco, e não no Urucuia, que banha o lugar. Essa divergência geográfica faz com que alguns visitantes estranhem a presença da escultura e a considerem fora de lugar.

Outros, no entanto, a consideram uma alusão simbólica ao livro, com múltiplos significados. O primeiro e mais abrangente seria a ideia de ‘travessia’, que está presente em qualquer cidade ribeirinha, e da coragem a ela associada. Travessia é também a última palavra do romance de Rosa e, segundo alguns estudiosos da obra, sintetiza a saga dos personagens Riobaldo e Diadorim.

Poderia se considerar, ainda, segundo os defensores da escultura, um cruzamento entre o fato de Rosa, nesse romance, referir-se ao Urucuia como o rio do amor, e o sentido da  cena, que marca o início da paixão proibida entre Riobaldo e Diadorim.

Difícil saber a quem dar razão, mas, seja como for, encontrar uma referencia literária perdida em uma vila de pescadores é, no mínimo, alentador.

Morrinhos: uma história não divulgada

Algumas das poucas casas da vila - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAMesmo sem livros, sabe-se um pouco sobre Morrinhos, seja pela transmissão oral, seja pela pesquisa nos poucos documentos preservados realizada pelo historiador Xico Mendes. E a primeira coisa que se conta é que, provavelmente entre 1.790 e 1.840, ali funcionava um próspero porto.

Nesse período, Morrinhos teria servido como pouso e entreposto comercial, tanto na ida como na volta, de tropeiros que faziam o transporte e a comunicação entre a mineração do Centro-Oeste e a atividade pastoril nordestina.

A cidade teria recebido também fiéis e peregrinos de toda a região, graças a uma Lei Provincial que, em 1850, a elegeu como sede da Paroquia de Nossa Senhora da Conceição.

Esse movimento terminou no final do século 19, com a transferência da paróquia para o vizinho município de Buritis. Já a perda de importância do porto provavelmente se deve a diversos fatores como o fim do Ciclo do Ouro, a chegada de fazendeiros à região e o inicio da industrialização do país.

Barco em terra e cruz da igreja - Fotos de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAO porto de Barra da Vaca, que viria ocupar seu lugar na bacia do São Francisco, passa a atender às novas necessidades, como o transporte de famílias de fazendeiros e de seus funcionários. Tem início, ainda, o trânsito de mercadorias produzidas no Rio de Janeiro e São Paulo, a partir do porto de Januária.

O divisor de águas dessa transição ocorreu quando Morrinhos perdeu a condição de Sede Distrital, que foi assumida por Barra da Vaca, em 1.923. Na época, ambas pertenciam a Paracatu. Mas com a presença dos fazendeiros no novo porto, Barra da Vaca havia crescido e, além de tornar-se sede, foi elevada a município com o nome de Arinos – em homenagem ao jornalista, jurista e escritor Afonso Arinos de Melo Franco. Morrinhos também foi anexada ao município, mas na condição de povoado e sem os comerciantes do passado. Com o fechamento do porto, ficaram ali apenas os pescadores.

De tropeiros a caminhantes

Caminhantes reunidos na praça de Morrinhos - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAA condição de porto certamente não será mais recuperada por Morrinhos, tampouco seu florescimento comercial, mas, desde 2014, um projeto batizado como Caminho do Sertão e definido por seus autores como “uma imersão socioecoliterária no universo de Guimarães Rosa” tem levado mais de 70 pessoas por ano ao local.

É muito pouco se comparado aos velhos tempos, mas equivale a quase metade de sua população e, embora a passagem seja rápida, há sempre uma interação dos visitantes com a população local. Além disso, a inclusão de Morrinhos na rota desse projeto tem feito com que a imagem da aldeia fique gravada na memória dos caminhantes, em sua maioria jovens, e seja levada a várias partes do país. Pelo menos dessa forma sua história vai sendo transmitida oralmente até que um dia possa chegar aos livros.1

Morrinhos – Arinos – Minas Gerais – Brasil

Texto

Fotos

  • Sylvia Leite

Referências

  • Guia Cultural e Ecoturístico do Entorno do Parque Nacional do Grande Sertão Veredas, de Xiko Mendes - Funarte/Unifam

Consultoria:

  • Xico Mendes - historiador, pesquisador, professor de História, mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural pela Universidade de Brasília.

Colaboração e apoio:

  • Moradores de Morrinhos
  • Guias do projeto Caminho do Sertão.
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Val Cantanhede
5 anos atrás

Minas e seus mistérios encantadores, com presença sutil de Guimarães Rosa.
Pelo seu relato de Morrinhos, me veio à lembrança o Mangue Seco no início da década de 80, antes da novela da Globo.
Amei o texto, Sylvinha!
Abraços,
Val Cantanhede

GILBERTO HABIB OLIVEIRA
5 anos atrás

Leitura da manhã, com pão e cheirinho de café… tudo isso bem Brasil. Adorei ver aqui a citação a Afonso Arinos de Melo Franco nascido em Paracatu em 1868 e tio do homônimo sobrinho também jurista Afonso Arinos de Melo Franco nascido em BH em 1905. As obras escritas pelo tio são precursoras da linguagem literária coloquial de Guimarães Rosa porém poucas vezes lembrada (talvez ofuscada pela sombra do nome que o confunde com o sobrinho). Livros como “Pelo sertão” (1898) e “Os jagunços” (1898) são uma delícia de ler e nos surpreende pela valorização de palavras e expressões (na época arrojados neologismos) que nunca antes tinha sido enaltecido pelo intelectuais literatos. São pesquisas tão importantes quanto as do contemporâneo Silvio Romero (também pouco lembrado). Enfim… agora ouvir “Sussuarana” de Heckel Tavares e Luis Peixoto pra completar a trilha dessa viagem. Obrigado Sylvia por trazer esse oasis de memórias até nós. Gilberto

Virginia Finzetto
5 anos atrás

que beleza de descoberta (pelo menos, para mim). aqui sempre encontramos novidades e ótimas leituras, fora a interatividade com os outros leitores que nos enriquecem acrescentando novas informações. Abraço, Sylvia. Abração, Gilberto Habib.

Elizete Cordeiro de Miranda
5 anos atrás

Como sempre, trazendo um lugar novo e com tantas histórias. Maravilhoso.

Unknown
4 anos atrás

Só para Colaborar um pouquinho, a história de Morrinhos, como do vale do Urucuia, se perdeu muito, e esta que foi a região mais próspera no inicio do Século XVIII,em minas gerais, foi brutalmente excluída da história, por um decreto imperial de 1736, que proibia a comunicação das minas dos Goiás, com o nordeste via Urucuia, chamado caminho dos Currais.
O auge do Urucuia, começou a partir da vinda de Mathias Cardoso de Almeida, que fundou um povoado nas margens do Rio Urucuia, por volta de 1690, e trouce consigo parentes e Amigos, aos quais dividiu as terras do Vale do Urucuia. Entre vários, se destaca o construtor da Igreja de Morrinhos, o Capitão Inácio de Oliveira, Pai de Inácio de Oliveira Campos, que se casou com Joaquina do Pompeu …

Zaca
Zaca
Resposta a  Unknown
3 anos atrás

Tenho umas pessoas de antes de 1920 que tenho que achar uns documentos deles, já sei que é em Paracatu ou são romao. Damasia Maria de almeida e Antonino de almeida soares.

Vitória Almeida da Costa
Vitória Almeida da Costa
Resposta a  Zaca
1 ano atrás

Tenho uma pessoa de antes de 1900 minha mãe fala que ele nasceu na cidade de cariranha Bahia mais vó dela fugiu pra minas morrinhos com duas crianças que ela não lembra direito o nome da tia que ela jorde de Souza Guedes e Manuel de Souza Guedes que era filhos de Sancho de Souza Guedes e Maria Damasceno ela fala de um lugar chamado regalito obrigado

Unknown
4 anos atrás

Um lugar muito acolhedor já fui várias vezes lá na época das festas.

Unknown
4 anos atrás

Que pela história sobre a minha comunidade,confesso que eu que nasci e fui criada aqui não sabia sobre certos acontecimentos que foram reveladas nesse texto. Minha cidade realmente é esquecida é abandonada pelos administradores do município, mas não deixa de ser um lugar encantador e cheio de história maravilhosas como essa. Parabéns Sylvia Leite por essa linda história e se você fizer parte dos peregrinos do caminho do sertão que as vezes passa por aqui gostaria muito de lhe conhecer pessoalmente. Um grande abraço!

Unknown
3 anos atrás

Verdade maravilhoso eu morei em morinhos muida recortaçao eu contruir uma escola na reserva logradoro aonde eu tinha um lote air fui mora em morinhos queria saber por gentilesa se esta escola ainda se encontra ainda na reserva tenho vontade de ir lar muita saudades

Andressa Cardoso
Resposta a  Unknown
3 anos atrás

Oii Tudo Boom Á Escolar Do Logradouro Ainda Existe Só Não Tem As Festas De Que Tinham Sou Neta De Tino E Luzia Filhar De Aristeu..

Dirceu Lelis de Moura
Dirceu Lelis de Moura
2 anos atrás
  • Excelente texto, Sylvia Leite! Concordo por inteiro com sua inteligente justificativa da canoinha do de-Janeiro. A bela imagem da Igrejinha eu passei em 2021, com seu crédito, para a professora são-franciscana Generosa Souto, quando ela publicava no Facebook uma belíssima série de Igrejas do Brasil. Morei em Arinos no ano de 1952 e, em Morrinhos, o conhecimento foi apenas em ligeiras passagens, em viagem. Tive vontade de fazer o Caminho do Sertão, mas agora não dá mais. Não tenho a fortaleza de seu Argemiro. Grande abraço! .
Sonia Vieira
Sonia Vieira
2 anos atrás

Estou pesquisando para fazer uma viagem em alguns pontos da obra de Guimarães. pretendo sair de BH e chegar aos principais lugares de ônibus. Foi ótimo ler seu texto. Pensei em iniciar por Cordisburgo e depois Três Marias. Ainda estou estudando o percurso.Se alguém puder me dar algumas dicas vou adorar. Ou talvez empresas de turismo que façam alguns pontos mais dificeis de chegar. Sou de São Paulo e professora de História. Obrigada!