Atualizado em 26/05/2024 por Sylvia Leite
O primeiro a ser enterrado ali foi um escravizado, mas, com o passar do tempo, o lugar foi ocupado também pela elite paulistana que contratava artistas de renome para decorar seus mausoléus familiares. Quase dois séculos depois, o Cemitério da Consolação pode ser considerado um museu a céu aberto, com cerca de 7 mil túmulos, 300 esculturas e uma diversidade que abarca de operários de fábricas a empresários, de ativistas sociais a políticos tradicionais, de anônimos sepultados em covas gratuitas a artistas, intelectuais e até um menino venerado por seus milagres.
A diversidade ocorre também nos estilos. Entre cruzes e anjos, é possível encontrar personagens da mitologia grega ou uma esfinge egípcia. Bem próximo a uma réplica de uma catedral gótica, podemos nos deparar com jazigos em estilo Art nouveau.
Toda essa riqueza de referências resulta, provavelmente, do fato de o Cemitério da Consolação ter sido praticamente o primeiro da cidade de São Paulo1 e de ter permanecido sem concorrência por mais de 30 anos quando foi inaugurado, a poucos quilômetros de distância, o também histórico Cemitério de Araçá.Fesculpida
Jazigos famosos no Cemitério da Consolação
Ao percorrermos as alamedas do cemitério da Consolação, nos aproximamos da História, da Música, das Artes Visuais e da Literatura. O escritor Monteiro Lobato, por exemplo, cujas histórias1 povoaram o imaginário de algumas gerações de adolescentes brasileiros, revive momentaneamente em nossa memória ao nos depararmos com seu jazigo. O local é marcado por um bloco de granito negro que lembra a forma de um baú, onde podemos imaginar que se escondem personagens como a boneca Emília ou o Visconde de Sabugosa.
Andando um pouco no tempo, e nas alamedas do cemitério, chegamos ao modernismo e a um dos seus mais notórios representantes: o escritor Mário de Andrade, conhecido especialmente pelo livro Macunaíma 2, considerado sua obra-prima, que conta a saga de um anti-herói brasileiro, símbolo de resistência à massificação.
Do mesmo período e do mesmo movimento cultural, encontramos também o escritor Oswald de Andrade, autor do Manifesto Antropofágico, que reúne ideias sobre o modernismo no Brasil. O endereço, localizado à rua 17, número 17, tem duplo interesse histórico. Além conter o jazigo do escritor, foi palco, em 1930, de seu casamento com a também escritora Patrícia Galvão, a Pagu .
O Cemitério da Consolação abriga, ainda, os restos da pintora e desenhista Tarsila do Amaral, autora da tela Abaporu, de 1928 – considerada um ícone do modernismo brasileiro – e de outras obras igualmente famosas como ‘A negra’, “Antropofagia’ e ‘Operários’.
As esculturas que povoam o cemitério
Se alguns túmulos ganham destaque por abrigarem personalidades, outros tornam-se famosos pela beleza das esculturas ou por levarem a assinatura de grandes artistas. Há, ainda, os que reúnem as três condições. É o caso da sepultura de Luigi Chiaffarelli – músico italiano radicado no Brasil que foi professor da pianista brasileira Guiomar Novaes. Além de homenagear uma personalidade da área musical; chama atenção por retratar a Musa Euterpe da música – uma das nove da Mitologia Grega – a quem alguns atribuem a criação da flauta. Para completar, foi esculpida pelo artista ítalo-brasileiro Nicola Rollo – autor de outra importante obra no mesmo cemitério: Lenda Grega, que feita para o túmulo da família Trevisoli.
Entre as obras mais conhecidas do cemitério está a escultura “Sepultamento” – originalmente “Mise au Tumbeau” -, de Victor Brecheret, premiada no Salão de Outono de Paris, em 1923. Trata-se de uma “Pietà” (Maria com Cristo morto em seu colo) acompanhada pelas Três Marias citadas no Novo Testamento: Madalena, Cleófas e Salomé. A obra, em granito Itaquera, tem mais de três metros de altura e foi adquirida pela mecenas Olívia Guedes Penteado para o túmulo de sua família onde ela própria foi enterrada pouco mais de uma década depois.
Do mesmo Brecheret, é a obra ‘Grande Anjo’, de 1938, feita para o jazigo da família Botti, e considerada de tendência modernista por imprimir no anjo os traços raciais do brasileiro, mas a escultura mais famosa do artista está longe dali: é o Monumento às Bandeiras, que fica em frente ao Parque Ibirapuera.
No Cemitério da Consolação, as esculturas são admiradas como obras, mas também viram motes para a criação de histórias. Talvez a mais curiosa delas seja a que envolve a obra ‘Ponto de Interrogação’, de Francisco Leopoldo e Silva, esculpida para o jazigo de um jovem advogado. Acredita-se que a escultura expresse as perguntas deixadas no ar por seu suicídio após ter executado a amante, com quem viveu cerca de dois anos de hotel em hotel. Conta-se que se conheceram quando o jovem advogado atuava contra ela e em defesa de uma mulher da elite paulistana que, por ciúme do marido, havia contratado jagunços para agredi-la. Ao conhecê-la, ele se apaixonou, mas depois de dois anos, ela teria voltado a sair com outros homens e ele, inconformado, teria planejado a tragédia.
Outra obra que deu o que falar foi a escultura ‘Solitudo’, do mesmo Francisco Leopoldo e Silva, o primeiro nu feminino do Cemitério da Consolação, esculpida para a sepultura do advogado Teodureto de Sampaio e sua esposa.
Morada de poderosos e de ativistas sociais
A primeira necrópole da cidade também está povoada por vários personagens históricos, inclusive dois ex-presidentes da República: Washington Luís e Campos Sales. Há, ainda, túmulos de jornalistas, juristas e outras figuras públicas.
Entre os jornalistas, encontram-se figuras como Afonso Arinos de Melo Franco, ocupante da cadeira 40 da Academia Brasileira da Letras, e os proprietários de jornais Júlio de Mesquita (O Estado de São Paulo) e Líbero Badaró (O observador Constitucional) este último, assassinado supostamente por suas posições políticas.
Mas segundo conta o condutor das visitas guiadas do cemitério, Francivaldo Gomes, conhecido como Popó, um dos funerais com maior número de seguidores foi o do ex-escravizado, maçon e abolicionista Luís Gama, considerado o patrono da Abolição da Escravatura. Um cortejo com cerca de três mil pessoas – número bastante alto para a segunda metade do século 19 – teria saído do Brás, na região central da cidade, e o caixão teria passado de mão em mão até chegar ao local do sepultamento.
Entre visitas e ameaças
A história do Cemitério da Consolação começa quando higienistas alertam as autoridades para os riscos à saúde pública resultantes do sepultamento de pessoas nos pisos das igrejas. O costume existia no mundo inteiro, pois os católicos acreditavam que os jazigos dentro nas igrejas deixavam os mortos mais próximos de Deus, mas, para evitar epidemias, já estava sendo abandonado em vários países da Europa.
Após muita polêmica, e dificuldades para levantar as verbas necessárias, o cemitério foi inaugurado em 1858. Uma de suas maiores apoiadoras foi Domitila de Castro Canto e Melo, a Marquesa de Santos, na época mal afamada por manter um caso com Dom Pedro I. Sua doação de dois contos de réis serviu para erguer a primeira capela, no mesmo lugar onde encontra-se hoje outra capela projetada pelo famoso arquiteto Ramos de Azevedo. Por algumas décadas, foi o local de sepultamento de todos que viviam em São Paulo, mas com a inauguração de outras necrópoles, passou por um processo de elitização e inclusive por uma grande reforma física.
Acredita-se que há mais de cem anos já havia uma preocupação com a beleza do cemitério e com sua imagem perante os visitantes de outros estados e países, mas faz pouco mais de uma década que foram iniciadas as visitas guiadas sob a orientação de Popó. O passeio é gratuito e o guia tem as informações na ponta da língua. Pena que dure apenas uma hora e meia, porque nesse tempinho é impossível conhecer tudo. Mas nada impede que sejam agendadas uma segunda e uma terceira visitas.3
Notas
- 1 Antes dele já havia o Cemitério dos Aflitos, onde eram enterrados os negros. Para o enterro dos homens brancos eram usadas as igrejas. Havian ainda, o Cemitério de Colonia no atual distrito de Parelheiros
- 2 Leia, aqui no blog, matéria sobre a Chácara Sapucaia - local onde acredita-se que Mário de Andrade tenha escrito Macunaíma.
- 3 Leia, também, matérias sobre lugares históricos de São Paulo: Minhocão / Viaduto do Chá / Bixiga / Galeria do Rock / Vila Itororó / Cemitério da Consolação / Parque Augusta /Teatro Oficina / Theatro Municipal / Parelheiros, Marsilac e Bororé
Cemitério da Consolação – São Paulo – São Paulo – Brasil
Fotos
- Sylvia Leite
Cemitério cheio de história e histórias! Visitei várias vezes, só par ver os túmulos ilustres e as obras de Brecheret – meu preferido. Beijão, Sylvinha!
sonia pedrosa
Muito interessante.
São as minhas preferidas também. bj
É sim. abs
Olá, Sylvia, vou publicar um texto sobre temática cemiterial com uma foto do túmulo Euterpe. No entanto, infelizmente não poderei usar a imagem que tenho, pois está com insuficiente qualidade. Uma pena, pois a foto foi feita e me foi dada por uma grande amiga – e orientanda – que faleceu recentemente. Então, como não moro em SP, e tenho prazo curto para reencaminhar a imagem, fiz busca na internet, e de longe a tua foto é a melhor. Pergunto-te então se me autorizarias usar a tua fotografia, informando devidamente os créditos, e se por acaso poderias me enviar um arquivo com melhor definição que o publicado no blog. Gostaria também de conversar contigo sobre quando foi feita a foto.
Fábio Vergara Cerqueira – Universidade Federal de Pelotas – [email protected]
Vou responder por e-mail e a gente combina, ok?