Atualizado em 27/07/2024 por Sylvia Leite
Não é novidade, no Brasil ou em outros cantos do mundo, que imóveis antigos se transformem em museus ou centro culturais, mas a Vila Itororó tem particularidades bastante curiosas. Uma delas diz respeito à sua configuração, pois não era um casarão isolado, mas o coração de uma vila de imóveis de aluguel. Outra característica singular é o seu processo de restauro e de transformação em centro cultural, que já passou por várias etapas e está longe de ser concluído.
Em setembro de 2021, quase duas décadas depois do primeiro tombamento1, e parcialmente restaurado, o conjunto arquitetônico foi inaugurado como Centro Cultural Vila Itororó com salas de exposição, uma biblioteca, um palco e um café onde se realizam mostras, shows e sessões de cinema. O local abriga, ainda, uma unidade do Fab Lab – rede de laboratórios públicos espalhados pela cidade de São Paulo onde são realizados cursos e oficinas de áreas tão diversas como costura e modelagem 3D.
O processo de transformação da Vila Itororó
As atividades culturais na área da vila começaram em um galpão (foto), localizado em terreno vizinho, de onde era possível observar do alto as ruínas em processo de restauro. Nesse enorme salão, havia espaço para quem quisesse jogar, fazer atividades artísticas, participar de oficinas, descansar nas redes e até cozinhar. Era possível, ainda, comparecer a reuniões periódicas onde se discutia os rumos do processo de restauração em andamento.
O galpão também era ponto de partida para as visitas guiadas ao canteiro de obras onde estava, e ainda está em curso o resgate físico da Vila Itororó. Durante as visitas, feitas em pequenos grupos, os guias faziam questão e ouvir a opinião de cada um sobre como a vila deveria ser ocupada quando a obra fosse concluída.
O programa da visita era sempre o mesmo, mas a paisagem ia se modificando na medida em que avançavam as obras de restauro e se iniciava a ocupação dos imóveis prontos. Foram seis anos entre o início das obras e a inauguração do centro cultural ainda inacabado.
Um canteiro aberto para a comunidade
A preocupação das equipes que idealizaram o projeto era transformar as ruínas da Vila Itororó em um espaço cultural comunitário, sem esquecer de resgatar o objetivo original da construção que era o de moradia compartilhada. Essa meta vem sendo tecida em diálogo com o público para que tanto a configuração final do espaço como sua destinação estejam de acordo com a comunidade que iria ocupá-la das mais diversas formas.
Embora o projeto tenha um sólido embasamento teórico e diretrizes muito bem definidas, as dúvidas ainda são muitas porque a Vila Itororó passou por diversas fases desde sua inauguração, em 1922, e de tempos em tempos havia mudanças tanto em sua aparência física como nas formas de ocupação – algumas deliberadas e outras provocadas por fatores externos ou conjunturais.
Se discute, por exemplo, se o casarão deve ser restaurado de acordo com o projeto original ou levando-se em conta as transformações que foram feitas para abrigar mais de uma família. Outra questão bastante debatida é quanto à ocupação. Entende-se que, por um lado, o espaço deve abrigar – ao fim do projeto – um centro cultural, talvez localizado no casarão. Mas, e quanto às casas? seriam destinadas apenas ao funcionamento do centro e a residências artísticas ou pelo menos uma parte delas voltaria a ter a função de moradia popular? As respostas do público são as mais diversas, o que torna ainda maior o desafio dos condutores do projeto.
Vila Itororó: uma história de pioneirismo
Para entender a complexidade da Vila Itororó é preciso conhecer um pouco de sua história, que começou no início do século 20 (1929) – momento em que São Paulo começava a se modernizar. Seu idealizador e proprietário, Francisco de Castro, era um filho de portugueses nascido em Guaratinguetá, que tinha vivido temporariamente na região portuguesa do Minho e, ao retornar, decidiu empreender na área da construção civil, mas ainda não tinha dinheiro como bancar o investimento.
Na época, mais da metade da população de São Paulo era composta por imigrantes e a economia estava assentada em três vertentes: o café, a indústria e a atividade imobiliária. O português (como era conhecido Francisco Castro) transitou pelas duas primeiras como empregado e nelas foi conseguindo levantar recursos. Inicialmente foi caixeiro viajante de um grande atacadista de tecidos e armarinhos, em seguida trabalhou em uma exportadora de Café e mais tarde foi representante de uma indústria de tecidos.
Quando finalmente conseguiu dinheiro para dar início sua primeira construção, decidiu fazer, no mesmo terreno, um palacete para sua moradia, e sobrados que seriam alugados para lhe garantir uma renda mensal.
O projeto da Vila Itororó era um sonho ousado, ambicioso e, ao mesmo tempo, distante das tendências imobiliárias da época. Se, por um lado, estava em sintonia com um mercado de grande demanda, quando 80% das residências da cidade eram alugadas, por outro andava na contramão das famílias mais poderosas que procuravam morar em bairros onde houvesse apenas palacetes.
A vila foi além de misturar o palácio com as casas de aluguel: no mesmo terreno, havia um salão de diversão e uma piscina destinada à aprendizagem de natação – a primeira de São Paulo em um espaço residencial – que foi restaurada e está sendo usada como cenário de shows.
A intenção de seu idealizador era implantar um parque com vários tipos de banhos terapêuticos, aparelhos de ginástica e esgrima, salão de dança e jardins.
Um lugar em constante transformação
Antes que tudo isso se concretizasse, Francisco de Castro se endividou e faleceu três anos depois. A Vila Itororó foi então leiloada e entrou em uma nova fase. O palacete perdeu as escadas internas e foi dividido em quatro residências, alugadas a diferentes famílias. A piscina e o salão foram arrendados a um clube.
Com o tempo, a configuração da vila foi mudando, em parte por influência das transformações ocorridas no entorno: antigos moradores passaram a sublocar quartos a estudantes e a trabalhadores que precisavam morar perto do trabalho. As mudanças atingiram também a estrutura da vila, pois algumas casas foram ampliadas com a construção de puxadinhos para abrigar novos inquilinos ou mesmo parentes dos moradores. Diante disso, a função original da vila, que era a moradia, transforma-se em uma ameaça à sua integridade.
No início da década de 1980, começa a ser discutido o tombamento que só vai acontecer em 2005. Nesse intervalo, o problema se agravou porque a Fundação Maria Cândida Sampaio, então proprietária da vila, começou a despejar moradores e demolir as casas desocupadas. A piscina foi alugada a uma lavanderia, que passou a utilizá-la como tanque. A uma certa altura, a Fundação decidiu parar de receber os aluguéis e isso acabou transformando muitas casas em cortiços. Somente entre 2011 e 2013 é que a vila foi inteiramente desocupada.
Patrimônio histórico e arquitetônico
Além de sua importância histórica, por ter sido construída em um período de imigrações e por constituir uma experiência única em São Paulo, a Vila Itororó tem também relevância arquitetônica – em parte por não se enquadrar em nenhum estilo, o que a torna ímpar, mas principalmente por seu palacete ter sido construído com elementos decorativos retirados de demolições, numa época em que esse tipo de aproveitamento não era sequer cogitado. Parte desse material – inclusive as colunas que enfeitam a fachada – veio do teatro São José, cujo prédio1 foi vendido à empresa de energia Light e teve seu interior totalmente demolido.
O restauro da Vila Itororó já dura quase duas décadas e deve levar ainda muitos anos para ser finalizado. Até lá muitas águas vão rolar porque o projeto tem 11 fases e somente três estão concluídas. 23
Notas
- 1 A Vila Itororó foi tombada pelo CONPRESP (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo) em 2002 e pelo CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico), em 2005
- 2 Do prédio do teatro restou apenas a fachada. É nele que hoje funciona o Shopping Light. O que se salvou da parte interna está na Vila Itororó.
- 3 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares especiais de São Paulo: Parque Augusta / Theatro Municipal / Galeria do Rock / Beco do Batman/ Bixiga / Theatro Municipal / Parque da Juventude / Estação Júlio Prestes e Sala São Paulo / Teatro Oficina / Liberdade / Pavilhão da Bienal / Edifício Matarazzo
Vila Itororó – Bixiga – São Paulo – Brasil – América do Sul
Fotos
- Sylvia Leite
Referências
- Visita guiada
- Livro "Vila Itororó, uma história em três atos", de Sarah Feldman e Ana Castro (baixar)
O Bixiga sempre o Bixiga, muito bom Silvinha.
Valeu, Sidney. Bjs
Na década de 70 morei na Brigadeiro Luis Antonio, bem pertinho da Vila Itororó e só agora com seu texto tão detalhado estou conhecendo a história do local.
Muito bom, Sylvinha!
Abraços
Val Cantanhede
Aora tem visita monitorada. Aproveite!
Ainda não tinha ouvido falar.
Obrigada pelo comentário. Da próxima vez, por favor deixe seu nome.
Um lugar que sempre tive curiosidade em conhecer.
Adorei saber que o guia ouve os visitantes durante a visita. É muito bom fazer estes passeios e ajudar na transformação do local como e o caso do espaço comunitário na vila itororó.
Sabe que moro em São Paulo minha vida inteira e nunca fiquei sabendo da Vila Itororo? ADOREI saber e, quando tudo melhorar, vou fazer uma visita.
Eu também não sabia. Não é muito divulgado. Mas é um lugar especial e está sendo tratado de uma maneira bem interessante. Vale a pena conhecer.
Realmente é muito legal essa abertura que eles dão para todos discutirem a utilização do espaço.
Vale a pena. Não deixe de ir quando puder.
Olha que legal!!! Não sabia que a Vila Itororó tinha essa visita guiada! Já coloquei esse espaço comunitário incrível no meu roteiro da próxima viagem! Obrigada por compartilhar
Nossa sou de SP e não conhecia esse espaço comunitário da Vila Itororó. Fiquei muito surpresa e feliz por conhecer mais um pedaço histórico dessa minha cidade que eu não conhecia. Obrigada
Adorei saber sobre essa visita guiada na Vila Itororó. Já vou incluir no meu roteiro na próxima viagem para SP.
Eu também moro em São Paulo e não apenas não conhecia como nunca tinha ouvi falar. Só fiquei sabendo quando fui fazer uma matéria sobre o Bixiga. Aí resolvi fazer uma exclusiva para a Vila Itororó.
Faça isso. A Vila Itororó é um lugar fascinante.
Não vai se arrepender. A Vila Itororó é um lugar incrível.