Atualizado em 30/04/2024 por Sylvia Leite
Certamente existem vários parques no mundo que foram estabelecidos a partir de uma luta comunitária, mas é provável que nenhum deles tenha resultado de um ‘vai e vem’ tão longo como o que ocorreu com o Parque Augusta, em São Paulo. Mais que isso: talvez seja difícil encontrar outro parque que, como esse, reúna, em um espaço relativamente tão pequeno, preservação ambiental, histórica e arqueológica. Ainda mais; poucos são aqueles que, como o Augusta, é gerido por um conselho com ampla participação da comunidade. Tudo conquistado com muito empenho, dedicação, paciência e criatividade. Foram quase cinco décadas desde a demolição do prédio que havia no local até a inauguração do parque em novembro de 2021. Nesse intervalo, o terreno passou por muitas mãos e foi motivo de grandes manifestações populares. O desfecho aconteceu em 2019, quando as duas construtoras – que foram as últimas proprietárias do terreno – assinaram acordo com a Prefeitura.
Em troca de créditos para construir em outras áreas da cidade, as empresas doaram o terreno de aproximadamente 24 mil metros quadrados e assumiram os custos de construção do parque, que incluiu um anfiteatro com arquibancada e palco, equipamentos de ginástica para adultos, brinquedos para crianças, redário, cachorródromo, bicicletários, áreas de manejo, compostagem e apoio à administração, além de achados arqueológicos – nos quais se incluem além trilhas localizadas no bosque centenário – e de estruturas tombadas pelo patrimônio municipal.
Parque Augusta: um oásis na aridez do Centro
Para entender a importância do Parque Augusta para a cidade de São Paulo, especialmente artistas e moradores da região central, é preciso conhecer um pouco de sua história que começa em 1902, quando foi construído no local o palacete da família Uchôa, com projeto do francês Victor Dubugras.
Naquela época, São Paulo ainda era uma pequena província e essa área ficava afastada da região central. Apenas quatro anos depois de construído, em 1906, o palacete e todo o terreno foram vendidos às Cônegas de Santo Agostinho que ampliaram a construção e inauguraram, em 1907, o Colégio Des Oiseaux (Os Pássaros). A instituição era destinada a moças da burguesia paulistana e teve como alunas a ex-prefeita Martha Suplicy e a socióloga Ruth Cardoso. No mesmo terreno, as cônegas implantaram a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Sedes Sapientiae – um centro multidisciplinar sem fins lucrativos dedicado ao estudo sobre saúde mental, educação e filosofia1.
Quando o colégio encerrou suas atividades no local, em 1969, o Centro de São Paulo já estava tomado pela especulação imobiliária e não havia mais vegetação nos arredores, o que tornava aquele terreno uma porção de verde rodeada de concreto por todos os lados. No ano seguinte, a Prefeitura decretou a utilidade pública do terreno para a construção de um jardim e começou a funcionar o local, nas instalações que haviam pertencido ao Des Oiseaux, o Colégio Equipe – conhecido como uma escola transformadora – e seu curso de pré-vestibular. Nesse período, o centro cultural de alunos promoveu shows nos jardins do terreno com inúmeros artistas como, por exemplo, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Cartola e Clementina de Jesus.
A saída do Equipe foi determinada pelos então proprietários que conseguiram reverter o decreto de utilidade pública e o prédio foi imediatamente demolido com o fim de dar lugar a um hotel, que acabou não se concretizando. A partir daí iniciou-se o ‘vai e vem’. O terreno passou a ser usado como estacionamento e, na década de 1980,voltou a sediar shows, desta vez do Protejo SP e sob uma lona de circo.
Uma conquista da comunidade
A luta pelo tombamento do terreno pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo – CONPRESP começou em 1994 e durou dez anos. Na época, ainda não havia um movimento formal pela criação do parque e quem entrou com o pedido junto à Prefeitura foi um morador da região com apoio de alguns vizinhos. Mas o primeiro pedido não resolveu. Foi preciso fazer mais dois. A pressão era enorme. Para se ter uma ideia do que o lugar representava para o mercado imobiliário, sua foto aérea ilustrou, em 2001 – portanto três anos antes do tombamento – uma reportagem, publicada em importante revista semanal, sobre “os terrenos milionários da cidade”.
A partir do tombamento, os proprietários passam a ser obrigados a pedir autorização para qualquer alteração no terreno. Era a primeira vitória, mas ainda havia muita estrada pela frente. Somente em 2006, dois anos depois do tombamento é que começou a tramitar na Câmara Municipal o projeto de lei 345/2006, que propunha a criação do Parque Augusta. No mesmo ano, o então proprietário anunciou a intenção de construir um hipermercado e depois tentou aprovar o projeto de um prédio.
Em 2008, o terreno recuperou o título de utilidade pública, e em 2011 a Câmara votou em primeira instância o projeto de criação do parque, mas as ameaças de perda da área verde continuaram. Em 2012, duas construtoras adquiriram o terreno e, no ano seguinte, bloquearam o acesso do público.
Três movimentos por um único parque
O Movimento Parque Augusta só foi surgir em 2013, composto por três diferentes grupos: Organismo Parque Augusta – OPA, Aliados do Parque Augusta e Parque Augusta sem Prédios. No final do mesmo ano, foi sancionada a Lei 15.941 que criou o parque. Mas, inexplicavelmente, no início de 2015, o próprio órgão responsável pelo tombamento do terreno autorizou a construção de prédios no local. Começava aí a batalha final, que correu, paralelamente, na Justiça e nas ruas.
Enquanto corria a disputa judicial, ativistas ocuparam a área, limparam o terreno e reabriram o parque ao público oferecendo atividades gratuitas como apresentações musicais, brincadeiras e oficinas, mas foram expulsos com violência após a aprovação de uma reintegração de posse. As manifestações pela criação do Parque Augusta se repetiram com formatos criativos e impactantes como o abraço simbólico ao terreno que é última área verde do centro da cidade.
Outra ação simbólica e bem humorada foi o pic nic no asfalto da rua Augusta, que integrou a programação da Virada Sustentável. Na falta do parque e para demonstrar sua necessidade, famílias inteiras compartilharam alimentos, brincaram e ouviram música sentadas no meio da rua, bloqueando a passagem dos carros.
O valor arqueológico do Parque Augusta
Embora as ações dos moradores, artistas, políticos e do Ministério Público, tenham sido o motor fundamental para o desfecho dessa batalha, um fator pode ter feito cair a gota d’água que faltava para os proprietários do terreno aceitarem fazer acordo com a Prefeitura. Foi a suspeita de que o local pudesse abrigar um importante patrimônio arqueológico, o que dificultaria, ainda mais, a construção de prédios no local.
Escavações feitas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan descartaram, pelo menos até o momento a possibilidade de ter havido assentamentos indígenas na área do parque, embora se saiba que ali perto passava o Caminho do Peabiru – uma das trilhas abertas por nativos sul-americanos muito antes da chegada dos europeus –, mas revelaram material arqueológico dos século 19 e do início do século 20 que poderão colocar o Parque Augusta na condição de sitio arqueológico, o que seria inusitado para sua localização em pleno Centro de São Paulo.
Parte do que seria esse sitio arqueológico já pode ser visto pelos frequentadores e ocupa uma área significativa do parque: são as trilhas que cortam o bosque centenário e fragmentos do prédio do Colégio Des Oiseaux, demolido na década de 1970, ambos trazidos à superfície durante as escavações. As buscas arqueológicas revelaram, também, arcos localizados em um muro que provavelmente continham tubulações usadas para escoamento de água, ou seja, um pequeno aqueduto.
Há, ainda, um acervo com mais de duas mil peças ou fragmentos construtivos como pisos, soleiras de portas, cerâmicas e metais ou peças utilitárias e decorativas como louças e vidros que estão sendo tratados no Centro de Arqueologia de São Paulo e em algum momento deverão ser expostos no próprio parque.
Patrimônio Histórico e Cultural
Além de constituir uma das últimas áreas verdes no centro de São Paulo e de ter se revelado como um pequeno sítio arqueológico, o local abriga duas construções tomadas pelo Iphan que foram restauradas durante as obras de instalação do parque: o arco de entrada do antigo Colégio Des Oiseaux e a Casa das Araras – espécie de edícula que hoje funciona como um centro de exposições e provavelmente abrigará o acervo arqueológico encontrado no parque.
Embora não estejam tombados, os grafites e pichações anônimos – feitos ao longo do tempo na parte interna do muro e na parede externa da Casa das Araras – foram preservados como registros históricos a pedido dos movimentos que reivindicaram a construção do parque e continuam a compor a paisagem do parque.
Parque Augusta: pulmão do Centro
Acima de tudo, o Parque Augusta representa um importante patrimônio ambiental – um respiro no coração de um Centro quase todo tomado por prédios e vias asfaltadas. São 920 árvores, incluindo espécies nativas remanescentes da Mata Atlântica. A proposta dos idealizadores do parque é não apenas preservar a vegetação original, mas também ir substituindo as espécies exóticas por outras nativas à medida em que as primeiras forem morrendo.
Em meio às árvores, encontram-se 21 espécies de aves nativas como ferreirinho-relógio e, entre elas, há três que podem, a qualquer momento, entrar em risco de extinção em consequência do trafico a que estão expostas: o carcará, o periquito-rico e o beija-flor-tesoura.
Por tudo que foi dito, e pela própria atmosfera que acabou adquirindo, o Parque Augusta se apresenta não apenas como espaço de lazer e área de preservação ambiental, histórica e arqueológica, mas também como um lugar de leitura e reflexão. E os frequentadores fazem isso sentados em bancos, deitados em redes ou espalhados entre as ruínas do antigo colégio.2
Notas
- 1 A parte do terreno onde se encontra o Sedes Sapientiae foi desmembrada e o prédio hoje pertence Pontifícia Universidade Católica - PUC
- 2 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares especiais de São Paulo: Bixiga / Minhocão / Vila Itororó / Teatro Oficina / Capela de Santa Catarina / Theatro Municipal / Liberdade / Viaduto do Chá / Galeria do Rock / Parque Savóia / Pavilhão da Bienal / Casa de Yayá
Parque Augusta – São Paulo – São Paulo – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1,6,7,8,9 e 10) Sylvia Leite
- (2) Arquivo pessoal de Irmã M.D.
- (3, 4 e 5) Márcia Minillo, do site Sampa Inesgotável
Referências
Referências
Para saber mais
- Conheça outros parques em São Paulo no blog Viajando com a Cintia
Sylvinha, parabéns pelo primoroso texto e por nós mostrar lugares incríveis!
Obrigada, Maria Consuelo. Toda semana tem matéria nova no blog. Volte sempre!
Belo registro, Silvinha. Uma linda história de luta da população pelos seus direitos e a necessidade de preservar os poucos lugares humanizados de uma cidade tão hostil. Uma vitória da comunidade.
Faltou a localização!
Quero visitá-lo em breve.
Venha. Fica na minha casa rsrs
Silvia, você sempre arrasando nos seus post. Não canso de te parabenizar. Já quero conhecer o Parque Augusta . Quando for a SP vou incluir no meu roteiro,
Inclua mesmo. Além de ser um lugar bonito, agradável e interessante, tem toda essa história por trás.
Não conheço esse parque, Sylvinha. E um dos meus passatempos no final de semana, quando morei em São Paulo, era explorar a cidade. Comprei um livro que fala de cada bairro e a cada final de semana, eu e João Miguel íamos conferir. Esse parque, agora, é uma pendência – que eu pretendo resolver logo, logo!
O Parque é novo. Foi inaugurado agora em novembro. Os moradores da região lutaram anos por isso. Vale a pena conhecer porque é um espaço bonito e interessante, mas também pela história.
Parabéns, Sylvia Leite.
O texto sobre o Parque Augusta é bem interessante e esclarecedor.
Na década de 1970 participei de vários shows no Centro Cultural que havia no local e era comandado pelo, hoje Apresentador do “Altas Horas”, da Rede Globo, Serginho Grosman.
Que me lembro, participei dos shows de Gonzaguinha, Hermeto Paschoal, Gilberto Gil, Made in Brasil, Tony Osanah, um espetáculo do Grupo Tuca (Teatro da PUC), Mutantes, Renato Teixeira, Sa’ , Rodrigo e Guarabira, Novos Baianos, Elba Ramalho, Walter Franco, Raul Seixas, Ave de Veludo, Taiguara, Barca do Sol, Ritchie, The Bubbles (A Bolha), Joelho de Porco, Heavy Band (de Angola), Patrulha do Espaço, Secos & Molhados, Som Imaginário, Som Nosso de Cada Dia, O Terço, Veludo, Vi’mana, As Coristas do Inferno, Ed Motta e outros que a memória não ajuda a lembrar.
Legal, Ivan. Bom saber que a matéria te trouxe boas lembranças. Obrigada pelo comentário.
Muito interessante este texto Sylvia, sobre o parque! Eu nem conhecia sobre o Parque Augusta em São Paulo e achei bem interessante saber da história e do processo para a constituição deste espaço conquistado!
O Parque Augsta foi inaugurado agora , dia 6 de novembro.
Finalmente o Parque Augusta né! Foi por muito pouco que ele não vira alguns prédios. Quero visitar ele em breve!
Verdade, Diego, quase vira prédio, quase vira hotel, quase que os paulistanos perderam essa área verde com elementos históricos e arqueológicos.
Eu já passei por esse Parque Augusta quando estive em São Paulo. Não conhecia essa história pela conquista do espaço. Amei saber!
É uma longa história, uma história com final feliz.