Parelheiros, Marsilac e Bororé: refúgios naturais dentro de São Paulo

Tempo de Leitura: 12 minutos

Atualizado em 02/05/2024 por Sylvia Leite

Pessoas na Trilha do Saci - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIA“Tem gente que pensa que São Paulo termina no Autódromo de Interlagos”, diz Amanda Roschel Fernandes, gestora do Parque de Jaceguava, que fica cerca de 17 km além da pista de corrida. A frase bem humorada nos remete à imagem que todos fazemos da maior metrópole da América Latina como lugar de caos urbano e poluição, sem saber – ou pelo menos sem lembrar – que o município possui 54,1% de cobertura vegetal e que ‘pra lá’ do autódromo existe um surpreendente Polo de Ecoturismo. A área, localizada no extremo-sul do município, é composta pelos distritos de Parelheiros e Marsilac, e pela Ilha de Bororé que, juntos, ocupam quase um terço do mapa do município. Seu territórios abrigam cinco Parques Naturais – incluindo aquele administrado por Amanda – duas Áreas de Preservação Ambiental (APAs) e dezenas de propriedades privadas comprometidas com a produção sustentável ou com a preservação da natureza.

Os parques – Jaceguava, Itaim, Varginha, Bororé e Cratera de Colônia – estão entre os sete constituídos a partir de 2012 com o propósito de compensar o impacto causado pela construção do Rodoanel Mário Covas – rodovia que circunda a cidade e tem a função de afastar os veículos pesados do perímetro urbano. Já as APAs são um pouco mais antigas – 2001 – e representam um marco na luta pela preservação ambiental daquela área que há décadas vem sendo degradada: inicialmente pela extração de madeira e pela produção de carvão e, mais recentemente, por ocupações irregulares.

Como ocorre em empreendimentos semelhantes, o Polo de Ecoturismo de São Paulo oferece trilhas, observação de aves, atividades esportivas e de aventura, mas seu maior diferencial talvez esteja na diversidade cultural e nas particularidades de cada parque ou área de proteção. Entre as curiosidades do lugar, destaca-se a Trilha do Saci – no Parque Jaceguava -,  onde amostras de dois biomas são apresentadas lado a lado. Parte da Placa de sinalização no Parque Jaceguava - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIA trilha está rodeada por espécies do Cerrado e outra parte por vegetação típica da Mata Atlântica. As diferenças entre ambas podem ser sentidas tanto por meio da textura de caules e folhas como pela mudança de temperatura.

Outro parque de característica inusitada é o da Cratera de Colônia 1 (infelizmente fechado ao público) que, como o nome revela, está localizado em uma enorme cavidade aberta pela queda de um meteorito. Esse tipo de depressão recebe o nome de Cratera de Impacto e pode ser encontrada em 178 lugares ao redor do mundo, mas apenas duas delas – entre as quais a de Colônia –  são habitadas. A outra é a de Ries, que fica na Alemanha, e abriga a cidade medieval de Nördlingen.

Nos quatro parques visitáveis há brinquedos artesanais produzidos a partir do aproveitamento da madeira das árvores caídas, idealizadados pelo gestor geral dos Parques Municipais de São Paulo, Marcelo Mendonça. Outra criação de Marcelo  é uma cadeira de ferro inspirada na famosa Julietti – destinada a facilitar o acesso de pessoas com dificuldade de locomoção. O projeto já ganhou o apelido de Marcelete, mas ainda está à espera de patrocínio para ser concretizado. Enquanto isso não acontece, os parques utilizarão cadeiras industrializadas para PCDs que já foram adquiridas e serão disponibilizadas aos visitantes logo após treinamento da equipe.

Produção e arquitetura sustentáveis

Adubo organico nas mãos da produtora - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIA Graças ao grande número de pequenas propriedades de base familiar – muitas delas comprometidas com a produção orgânica e a preservação ambiental – a região de Parelheiros e Marsilac vem sendo reconhecida há algumas décadas como importante produtora de alimentos. Mas os alimentos representam apenas uma parte das atividades sustentáveis da região.

A  empresa de compostagem orgânica Planta Feliz é um bom exemplo dessa diversificação. Sua história começou em 2009, quando Marina Sierra de Camargo adquiriu uma composteira doméstica e iniciou a coleta de resíduos orgânicos entre parentes e amigos. A experiência deu certo e acabou se transformando no primeiro pátio privado de compostagem natural da cidade de São Paulo, tocado por ela e pelo marido Adriano Sbarg.

Assim como ocorreu no período experimental, a empresa engloba todo o ciclo do reaproveitamento, desde a coleta – em pequenos, médios e grandes produtores de resíduos – até a produção do adubo.  A compostagem ocorre em ambiente externo, por meio do método aeróbio termofílico, em plataformas conhecidas como leiras. Em um segundo momento, o processo é acelerado por meio da técnica de minhocultura.

Instalada em uma propriedade da família Adriano, que no passado abrigou a criação de suínos do Frigorífico Santo Amaro/Eder, a Planta Feliz inclui em suas visitas monitoradas um tour pelas antigas instalações da fazenda e um relato de sua história.

Fachada da Casa da Girafa em Parelheiros - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAO mesmo comprometimento com a preservação da natureza e da memória da região, é visto na Casa da Girafa, do artista plástico Luiz Cardoso, que levou sete anos para ficar pronta. Todo o material utilizado na obra foi recolhido por Luiz em demolições na cidade de São Paulo, onde morava.

Além de reaproveitar recursos de outras construções, o artista se preocupou também em realocar materiais dentro do próprio processo construtivo. A maior evidência dessa integração talvez seja o pequeno lago ornamental localizado no jardim interno que, ao ser cavado, forneceu terra para outras partes da obra.

Havia também um desejo de quebrar padrões arquitetônicos e estéticos, e de resgatar técnicas tradicionais de construção, como pau a pique e taipa de pilão, usadas em grande parte dos cômodos. Além disso, o artista fez questão de mesclar elementos culturais da região, que foi ocupada, em diferentes épocas, por alemães, japoneses e povos originários. Já para o nome da casa, ele dá a seguinte explicação: “a girafa é um animal de poder e tem um coração muito grande”.

Assim como na Planta Feliz, a Casa da Girafa está aberta a visitas agendadas, guiadas pelo próprio artista com apoio do companheiro Caiê Rinaldini, que vive com ele na residência-ateliê.

Desenvolvimento humano e gestão coletiva

Exposição na Casa do Rosário - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIANão muito longe dali, encontra-se o Centro Paulus – criado em 1981, pela Associação Tobias, como local de estudos e atividades de desenvolvimento humano voltados à Antroposofia. Em 2017, quando a entidade decidiu encerrar as atividades do centro, antigos funcionários adquiriram as instalações coletivamente e implantaram uma gestão compartilhada.

Embora continue realizando cursos e seminários, o centro agora funciona também como pousada e restaurante abertos ao público. Além da estrutura educacional e de hospedagem, o centro mantém a galeria Casa do Rosário, voltada especificamente para a arte popular brasileira. Seu curador, Marco Túlio de Freitas Amaral, passou anos viajando pelo país a fim de conhecer artistas e recolher obras autênticas para a formação de seu acervo permanente.  Além disso, a galeria realiza constantemente exposições temporárias.

Templos religiosos e cemitério

Solo Sagrado de Guarapiranga - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAO Polo de Ecoturismo reúne, também, significativos templos religiosos, seja por sua história, seja pela quantidade de fiéis que consegue atrair. Um exemplo do primeiro caso é a Igreja de Santa Cruz, cuja fundação estaria relacionada à Guerra do Paraguai por ser resultado da promessa do morador Amaro de Pontes que, com medo de morrer na guerra, teria se comprometido a construir uma capela caso sobrevivesse. Outra versão da história diz que ele apenas fincou uma cruz no local e que a igreja veio depois.

A Igreja de Santa Cruz foi erguida em 1898, no terreno onde hoje se encontra a praça Júlio César de Campo – local que sedia os principais eventos de Parelheiros e desde 2018, está tombada pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp). À sua frente, há uma estátua da escritora Carolina Maria de Jesus – autora do famoso romance “Quarto de Despejo: Diário de uma Favela” -, que, por muitos anos, foi moradora de Parelheiros.

Fachada e placa do Cemitério de Colonia em Parelheiros - Foto de Julio Prado - BLOG LUGARES DE MEMORIAOutra construção religiosa que chama a atenção na área do Polo de Ecoturismo é o Solo Sagrado de Guarapiranga, da Igreja Messiânica (foto acima). Erguido em 1995, à margem da represa de mesmo nome, o templo de Parelheiros foi o primeiro a ser construído fora do Japão e chama a atenção por seu projeto arquitetônico, com um anel sustentado por 16 pilares que representam os pontos cardeais, além de uma torre de 71 metros de altura.

O Solo Sagrado de Guarapiranga tem capacidade para mais de 17 mil pessoas e em dias de celebração costuma receber gente de várias partes do mundo. O templo foi erguido em uma área de aproximadamente 93 hectares, reconhecida pela Prefeitura de São Paulo como Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN).

A região abriga, ainda, uma necrópole histórica, tombada pelo Conpresp e considerada, por várias fontes, a mais antiga de São Paulo. 2. Construído em 1829, por alemães luteranos 3, e posteriormente compartilhado por cristãos da mesma origem geográfica, o Cemitério de Colônia ocupa um terreno doado por Dom Pedro I e ainda conserva elementos originais. São lápides em alvenaria, com formatos muito simples, e cruzes de ferro fundidas na Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema – uma empresa de capital misto criada pela Coroa Portuguesa.

Povos originários na Terra da Garoa

Mulher indígena em aldeia de Parelheiros - Foto de Julio Prado - Blog Lugares de MemoriaSe é verdade que, como disse Amanda, muita gente nem desconfia que São Paulo se estende além do Autódromo de Interlagos, imagine a surpresa dessas pessoas ao descobrir que dentro do município ainda existem 14 tekoa (nome indígena para aldeia) 4do povo Guarany Mbya com aproximadamente 2 mil habitantes. A área que os abriga tem o nome de Terra Indígena Tenondé Porã (ou Futuro Melhor, em língua nativa) e abrange aproximadamente 16 mil hectares, estendendo-se também aos municípios vizinhos de Monguaguá, São Bernardo do Campo e São Vicente.

Algumas aldeias são abertas a visitas agendadas. Quem adere aos roteiros, tem a oportunidade de degustar comidas tradicionais, participar de brincadeiras ou assistir à apresentação de um coral, além de obter informações sobre a cultura Guarani e a relação dos indígenas com a mata. É possível, ainda, comprar artesanato feito pelos indígenas. Mas para ter acesso a tudo isso é preciso aceitar as regras estabelecidas pela comunidade.

História e importância da região

Represa de Guarapiranga - Foto Governo do Estado em WikimediaA região de Parelheiros – que inclui também o distrito de Marsilac – é considerada estratégica para a vida da cidade de São Paulo, tanto no aspecto ambiental como no de abastecimento. Seu terreno, de aproximadamente 350 Km², abrange importantes remanescentes da Mata Atlântica e uma rede hídrica formada por três bacias.

Essa configuração ambiental favorece a conservação da biodiversidade, ajuda a melhorar a qualidade do ar e determina a ocorrência de baixas temperaturas (diferença de 3 a 5 graus em relação à área urbana) com uma elevada incidência de chuvas, o que regula as correntes térmicas.  Além disso, as represas construídas em duas de suas bacias – Billings e Guarapiranga – fornecem água para 25% da população do município.

Parelheiros

O distrito de Parelheiros, onde se localiza grande parte do Polo de Ecoturismo, pertenceu inicialmente ao atual bairro de Santo Amaro, que até o início do século 20 era um município. Em 1830 (há quem fale em 1827), a região recebeu cerca de 200 imigrantes – entre alemães, austríacos e suíços – que estabeleceram ali a sua colônia agrícola. Mas a falta de assistência do governo e a infertilidade das terras fizeram com que muitos abandonassem o local e menos de duas décadas depois o grupo estava reduzido a nove famílias. Mesmo assim, a presença desses imigrantes permanece viva em nomes de ruas, estabelecimentos comerciais e até do próprio distrito que faz referência às corridas de cavalos (ou parelhas) disputadas entre eles e os habitantes locais ou caipiras.

Mapa de São Paulo - Secretaria Municipal de Subprefeituras - BLOG LUGARES DE MEMORIACom apoio da Colônia Alemã da cidade de São Paulo, os descendentes desses imigrantes empenham-se em resgatar sua cultura. Em 2.000, conseguiram reabrir o cemitério – parcialmente desativado a partir da Segunda Guerra e totalmente fechado em 1996. Além disso, criaram a Colônia Fest – inspirada na Octuberfest – que desde 2007 comemora sua chegada na região.

Na década de 1940, foi a vez dos japoneses. Eles vieram ao Brasil fugidos da Segunda Guerra e acabaram transformamdo Parelheiros – na época Santo Amaro – em uma importante área agrícola, com a produção de hortaliças e plantas ornamentais. O Solo Sagrado de Guarapiranga, templo da religião messiânica – é um dos mais fortes sinais da presença japonesa na região.

Marsilac

O distrito de Marsilac surgiu à margem da Sorocabana – estrada de ferro que foi usada, até 1975, para o transporte de passageiros e hoje está restrita aos trens de carga. Embora integre, hoje, a subprefeitura de Parelheiros, pertenceu, até 1944, ao município de São Vicente. Seu nome é uma homenagem ao engenheiro José Alfredo de Marsillac, autor de técnicas inovadoras que permitiram a construção de estradas e de túneis na região. É em Marsilac que se concentra, atualmente, a população de povos originários da região. Parte deles nos território indígena e outra parte dispersa nos arredores da área urbana.

Ilha de Bororé

Imagem do site Borore ao mundoA terceira integrante do Polo de Ecoturismo, a Ilha de Bororé – que na verdade é uma península – pertence ao distrito de Grajaú e se formou, a partir de 1904, em torno da Capela de São Sebastião, que guarda uma característica muito particular. Segundo a moradora Suely Rocha, a imagem do santo de devoção é feita de taipa e foi modelada por indígenas. O nome Bororé é de origem Tupi e, segundo o dicionário Priberam, é como os nativos chamavam o veneno utilizado nas pontas das flexas.

Com cerca de 6 mil habitantes, talvez seja a área habitada mais preservada da região por ficar escondida atrás da Represa de Guarapiranga. Em 2017, foi incluído no projeto Mapografias Urbanas da Faculdade de Arquitetura e Ubanismo da USP que atua em conjunto com a Escola Estadual Adrião Bernardes e com a Casa Ecoativa – coletivo vltado para a valorização cultural da ilha – formando jovens para a pesquisa além de incentivar práticas de expressão cultural e de sustentabilidade.

Problemas e estigma

Ao lado de tanta riqueza natural, histórica e cultural, a região de Parelheiros acumula graves problemas, especialmente de ocupação irregular provocada pela especulação imobiliária que valoriza terrenos e imóveis dentro cidade de São Paulo, empurrando a população mais vulnerável para as regiões periféricas. Segundo dados do Cadastro da Subprefeitura de Parelheiros, 70% dos bairros da região ocupam indevidamente Áreas de Preservação Ambiental (APPs).

Ainda segundo a Prefeitura, os distritos de Parelheiros e Marsilac carecem de infra-estrutura, oportunidade de trabalho, e formação profissional, o que os coloca em situação de alta ou muito alta vulnerabilidade – condição que lhes rendeu o estigmaCapa do Plano de Visitação da Terra Indígena Tenondé Porã de ocupação desordenada e de violência. Recentemente, a região ganhou uma nova fama negativa: a de ter péssima conexão com a internet.

A aposta no turismo sustentável

A chegada do turismo, no entanto, parece estar trazendo novas perspectivas, seja pela gradual conscientização para o uso disciplinado das reservas, seja por um certo  incremento da economia. Os produtores e artesãos envolvidos no projeto complementam a renda principal com a receita das visitas. Além disso, o aumento da circulação de pessoas ajuda a aquecer o comércio, especialmente no ramo da alimentação.

Mas há quem esteja atento aos riscos envolvidos nessa iniciativa. É o caso das comunidades de povos originários que, apesar de enxergarem no turismo uma “oportunidade de divulgar sua cultura e conquistar aliados para sua causa”, consideram indispensável disciplinar essa atividade. Para isso editaram o Plano de Visitação da Terra Indígena Teinondé Porã e o Manual de Conduta, que além de estabelecerem regras, alertam para a necessidade de prevenir conflitos gerados por diferenças culturais, especialmente na forma de comunicação, ou pela criação de falsas expectativas por parte dos visitantes.5

Notas

Parelheiros, Marsilac e Bororé – São Paulo – São Paulo – Brasil – América do Sul

Texto

Pesquisa

Fotos

Referências

Agradecimentos

  • Aos guias do programa Vai de Roteiro: Cibele Eloá Lima da Silva, Jair Rodrigo Ribeiro e Julio Prado
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6 Comentários
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Marcia Alves
Marcia Alves
11 dias atrás

Muito interessante! Parabéns pela matéria!

Sonale
Sonale
11 dias atrás

Excelente matéria !Parabéns a equipe.

Benedita Rezende Farabotti
Benedita Rezende Farabotti
9 dias atrás

Amei , não conhecia essa parte da História de São Paulo. Ótima matéria.