Atualizado em 07/07/2024 por Sylvia Leite
Quem visita hoje a Liberdade, na região central de São Paulo, pode jurar que o bairro sempre foi habitado por orientais. Das vistosas luminárias suzurantu, a delicados jardins com lago de carpas; dos letreiros de lojas aos produtos colocados à venda, tudo nos faz lembrar japoneses, chineses ou coreanos. Até a estação de metrô leva o nome do Japão. Mas antes da chegada dos imigrantes orientais – o que só teve início no século 20 – aquela área foi ocupada inicialmente por indígenas e depois por negros.
Pouco se sabe sobre os indígenas que habitaram o local, a não ser que eram da tribo do cacique Caiubi, posteriormente convertido ao catolicismo e batizado como João a fim de colaborar com a catequese dos Jesuítas. Já a história dos negros, passada entre os séculos 18 e 19, deixou rastros físicos. Os mais evidentes são a Capela dos Aflitos e a Igreja dos Enforcados. Mas os ecos desse período encontram-se também na história oral e nas manifestações religiosas que resistiram à ocupação oriental e hoje convivem lado a lado com as narrativas e os eventos das culturas japonesa, chinesa e coreana.
O culto a Chaguinhas e a origem do nome Liberdade
Um dos elementos mais fortes da presença negra no bairro da Liberdade é a devoção a Chaguinhas – um homem que nunca foi canonizado pela Igreja Católica, mas adquiriu status de santo popular e até hoje é cultuado por ter realizados supostos milagres. Segundo as narrativas orais do bairro, o nome Liberdade está diretamente relacionado ao episódio de sua morte.
Francisco José das Chagas era soldado e foi condenado à forca por ter liderado um movimento pela equiparação dos soldos de seu batalhão, formado por ex-escravizados e outros excluídos, com o soldo dos soldados portugueses. Mas o enforcamento, marcado para o dia 20 de setembro de 1821, não foi realizado. Houve três tentativas e em todas elas a corda arrebentou. Os católicos que assistiam à execução, na sua maioria negros, viram o rompimento das cordas como um sinal da inocência de Chaguinhas e, para expressar essa opinião, passaram a gritar seguidamente a palavra Liberdade – que nomeou a praça e depois o bairro.
Mesmo com toda a pressão popular, e com a Lei a seu lado – pois, segundo a legislação da época, se a corda rebentasse durante um enforcamento, o condenado deveria receber o perdão – Chaguinhas não foi absolvido e acabou morto a pauladas. No lugar de sua execução, começaram a surgir os primeiros sinais de culto, com pessoas acendendo velas e fazendo orações. Incialmente foi erguida uma cruz e cerca de três décadas após a sua morte foi construída no local a Igreja Santa Cruz das Almas dos Enforcados. Essa igreja está localizada em frente à Praça da Liberdade e poucos conhecem sua história.
A Capela e o Cemitério dos Aflitos
Mas esse não é o principal lugar de culto a Chaguinhas. Após a execução, seu corpo foi levado para a Capela dos Aflitos, localizada dentro do cemitério de mesmo nome. Nessa capela, foi criado uma espécie de oratório, diante do qual os fiéis realizam um ritual de devoção ao mártir negro. O cenário é uma porta de madeira, onde está pendurada uma corda com laço, como se estivesse pronta para um enforcamento. Logo abaixo, há um um genuflexório onde os fiéis se ajoelham um a um.
O ritual de devoção a Chaguinhas inclui orações, pedidos por escrito que são enfiados nas frestas da madeira e três batidas na porta, simbolizando o rompimento das três cordas com as quais os soldados tentaram em vão enforcá-lo. O ritual se encerra na sala vizinha, onde os fiéis acendem velas. E tudo isso poderá se tornar patrimônio imaterial da Cidade de São Paulo.
Hoje, a capela empresta seu nome à rua sem saída onde está localizada: a Rua dos Aflitos – mais conhecida como beco dos Aflitos – e conta com um forte movimento popular, liderado pelo coletivo União dos Amigos da Capela dos Aflitos (Unamca), que luta por sua restauração. Já o cemitério foi demolido no final do século 19, em decorrência da criação do Cemitério da Consolação, para onde, pelo menos em tese, foram levados os os jazigos encontrados ali.
Ocorre que durante demolição de um prédio – localizado ao lado da Igreja -, foram encontradas nove ossadas, datadas de pelo menos 200 anos. O terreno seria usado para a construção de um centro comercial. Mas a obra foi embargada e já existe uma Lei, de número 17.310, a construção de um Memorial dos Aflitos em homenagem aos ex-escravizados e outros excluídos que foram enforcados na praça e enterrados no antigo cemitério.
A escola de samba mais antiga da cidade
Mas nem só de tristeza e de religiosidade vive a história dos negros na Liberdade. Entre esse bairro e o vizinho Glicério, foi criada, em 1937, a Lavapés – uma das mais antigas escolas de samba de São Paulo, a mais antiga em atividade e talvez a mais premiada, pois acumula 20 títulos. Seu atual diretor é o ator Ailton da Graça, mas a o grande nome da escola foi Deolinda Madre ou Madrinha Eunice – fundadora e diretora por quase seis décadas.
A memória de Madrinha Eunice – chamada assim por haver batizado um grande número de crianças – foi resgatada, em abril de 2022, por meio de uma estátua de bronze instalada na calçada da Praça da Liberdade, próxima à saída do metrô. A sambista foi uma das primeiras homenageadas por um projeto do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH), da Secretaria Municipal de Cultura, que reconhece, por meio de monumentos, a importância de personalidades negras para a história paulistana.
A presença japonesa na Liberdade
Embora os primeiros japoneses tenham chegado ao Brasil em 1908, e ao local por volta de 1912, quando passaram a ocupar quartos nos porões da rua Conde de Sarzedas, foi somente uns quarenta anos depois que o bairro assumiu uma aparência mais oriental. O que trouxe essa nova característica foi a abertura de lojas de produtos nipônicos, motivada pelo grande movimento do Cine Niterói, criado em 1953 para exibir filmes japoneses.
Àquela altura, a colônia japonesa, que foi aos poucos se formando na Liberdade, já contava com uma escola destinada aos filhos de imigrantes. Já havia, também, o jornal São Paulo Shimbum, que circulou em versão impressa até 2018 e segue até hoje com sua versão digital. Mas a ideia de construir um bairro oriental só iria surgir na década de 1970.
O projeto foi inspirado na China Town, de Nova Iorque. A mudança mais visível trazida pela nova decoração do bairro, inaugurada em 1974, foi a substituição dos postes convencionais pelos semi-arcos vermelhos que sustentam as lanternas conhecidas como suzurantu. Mas a decoração japonesa inclui, ainda, um Torii – espécie de portal xintoísta usado como proteção contra os maus espíritos, jardins japoneses, sem falar nos letreiros das lojas escritos em japonês e iluminados por neon.
A decoração oriental transformou a Liberdade em um ponto de atração turística que se mantém até hoje. E quase todos esses itens decorativos resistiram ao tempo. A única exceção são os letreiros em neon que estão proibidos desde 2007, quando foi aprovada a Lei Cidade Limpa. Houve também a troca das lanternas originais, de vidro, por outras de prolipropileno, mas para quem não se liga em detalhes, a mudança pode ter passado despercebida.
Eventos e manifestações
Os japoneses ainda são responsáveis pela maior parte dos eventos e manifestações culturais que se tornaram tradição no bairro. O mais conhecido talvez seja o Tanabata Matsuri, ou Festival das Estrelas. A festa tem origem em uma lenda que fala de amor e de trabalho.
Segundo a essa narrativa folclórica, a princesa Orihime (estrela Vega), filha do Senhor Celestial, vivia triste porque trabalhava muito como tecelã e não tinha tempo para se apaixonar. A fim de acabar com essa tristeza, seu pai lhe apresentou Hikoboshi (estrela Altair) e os dois rapidamente se apaixonaram. Ocorre que logo depois do casamento Orihime e Hikoboshi começaram a esquecer seus afazeres. O pai dela, furioso, decidiu então separá-los em margens opostas de Amanogawa (Rio do Céu).
Como a tristeza de Orihime voltou, o Senhor do Céu permitiu que eles se vissem uma vez por ano, desde que no restante dos dias cumprissem com suas obrigações. E é no dia do encontro de Orihime e Hikoboshi, o sétimo dia do sétimo mês lunar (que costuma cair em julho), que os japoneses pedem pelo desenvolvimento de suas habilidades.
Outra contribuição dos japoneses é a Feira da Liberdade, realizada aos domingos desde 1973, que, embora já não seja exclusivamente nipônica, nem sequer exclusivamente oriental, – reúne desde artesanato japonês – como as colheres de madeira e as luminárias de papel – até pratos típicos a preços populares. Isso sem falar nos restaurantes típicos e nas lojas que oferecem de doces a conservas, de louças a futons. Para completar, o bairro abriga o Museu da Imigração Japonesa.
Ao lado das tradições, estão os elementos da cultura atual que agradam especialmente aos mais jovens. Caso dos Karaokês , surgidos entre as décadas de 1980 e 1990, e dos ‘Animes‘ e ‘Mangás – respectivamente animações e historias em quadrinhos – encontrados em duas livrarias tradicionais: a Sol, na Praça da Liberdade, e a Fonomag, na Rua da Glória.
De japoneses a orientais
Já faz tempo que a Liberdade deixou de ser habitada principalmente por japoneses. Muitos deles mudaram-se para outros bairros, deixando no local apenas seus negócios. Em seu lugar, chegaram chineses e coreanos que hoje têm também uma forte presença no bairro, tanto na condição de moradores, como no comércio e nas tradições culturais.
O ano novo Chinês, por exemplo, é uma das festas mais conhecidas do bairro e leva anualmente milhares de pessoas à praça da Liberdade. A data é comemorada entre o fim de janeiro e o começo de fevereiro, na primeira Lua Nova depois do solstício de inverno. Os festejos, realizados a céu aberto, incluem dança, música e fogos de artifício usados para espantar os maus espíritos.
Liberdade: uma mescla indivisível
A convivência entre a cultura negra e a leste-asiática no bairro da Liberdade foi abordada em um estudo acadêmico que resultou na História em Quadrinhos (HQ) “Indivisível“, vencedora do prêmio Troféu HQMix 2020. Ao escolher a Liberdade como tema do trabalho, sua autora, a artista gráfica Marília Marz, não conhecia a história negra do bairro. A decisão foi motivada por sua paixão por Animês e Mangás e a ideia era explorar apenas os elementos da cultura oriental, mas a descoberta desse aspecto pouco conhecido deu uma nova direção ao projeto.
Marília conta que naquele momento estava num processo de descoberta da própria identidade negra e foi surpreendente constatar que seu lugar preferido da cidade tinha a ver com sua origem. A partir desse momento, o foco do trabalho passou a ser “entender como que a Liberdade é um bairro oriental, mas é também um bairro negro, e como que essas duas coisas existem no mesmo lugar e sob diferentes camadas do tempo”.1
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, matérias sobre lugares com forte influência da cultura negra: Saracura / Bixiga / Mussuca
- 2 Leia, também, outras matérias sobre lugares especiais de São Paulo: Minhocão / Edifício Matarazzo / Theatro Municipal / Estação Júlio Prestes e Sala São Paulo / Bixiga / Teatro Oficina / Galeria do Rock / Vila Itororó / Beco do Batman / Cemitério da Consolação / Parque Augusta / Vila Itororó / Bixiga / Parque da Juventude / Pavilhão da Bienal
Liberdade – São Paulo – São Paulo – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1,2,3,4,5,6,7,9,11) Sylvia Leite
- (8) Facebook do Jornal São Paulo Shimbum
- (10) Vrsooo em Wikimedia - CC BY-SA 4.0
- (12) Ime007 em Pixabay
- (13) Still de vídeo para o Catarse - site Marília Marz
Participação especial
- Margareth Amin
- Sofia Marini
Referências
- Site do Condephaat
- União dos Amigos da Capela dos Aflitos (Facebook)
- Site Guia Negro
- Artigo: A História dos Negros no bairro da Liberdade - Guilherme Soares Dias - Revista Trip
Dez vezes que eu vá a SAMPA por ano, assim como preciso ir ao Bixiga a noite, passo obrigatoriamente uma manhã na Liberdade.
Eu também gosto muito de lá. Da comida, de passear pelas ruas e de assistir aos eventos.
Que história, Sylvinha! Eu não sabia… da próxima vez que eu for a São Paulo, vou voltar lá e olhar com mais cuidado, procurar por essas referências que você apontou no seu post.
Procure mesmo. Tudo que eu mostrei é de fácil acesso. Tudo gira em torno da Praça da Liberdade.
Gente, que incrível e especial é o bairro da Liberdade. Já passei na porta deste bairro multirracial algumas vezes e nunca deu tempo de entrar e explorar. Amei conhecê-lo através de seu texto!
Que bom, Deyse. Da próxima vez que for a São Paulo, não deixe de ir lá. Vale a pena passar pelo menos um dia inteiro para admirar a decoração, conhecer as igrejas, os jardins, as lojas, os produtos. E legal também consultar o calendário de eventos porque as festas da Liberdade costumam ser muito bonitas.
Não sabia nadda da origem desse bairto foi muito enriquecedor s. Dia 30 estarei là jà com outro olhar
Ah, que legal. É ótimo quando coincide da leitura acontecer antes da visita. Ajuda mesmo já ir sabendo um pouco sobre o lugar. Aproveite bem a Liberdade!
Gente! Eu não sabia desse aspecto multirracial do Bairro Liberdade. Sempre visitei com olhos voltados para a cultura oriental. Adorei saber.
Interessante, não é? E fica tudo praticamente no mesmo lugar. Convivendo lado a lado. É legal olhar a estátua da sambista embaixo da lanterna japonesa. Ou as lanternas japonesas na frente da Capela dos Aflitos.
Gratidão Sylvia pela linda matéria, o Coletivo UNAMCA e a Capela dos Aflitos está sempre de braços abertos a receber nossos amigos turistas do mundo todo.
Fazemos uma luta diária pela divulgação e resgate das memórias ancestrais indígenas e africanas presentes no bairro da Liberdade. Venham nos conhecer!❤️
Eu que agradeço pelas informações, pela leitura e pelo comentário. Fico feliz que tenham gostado, afinal, ninguém conhece melhor esse tema que vocês.
muito legal sua materia voce sabe me contar a historia da senhora que fica na escadaria ?
Que bom que gostou. De que senhora você está falando? Da que tem a estátua na praça? É a sambista Madrinha Eunice. Falei um pouco sobre ela na matéria.
O que eu mais gostava do Bairro multirracial da Liberdade, quando em morava em São Paulo, eram os deliciosos restaurantes. Vale a pena explorar a gastronomia de lá!
Os restaurantes da Liberdade são ótimos mesmo. E comer na feirinha de domingo também é bom.