Guinness: da cerveja ao livro de recordes

Tempo de Leitura: 8 minutos

Atualizado em 17/10/2022 por Sylvia Leite

Portão da cervejaria - Foto do site oficial da Guinness StoreHouse - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAA Guinness não é a maior cervejaria do mundo, não foi a primeira da Irlanda e sua cerveja não está entre as três mais vendidas atualmente. Mesmo assim, quem vai a Dublin costuma colocá-la nas lista do que pretende experimentar, nem que seja um golinho, ou voltar a consumir, no caso dos cevrejeiros. Mais que isso: a Guinness Storehouse – espécie de museu que conta a história da cervejaria – encabeça os roteiros de turismo na capital irlandesa. É a atração mais procurada do país com cerca de quatro milhões de visitas a cada ano.

Sedução é o que não falta, a começar pelo prédio do museu, que tem a forma de um pint – tradicional copo de cerveja, semelhante à ‘tulipa’ – que por aquelas bandas tem uma capacidade que gira em torno de meio litro. Para os que gostam de compras, há um loja imensa com produtos de toda espécie: de sacolas a camisetas, de bonés a jaquetas, de chaveiros a canetas. Isso sem falar nos copos e louças – tudo gravado com a marca da cerveja. A visita inclui, ainda, umaPint de Guinness - Foto de engin_akyurt-3656355 - BLOG LUGARES DE MEMORIA viagem pelos maquinários históricos, o contato com as matérias primas e uma experiência didática, em que se aprende a maneira correta – em duas etapas – de ‘tirar’ uma Guinness. E pra completar, o ingresso, que não é barato, dá direito à degustação de uma pint no panorâmico Gravity Bar, que fica no último andar do prédio e, com sua aparência clara e envidraçada, representa a parte superior do pint onde fica a espuma.

Guinness: uma história curiosa

Mas o que faz da Guinness uma fábrica lendária é sua história de mais de dois séculos e meio, repleta de curiosidades, que vão se apresentando durante a visita ao museu, com a ajuda de recursos visuais. Uma das preciosidades é o contrato de aluguel assinado pelo fundador da empresa, Arthur Guinness, para dar início à sua produção, em 1758. O contrato, que incluía o galpão de uma velha fábrica de cerveja e vários terrenos à sua volta, foi fechado pelo valor £45 libras anuais, com validade de nada menos que 9 mil anos.

Antigos barris de cerveja - Foto de Jessica Johnston on Unsplash - BLOG LUGARES DE MEMORIAApenas uma década depois da criação da fábrica, a Guinness fez sua primeira exportação para a Inglaterra e com mais 25 anos passou a ser consumida regularmente pelos ingleses. Pouco depois de completar meio século de existência, a cervejaria já era famosa em toda a Europa. Em seguida conquistou a África e no início do século 20 chegou a ser a cerveja mais consumida do mundo.

Com o tempo, a Guinness perdeu espaço internacional, principalmente para as cervejarias estadunidenses, mas continua a ser uma das maiores do mundo, com produção em cerca de 60 países e consumo em mais de 150. Além disso, fez história como uma marca lendária, cercada de curiosidades e de ações inovadoras.

Responsabilidade social e criatividade

Cartaz da Guiness com tucanos - Foto do site oficial - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

Segundo a maioria dos relatos, um dos motivos de tanta fama foi a preocupação constante dos Guinness  com a qualidade de sua cerveja, mas outros fatores podem ter sido igualmente determinantes: a criatividade nos negócios e as ações de responsabilidade social, num momento em que essa expressão ainda nem era conhecida.

No início do século 20, a política de bem estar dos seus 5 mil funcionários – que incluía de refeições e assistência médica a bolsas de estudos – custava à cervejaria cerca de £ 40.000 por ano, o equivalente à um quinto da massa salarial total. A Guinness criou conjuntos habitacionais para os mais pobres e ajudou as famílias dos funcionários que participaram das duas guerras mundiais. Primeiro garantindo o sustento de mulheres e filhos com pagamento de metade do salário e depois mantendo o emprego dos que voltaram. Além disso, assumiu a manutenção da Igreja de St. Patrick, o santo protetor da Irlanda.Cartaz da Guiness com animais - Foto do site oficial - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

Já a criatividade ficou evidente tanto no uso de métodos inovadores para a melhoria de seus produtos, como na originalidade de suas campanhas publicitárias. Um dos anúncios que mais que fazem mais sucesso entre os visitantes da Guinness Storehouse é o cartaz que exibe um peixe andando de bicicleta com a seguinte frase: “Mulher precisa tanto de homem quanto peixe precisa de bicicleta”.

O uso de animais na publicidade virou uma marca registrada da Guiness a partir de uma longa campanha veiculada nas décadas de 1930 e 1940, com ilustrações do designer inglês  Ronald Ferns. São focas, caranguejos, lagostas e, principalmente, os tucanos, que acabaram se tornando uma espécie de símbolo da cervejaria naquele período.

logomarca da Guinness na parede da fábrica - Foto de Jamt9000 na English Wikipedia -BLOG LUGARES DE MEMORIA

A Guinness e a harpa gaélica

Símbolismo, aliás, é o que não falta à Guinness. Em 1862, o fundador da cervejaria escolheu como marca da empresa a harpa gaélica – também conhecida como Harpa de Brien Boru ou Harpa de O’Neill. Trata-se de um instrumento musical que que faz parte da história medieval da Irlanda e que hoje é seu símbolo oficial, presente no Brasão de Armas da República Irlandesa, na moeda, nos documentos oficiais e até nos passaportes.

Brien Boru foi um rei local que lutou contra invasões estrangeiras e é tido na Irlanda como um unificador do país. Segundo a lenda, Brien enfrentava os inimigos com uma harpa na mão e foi por influência dessa narrativa que os Harpa do Trinity_College - Foto de By JackGavin em Wikimedia - BLOG LUGARES DE MEMORIAirlandeses adotaram o instrumento como símbolo nacional.

No Trinity College, uma das instituições de ensino mais famosas da Irlanda e da própria Europa, há um exemplar medieval de uma harpa gaélica que alguns dizem ser a Harpa de Brien. Ocorre que o instrumento carrega brasão da família O’Neill.  Na verdade, não de sabe ao certo a quem pertenceu a harpa. Acredita-se, contudo, que ela deve ter sido feita na Escócia, entre os séculos 14 e 15.

Embora tendo formas muito semelhantes, as harpas da Guinness e do Estado Irlandês apresentam uma diferença: foram desenhadas a partir de perspectivas opostas. Enquanto a da cervejaria é voltada para a direita, a harpa oficial da Irlanda é voltada para a esquerda.

Há mais de uma versão para justificar a diferença. Alguns dizem que foi a Guinness quem trocou a posição da harpa para não coincidir com a do Brasão de Armas da Irlanda. Mas outros lembram que a Guiness já havia registrado sua marca antes da criação do atual Estado Irlandês, que se viu obrigado a alterar a posição da harpa para não ficar igual à da cervejaria.1

Harpa símbolo da Irlanda - Harpa da Guinness - Imagens da Wikimedia e do site da cervejaria - Autores diversos creditados na matéria - BLOG LUGARES DE MEMORIASeja como for, o fato é que ambas estão unidas pela mesma inspiração: um instrumento gaélico bastante representativo da cultura Celta, que, muito além dos registros oficiais, tornou-se um símbolo natural da Irlanda.

Guinness – a cerveja nacional dos irlandeses

Seja pela harpa de sua logomarca, seja pelo entrosamento com a comunidade local, ou, ainda, pela maneira singular com que desenvolveu e comercializou seus produtos, o fato é que a Guinness acabou se tornando também um símbolo da Irlanda. Mais que isso: há quem afirme que a Guinness é um ícone do estilo Stout ou, pelo menos do Dry Stout. Essa questão técnica dos tipos ou estilos de cerveja é coisa para iniciados, mas um rápido histórico pode nos ajudar a entender um pouco como a Guinness se posiciona no universo das cervejas.

Inicialmente, a empresa produziu cervejas dos tipos Ale e Porter, ambas da escola inglesa. A Porter era umaBanda no dia de St Patrick - Foto de squirrel_photos-7862139 em Pixabay - BLOG LUGARES DE MEMORIA cerveja direcionada aos trabalhadores portuários, que faziam trabalho pesado e necessitavam de uma bebida forte ao final do dia. Com o tempo, a Guinness abandonou a Ale para se dedicar à Porter e foi dela que surgiu a Stout, ambas obtidas a partir de cevada torrada. Embora não tenha sido a Guinness quem inventou a Stout, as histórias de ambas estão interligadas e também suas imagens.

O dia de São Patrício

A imagem da Guinness está associada, também, ao St. Patrick’s Day (ou Dia de São Patrício), uma festa religiosa e cultural que reverencia a memória do santo protetor da Irlanda. Nesse caso, o simbolismo já pula dos Celtas para o Cristianismo. Curiosamente, St. Patrick não nasceu na Irlanda e sim na Grã Bretanha, provavelmente onde hoje se localiza a Inglaterra. Além disso, a cerimônia que se repete a cada 17 de março – suposto dia de sua morte -, foi iniciada por imigrantes irlandeses nos Estados Unidos e hoje éDia de São Patrício - Still de video comemorativo do dia de St Patrick - BLOG LUGARES DE EMMÓRIA comemorada por toda parte. Mesmo assim, a festa se St. Patrick é considerada por todos uma festa irlandesa.

Além dos rituais religiosos, o St. Patrick Day inclui um desfile de rua e muita alegria, tanto que alguns chegam a compará-lo ao carnaval. É nesse aspecto profano que a cerveja se insere, seja na Irlanda ou nos outros países onde a festa é realizada. Nesse dia, o consumo da Guinness dobra no mundo inteiro. E segundo os irlandeses, isso faz parte das homenagens ao santo, pois segundo a tradição oral, St. Patrick também era cervejeiro.

Guinness – o livro dos recordes

Livro dos Recordes - Reprodução da capa - BLOG LUGARES DE MEMORIANem todo mundo sabe, mas o Guinness Book ou Livro dos Records também é obra da Guinness. A ideia partiu de Hugh Beaver, diretor administrativo da cervejaria, ao envolver-se em um debate sobre qual a ave de caça mais veloz da Europa. Se a tarambola ou o tetraz. A dúvida fez o executivo perceber que um livro com esse tipo de resposta poderia fazer sucesso.

O debate ocorreu em novembro de 1951. Menos de quatro anos depois, em agosto de 1955, o Guinness Book of Records era lançado em Londres e no Natal daquele mesmo ano já estava encabeçando a lista dos mais vendidos no Reno Unido. Até hoje, o Guinness World Records é um dos livros mais vendidos da história.2

Notas

  • 1 A discussão é complexa porque gira em torno do registro da marca e, ao que tudo indica, a harpa gaélica já era usada como símbolo do país antes de qualquer formalização.
  • 2 Leia, aqui no blog, outras matérias sobre a Irlanda: Dublin / Kilkenny / Newgrange

Guinness – Dublin – Irlanda – Europa

Texto

Fotos

  • (1,4,5) Site Oficial da cervejaria
  • (2) engin_akyurt-3656355 em Pixabay
  • (3) pertti123-3681580 em Pixabay
  • (6)Jamt9000 em English Wikipedia
  • (7) JackGavin em Wikimedia - CC BY-SA 4.0
  • (8) Imagem 1- Wikimedia / Imagem 2 -Site da cervejaria
  • (9) squirrel_photos-7862139 em Pixabay
  • (10) Still de filme da Guinness - Youtube da cervejaria
  • (11) Reprodução da capa do livro

Notas

Participação Especial

  • Laura Magalhães Alves
  • Mark Howard
Compartilhe »
Increva-se
Notificar quando
guest
17 Comentários
Avaliações misturadas ao texto
Ver todos os comentários
Marcia Alves
Marcia Alves
2 anos atrás

Relato muito detalhado e fiel! Recomendo a leitura e a visita virtual ou não!

Sonia Pedrosa
2 anos atrás

Muito legal, Sylvinha. A Guinness tem uma bela história e todo mundo precisa conhecer!

Daniel Marinho
2 anos atrás

Bela pesquisa, Sylvia! Sempre fui fã dessa escurinha, mas não sabia muito desses detalhes. Confesso que me surpreendi, aliás, com essas ações de políticas de bem estar e com a construção de conjunto habitacionais em pleno inicio do século XX! Muito bacana! Vou bebê-la agora com mais gosto ainda kkkkkk

Hebe
Hebe
1 ano atrás

Que demais saber um pouco sobre a história da cerveja Guinness. Aqui em casa eu e o marido adoramos. Depois de ler seu post, já irei degustar a Guinness com outro olhar (rs)

Angela Martins
Angela Martins
1 ano atrás

Eu não conhecia a história da Guinness. Só conhecia o Livro de Recordes. Muito interessante!

Última edição 1.000000eita por
Deyse
Deyse
1 ano atrás

Não sou fã de cerveja, mas não perderia esse passeio por nada. Adoro conhecer fábricas tradicionais e com certeza conheceria a cervejaria Guinnes. Adorei o texto. Parabéns.

Marcella
Marcella
1 ano atrás

Não conhecia a história da Guiness, muito interessante! Quando for para Dublin vou querer fazer a visita e com certeza vou tomar muitas, porque eu amooo!

Ana Paula
Ana Paula
5 meses atrás

Com certeza ao ir a Irlanda tem que ter esse passeio no roteiro, adorei o seu relato, informações e dicas sobre a Guinness