Atualizado em 30/04/2024 por Sylvia Leite
A cidade de Konya, na região da Anatólia, tem uma história de mais de cinco milênios e tornou-se uma das mais importantes e populosas da Turquia; mas um fato lhe confere destaque entre outras de mesmo perfil: em seu centro histórico está enterrado o poeta e mestre sufi Jalāl-ad-Dīn Rumi. Foi em Konya que Rumi passou grande parte de sua vida e criou ou adotou, com características próprias, a dança giratória denominada Sama. O ritual é executado até hoje pelos integrantes da ordem sufi dos Mevlevis, ou dervixes rodopiantes, que foi fundada por seu filho Sultan Walad e outros seguidores.
O poeta é celebrado pela cidade e por peregrinos do mundo inteiro que chegam a Konya em busca de crescimento espiritual. Sua memória está em vários pontos, a começar pela avenida principal batizada como Mevlana – palavra que quer dizer ‘nosso mestre’, mas concentra-se especialmente em uma enorme construção que inclui o mausoléu que guarda sua tumba – hoje transformado em museu – uma mesquita e uma biblioteca.
O coração de Konya
O complexo, considerado ‘O Coração de Konya’, também leva o nome Mevlana e foi erguido a partir do antigo monastério sufi – um prédio de arquitetura seljúcida, do século 13. Logo na entrada, acima de um portal de prata do século 16, uma frase chama a atenção dos visitantes e explica o afluxo peregrinos, que passa de 2 milhões a cada ano: ‘Aqueles que aqui entram incompletos sairão perfeitos’.
Para entender o significado da promessa, é preciso ter algumas informações sobre o Sufismo – vertente mística do Islam, à qual pertencia o poeta e sua ordem de dervixes. Os sufis pregam o amor, a contemplação, a busca da completude e do autoconhecimento. Dentro do mausoléu, um pouco abaixo da tumba de Rumi, pode-se ler: ‘As coisas lhe parecem como você é’.
Além da experiência mística, que é proporcionada a todo visitante que queira e consiga realizá-la, o complexo oferece um espetáculo de símbolos e relíquias. O mausoléu de Rumi é conhecido como Kubbe-i Hadra – nome que podemos traduzir como Mausoléu Verde, em alusão à cor do Islã e de sua própria cúpula de tom turquesa.
A tumba encontra-se embaixo dessa cúpula – imagem do infinito – e está coberta por um tecido brocado, bordado a ouro com versos do Corão. Sobre ela descansa um turbante – símbolo da autoridade espiritual. Ao seu redor, estão outros 55 túmulos de dervixes – uns aparente, outros ocultos -, entre os quais encontram-se o pai de Rumi, Baha ‘ud-Din Walad e o filho, Sulṭān Walad.
Peças antigas em exposição
No Semahane, o salão onde era realizada a dança ritual do Sama, estão expostos os seis instrumentos de corda, percussão e sopro usados durante a cerimônia. Entre eles encontra-se uma flauta que acredita-se ter sido tocada pelo menos uma vez pelo próprio Rumi.
No mesmo salão, há um tapete de orações do século 18, roupas de dervixes, ou seguidores do Sufismo, dois exemplares do Mathnavi – ou Masnavi – sua principal obra, e um exemplar do ‘Divan-i Shams-i Tabrizi’ – a coletânea de versos reunidos por seus alunos e transformados em livro após sua morte.
O museu inclui, ainda, uma pequena mesquita que hoje abriga outra exposição composta por antigas edições ilustradas do Corão, tapetes de oração e a barba de Muhammad acondicionada em uma caixa de madrepérola.
A vida do poeta em Konya
Jalāl-ad-Dīn Rumi nasceu próximo a Balkh, na região de Khorasan, na antiga Pérsia, hoje território do Afeganistão. Quando o exército mongol de Gengis Khan invadiu a Ásia Central, a família e alguns discípulos saíram em busca de refúgio em um país muçulmano. Depois de passarem por Bagdad, Damasco e de fazerem a peregrinação a Meca, instalaram-se na Anatólia e seu pai, que era um reconhecido erudito islâmico, foi convidado pelo sultão ‘Ala’ al-Din Kayqubad a ensinar em Konya.
O nome de batismo de Rumi era Muhammad, mas o poeta viveu numa época em que as pessoas, em especial os grandes mestres, eram conhecidos por alcunhas que indicavam qualidades, profissões, filiação ou locais de origem. O apelido Jalāl-ad-Dīn foi colocado pelo pai e pode ser traduzido como ‘A glória da religião’. Já a palavra Rumi significa romano e vem de Rūm, nome pelo qual os muçulmanos conheciam a Anatólia pelo fato da região ter sido dominada, durante séculos, pelo Império Bizantino.
Entre os fatos mais importantes vividos por Rumi em Konya está o encontro com o dervixe errante Shams al-Dīn de Tabrīz, de quem tornou-se discípulo com forte impacto sobre seu desenvolvimento espiritual. Foi a ele que Rumi dirigiu os versos reunidas no livro ‘Divan-i Shams-i Tabrizi, citado anteriormente. Em razão da importância que assumiu na vida de Rumi, Shams al-Dīn provocou ciúmes nos discípulos do poeta e, por isso, resolveu desaparecer, deixando-o inconformado. Chegou a voltar, mas depois sumiu definitivamente. Os versos do ‘divan’ são chamamentos escritos depois do primeiro afastamento e lamentos pela partida definitiva.
Mas a obra poética mais reconhecida de Rumi é o também já citado Mathnavi – um poema místico de seis volumes, que reúne 25 mil dísticos, ou 50 mil versos, com reflexões sobre a vida e ensinamentos sobre o caminho espiritual. Sua primeira parte, composta pelos volumes 1 e 2, é dedicada aos descaminhos do Ego. Na segunda parte, que abrange os volumes 3 e 4, o foco é dirigido à Razão e ao Conhecimento e, na terceira, correspondente aos volumes 5 e 6, Rumi discorre poeticamente sobre a negação da existência física a fim de atingir a compreensão de Deus. O Mathnavi é considerado por alguns comentaristas como um livro de comentários ao Corão.
O poeta místico também escreveu em prosa e, nessa categoria, sua obra mais conhecida no Ocidente é ‘Fihi-Ma-Fihi, o livro do interior’ – uma coletânea de 72 palestras dirigidas a seus discípulos. O caráter enigmático da obra já começa pelo título, que pode ser traduzido como “É o que é” ou “Nele o que está nele”. O livro contém conceitos do Sufismo e há quem o considere uma introdução ao Mathnavi.
A cidade além de Rumi
Ainda há muito o que dizer sobre a relação entre Rumi e Konya, mas isso talvez seja melhor compreendido depois de uma visita ao local. E embora Rumi, o Sufismo e a Ordem Mevlevi – ou dervixes rodopiantes – sejam justificadamente o centro das atenções, Konya tem uma história que antecede, em milênios, à chegada do mestre sufi à Anatólia e que não podemos desprezar.
Acredita-se, com base em escavações, que o local onde a cidade se desenvolveu começou a ser habitado cerca de três mil anos antes de Cristo, na Idade do Cobre.1 Entre os povos que ocuparam a região antes dos Seljúcidas, estão os Hititas, Frígios, Persas, Helenistas e Romanos.
A palavra Konya vem de Ikonion, nome pelo qual a cidade era conhecida na Antiguidade Clássica e na Idade Média. Ikonion ou Icônio seria uma derivação do grego εἰκών, que significa ícone e é um tipo de arte devocional dos Cristãos, mas a palavra também é usada para nomear imagens sagradas de qualquer origem e, de forma metafórica, para significar representação. A razão do lugar ter sido batizado assim teria explicação na mitologia grega e estaria relacionado à imagem da Górgona.
Segundo a lenda, o herói grego Perseu teria fundado a cidade que hoje chamamos de Konya depois que se casou com Andrômeda, e teria lhe dado o nome de Amandra. Perseu é conhecido como o herói que matou e decapitou a Medusa ou Górgona e a cidade de Amandra teria adotado como símbolo uma estrela que representaria a cabeça do monstro. O nome Ikonion teria vindo posteriormente, em substituição a Amandra, e teria sido escolhido em alusão à imagem da Górgona.
No Livro dos Atos, do Novo Testamento, consta que Ikonion teria sido visitada pelos apóstolos Barnabé e Paulo e, posteriormente, por Paulo e Silas, com a missão de conquistar seguidores para a religião cristã. Um texto apócrifo denominado ‘Atos de Paulo e Tecla’ aprofunda as informações sobre a atuação de Paulo em Ikonion, mostrando sua influência sobre a jovem Tecla que viria a tornar-se santa, com status comparável ao dos apóstolos. Mas a ligação de Konya com a Tradição Cristã é assunto de outra matéria, desta vez sobre a Konya antiga, ou Ikonion, que virá em seguida.2
Notas
- 1 Há quem fale em sete milênios
- 2 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares, manifestações artísticas ou rituais relacionados, de alguma forma, ao Sufismo: Sama / Mesquita de Córdoba / Alhambra / Padrões Geométricos / Samarcanda / Bukhara / Khiva / Merv Antiga
- 3 Leia, também, sobre outros lugares da Turquia: Ikoniun / Cisterna da Basílica / Pamukkale / Hipódromo de Constantinopla / Santa Sofia / Capadócia / Pequena Sofia / Troia / Éfeso / Pérgamo
Konya – Anatólia – Turquia – Ásia
Fotos
Referências
- Matnavi - Edições Dervish
- Fihi-Ma-Fihi - Edições Dervish
Que matéria sensacional! Muito bom esse resgate histórico e geográfico . Konya será sempre muito especial nesses dois aspectos !
Eh, Marlene, bom te encontar por aqui. Konya é realmente muito especial. Semana que vem tem a segunda parte, desta vez sobre a influência cristã.
Tenho esperança de ainda poder visitar Konya e sentir a presença do grande mestre Rumi. Parabéns pela matéria.
Obrigada, Elvira. Bom saber que gostou! Volte sempre!
Belo resgate, Sylvinha! Konya é riquíssima em história e vale uma visita, com certeza. Lá também fica a tumba de Suleyman Shah, importante figura na história da Turquia, na história da civilização islâmica e do Império Otomano; pai de Ertugrul e avô do primeiro sultão otomano, Osman 1º. Faço planos para me embrenhar pelo interior da Turquia e conhecer tudo isso de pertinho.
Faça isso, Soninha. O interior da Turquia é lindo e Konya é de uma riqueza histórica incalculável. Obrigada pelo comentário com informações importantes.