Atualizado em 29/04/2024 por Sylvia Leite
A Turquia, por sua localização geográfica, pode ser considerada um ponto de conexão entre o Oriente e o Ocidente e já houve época em que qualquer tipo de comunicação entre os dois hemisférios passava necessariamente por sua capital Constantinopla. Hoje, rebatizada como Istambul, a cidade oferece ao visitante a paradoxal sensação de estar ao mesmo tempo na Europa e na Ásia, pois seu território reúne áreas dos dois continentes. Seja por mera coincidência, ou por uma significativa analogia com essa característica de interligação, a dança mais representativa da cultura turca – conhecida como Sama – é considerada uma busca de equilíbrio, e de conexão, entre duas instâncias: o exterior e o interior do ser humano, ou o céu e a terra.1.
O Sama, na verdade, é uma cerimônia medidativa praticada por iniciados na ordem Mevlevi – uma das várias escolas que integram a corrente mística e contemplativa denominada Sufismo e considerada o braço místico do Islã.
Os mevlevis, popularmente conhecidos como dervixes rodopiantes, não são atores, e sim pessoas comuns, das mais diversas profissões, que praticam o ritual do Sama como um caminho para o seu desenvolvimento espiritual.
Mesmo nessas sessões abertas, que atualmente já podem integrar qualquer roteiro de viagem pela Turquia, a dança segue uma liturgia e os organizadores exigem silêncio do público, para que nada interfira na concentração dos participantes e para que se possa realizar plenamente a audição da música.
Sama: o giro espiritual do poeta Rumi
A palavra Sama, que em turco se pronuncia Sema, significa ouvir e, segundo uma versão popular, a dança teria nascido de uma audição ocorrida no século 13. Diz o relato que o poeta Jalaludin Rumi estava no bazar da cidade de Konia quando escutou as marteladas dos ourives e teve a sensação de que elas entoavam um dikhr – ou recordação divina – cujo texto pode ser traduzido como: “Não há Deus senão Deus”. Em êxtase, ele teria começado a rodopiar em volta do próprio corpo criando, assim, o giro da escola Mevlec, que ele mesmo fundaria tempos depois.
Essa versão é contestada por alguns historiadores e estudiosos sufis, que registram a existência do Sama em períodos anteriores, e para quem Rumi teria aprendido o giro com seu amigo e companheiro espiritual Shams de Tabriz (ou Shamsu Din, nome que significa sol da religião). Há quem afirme, ainda, que a origem da dança, chamada por alguns de turbilhão, estaria em rituais xamânicos que induziam seus praticantes a estados alterados de consciência.
O fundamento do Sama
O Sama, segundo a pesquisadora Giselle Guilhon Antunes Camargo, é apenas uma entre as várias técnicas mentais-corporais utilizadas pelo Sufismo com o objetivo de abrir a mente e o coração do indivíduo para uma conexão com o mundo espiritual, isto é, para possibilitar que a centelha de luz divina adormecida em seu interior una-se à sua semelhante no Cosmos.
A compreensão do princípio de atração do semelhante pelo semelhante, que estaria por trás da prática do sama, foi registrada, segundo Giselle, pelo místico persa Najmuddin Kubra entre os séculos 12 e 13, e parte do pressuposto de que cada órgão do ser humano é um fragmento de órgãos homólogos existentes no plano Divino.
O giro em torno de si mesmo e do próprio coração resultaria na purificação desse órgão e em um triunfo do místico sobre as tendências negativas da própria alma, o que possibilitaria a conexão com tais instâncias superiores.
Não é preciso saber tudo isso para perceber que as apresentações abertas ao público não consistem apenas em espetáculos folclóricos, mas talvez essa rápida apresentação do ritual ajude na percepção e compreensão de alguns detalhes presentes em posições e movimentos que compõem a cerimônia.
A ‘fisiologia’ do giro
O giro dos mevlevis tem um desenho complexo que traduz metaforicamente, no plano físico, a conexão espiritual aspirada pelo praticante.
Com o pé esquerdo fincado no chão, o dervixe realiza seu ancoramento na terra e usa o pé direito para impulsionar o movimento circular que proporcionará a ascensão. Na medida em que o giro vai ganhando velocidade, o manto branco se abre, como uma flor, levantando sua roda em direção ao céu.
A mão direita virada para cima tem a função de captar a baraka, ou bênção divina, para que ela chegue ao coração do dançarino e, em seguida, seja repassada à terra pela mão esquerda, que mesmo quando está no alto, permanece voltada para baixo.
Em sua simbólica coreografia, o Sama estabelece, simultâneamente, um ancoramento do indivíduo na terra e seu estiramento em direção ao céu. Assim, em analogia com Istambul, que está ao mesmo tempo na Europa e na Ásia e guardando as devidas proporções, o dervixe concretiza o paradoxo preconizado pelos sufis de “estar no mundo, sem ser do mundo”1.
Notas
- 1 Grande parte das informações, das expressões e dos conceitos usados nesta matéria foi extraída de artigo de Giselle Guilhon citado nas referências a seguir.
- 2 Leia, aqui no blog, outras matérias sobre lugares, monumentos ou elementos artísticos relacionados, de alguma maneira, ao Sufismo: Buhkara, Samarcanda, Khiva, Merv Antiga, Mausoléu de Yasawi, Padrões Geométricos, Alhambra, Segóvia, Assis
Sama – Centros Mevlevis – Turquia – Ásia
Fotos
- Sylvia Leite
Referências
- Artigo "A Arte Secreta dos Dervixes Giradores: Hipótese Esotérica", de Giselle Guilhon Antunes Camargo.
- Livro "Sama: Etnografia de uma Dança Sufi" - Giselle Guilhon Antunes Camargo
- Livro "Sama: a Dança-Giro dos Dervixes ou A Arte do Equilíbrio da Vida", de Ingrid e Kurt Bauer
- Vídeo Istanbul Derviches Turneurs
Coisa mais linda, esse ritual. Assisti maravilhada e, hoje, recordo com o seu texto, Sylvinha. Adorei!
Sonia pedrosa.
Muito interessante Sylvia..ja tinha visto em documentários! Grande abraço
Hugo
Muito interessante Sylvia..ja tinha visto em documentários! Grande abraço
Hugo
Que bom que gostou. Bom também saber que continua acompanhando as postagens.
bjs
Que bom que gostou. Bom também saber que continua acompanhando as postagens.
bjs
É muito bonito,mesmo, Soninha. Eu vi aqui em São Paulo no Sesc Pompéia e depois vi na Turquia. Veria muitas outras vezes.
Gratidão Sylvia. Muito bom vosso texto!! Eu estou assistindo à 5° Temporada do "Euturgul, o guerreiro Otamano", pelo Net Flix e todas estas impressões aparecem neste seriado matavilhoso sobre a história do Islã!!!
Obrigada pelo comentário. Pena que não se identificou. Não sei a quem agradecer. Abraço de qualquer forma
Silvinha, você está se superando, está lindo o blog, parabéns e obrigado por compartilhar, tida quinta-feira, esse "Presente"…
Gratidão, Silvia querida! Que belo trabalho!!Beijo carinhoso
Só gratidão, lindeza de texto! bj
Que maravilha de texto, Sylvia. Recordo com carinho essa prática e minha viagem à Turquia.
O grupo de cultura popular PARAFUSOS de Lagarto/Se tem uma dança similar mas com outro significado. Adorei quero ir a Turquiq vê-los dançar
É verdade, eles também giram e usam roupas brancas e rodadas. Já está na minha lista uma matéria com eles. Pena que vc não se identificou.
Quem vou tem saudade, não é? Obrigada, bjs
Obrigada, Hilda, bj
Obrigada, querida, bjs
Eu que agradeço pela sua constância. bj
Que texto delicioso de ler, Sylvinha! Esse bailado é divino.
Abraços
Val Cantanhede
Obrigada Sylvia e Giselle por nos trazerem essa beleza de ritual.
Eu que agradeço pelo comentário, bj
É divino mesmo Val,. Obrigada pelo comentário.
Valeu, Hugo, bjs
Sempre tive curiosidade de saber a história deste ritual. Obrigada por compartilhar.
Eu que agradeço, pela leitura e pelo comentário. Volte sempre. E da próxima vez, lembre de deixar seu nome.
A Turquia é um destino que pretendo conhecer em breve, foi muito bom encontrar esse texto sobre o Sama, pois quero ver de perto esse ritual, vou incluir nas minhas pesquisas onde encontrar em Istambul.
Se for à Capadócia, deixe para assistir lá.
Amei conhecer mais sobre essa cultura tão diferente. Adorei saber que Sama é um a dança que une o céu e a terra.
Realmente o Sama é uma dança encantadora. É antes de tudo um ritual.
Realmente o Sama é uma dança muito especial. É, antes de tudo, um ritual.