Sama: a dança que une o céu e a terra

Tempo de Leitura: 5 minutos

Atualizado em 17/03/2022 por Sylvia Leite

Foto Sylvia Leite - Matéria sobre o Sama - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAA Turquia, por sua localização geográfica, pode ser considerada um ponto de conexão entre o Oriente e o Ocidente e já houve época em que qualquer tipo de comunicação entre os dois hemisférios passava necessariamente por sua capital Constantinopla. Hoje, rebatizada como Istambul, a cidade oferece ao visitante a paradoxal sensação de estar ao mesmo tempo na Europa e na Ásia, pois seu território reúne áreas dos dois continentes. Seja por mera coincidência, ou por uma significativa analogia com essa característica de interligação, a dança mais representativa da cultura turca – conhecida como Sama – é considerada uma busca de equilíbrio, e de conexão, entre duas instâncias: o exterior e o interior do ser humano, ou o céu e a terra.1.

Foto Sylvia Leite - Matéria sobre o Sama - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAO Sama, na verdade, é uma cerimônia medidativa praticada por iniciados na ordem Mevlevi – uma das várias escolas que integram a corrente mística e contemplativa denominada Sufismo e considerada o braço místico do Islã.

Os mevlevis, popularmente conhecidos como dervixes rodopiantes, não são atores, e sim pessoas comuns, das mais diversas profissões, que praticam o ritual do Sama como um caminho para o seu desenvolvimento espiritual.

Mesmo nessas sessões abertas, que atualmente já podem integrar qualquer roteiro de viagem pela Turquia, a dança segue uma liturgia e os organizadores exigem silêncio do público, para que nada interfira na concentração dos participantes e para que se possa realizar plenamente a audição da música.Foto Sylvia Leite - Matéria sobre o Sama - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

Sama: o giro espiritual do poeta Rumi

A palavra Sama, que em turco se pronuncia Sema, significa ouvir e, segundo uma versão popular, a dança teria nascido de uma audição ocorrida no século 13. Diz o relato que o poeta Jalaludin Rumi estava no bazar da cidade de Konia quando escutou as marteladas dos ourives e teve a sensação de que elas entoavam um dikhr – ou recordação divina – cujo texto pode ser traduzido como: “Não há Deus senão Deus”. Em êxtase, ele teria começado a rodopiar em volta do próprio corpo criando, assim, o giro da escola Mevlec, que ele mesmo fundaria tempos depois.

Foto Sylvia Leite - Matéria sobre o Sama - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAEssa versão é contestada por alguns historiadores e estudiosos sufis, que registram a existência do Sama em períodos anteriores, e para quem Rumi teria aprendido o giro com seu amigo e companheiro espiritual Shams de Tabriz (ou Shamsu Din, nome que significa sol da religião). Há quem afirme, ainda, que a origem da dança, chamada por alguns de turbilhão, estaria em rituais xamânicos que induziam seus praticantes a estados alterados de consciência.

O fundamento do Sama

O Sama, segundo a pesquisadora Giselle Guilhon Antunes Camargo, é apenas uma entre as várias técnicas mentais-corporais utilizadas pelo Sufismo com o objetivo de abrirFoto Sylvia Leite - Matéria sobre o Sama - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA a mente e o coração do indivíduo para uma conexão com o mundo espiritual, isto é, para possibilitar que a centelha de luz divina adormecida em seu interior una-se à sua semelhante no Cosmos.

A compreensão do princípio de atração do semelhante pelo semelhante, que estaria por trás da prática do sama, foi registrada, segundo Giselle, pelo místico persa Najmuddin Kubra entre os séculos 12 e 13, e parte do pressuposto de que cada órgão do ser humano é um fragmento de órgãos homólogos existentes no plano Divino.

O giro em torno de si mesmo e do próprio coração resultaria na purificação desse órgão e em um triunfo do místico sobre as tendências negativas da própria alma, o que Foto Sylvia Leite - Matéria sobre o Sama - BLOG LUGARES DE MEMÓRIApossibilitaria a conexão com tais instâncias superiores.

Não é preciso saber tudo isso para perceber que as apresentações abertas ao público não consistem apenas em espetáculos folclóricos, mas talvez essa rápida apresentação do ritual ajude na percepção e compreensão de alguns detalhes presentes em posições e movimentos que compõem a cerimônia.

A ‘fisiologia’ do giro

O giro dos mevlevis tem um desenho complexo que traduz metaforicamente, no plano físico, a conexão espiritual aspirada pelo praticante.

Com o pé esquerdo fincado no chão, o dervixe realiza seu ancoramento na terra e usa o pé direito para impulsionarDerviches rodopiando - Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA o movimento circular que proporcionará a ascensão. Na medida em que o giro vai ganhando velocidade, o manto branco se abre, como uma flor, levantando sua roda em direção ao céu.

A mão direita virada para cima tem a função de captar a baraka, ou bênção divina, para que ela chegue ao coração do dançarino e, em seguida, seja repassada à terra pela mão esquerda, que mesmo quando está no alto, permanece voltada para baixo.

Em sua simbólica coreografia, o Sama estabelece, simultâneamente, um ancoramento do indivíduo na terra e seu estiramento em direção ao céu. Assim, em analogia com Istambul, que está ao mesmo tempo na Europa e na Ásia e guardando as devidas proporções, o dervixe concretiza o paradoxo preconizado pelos sufis de “estar no mundo, sem ser do mundo”1.

Notas

Sama – Centros Mevlevis – Turquia – Ásia

Texto

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  • Sylvia Leite

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sonia pedrosa cury
4 anos atrás

Coisa mais linda, esse ritual. Assisti maravilhada e, hoje, recordo com o seu texto, Sylvinha. Adorei!
Sonia pedrosa.

Hugo Brito
4 anos atrás

Muito interessante Sylvia..ja tinha visto em documentários! Grande abraço
Hugo

Hugo Brito
4 anos atrás

Muito interessante Sylvia..ja tinha visto em documentários! Grande abraço
Hugo

Unknown
4 anos atrás

Gratidão Sylvia. Muito bom vosso texto!! Eu estou assistindo à 5° Temporada do "Euturgul, o guerreiro Otamano", pelo Net Flix e todas estas impressões aparecem neste seriado matavilhoso sobre a história do Islã!!!

R Leandro
4 anos atrás

Silvinha, você está se superando, está lindo o blog, parabéns e obrigado por compartilhar, tida quinta-feira, esse "Presente"…

Vania A.
4 anos atrás

Gratidão, Silvia querida! Que belo trabalho!!Beijo carinhoso

hilda
4 anos atrás

Só gratidão, lindeza de texto! bj

Virginia Finzetto
4 anos atrás

Que maravilha de texto, Sylvia. Recordo com carinho essa prática e minha viagem à Turquia.

Unknown
4 anos atrás

O grupo de cultura popular PARAFUSOS de Lagarto/Se tem uma dança similar mas com outro significado. Adorei quero ir a Turquiq vê-los dançar

Val Cantanhede
4 anos atrás

Que texto delicioso de ler, Sylvinha! Esse bailado é divino.
Abraços
Val Cantanhede

Regina Célia de Oliveira
4 anos atrás

Obrigada Sylvia e Giselle por nos trazerem essa beleza de ritual.

Unknown
4 anos atrás

Sempre tive curiosidade de saber a história deste ritual. Obrigada por compartilhar.

Cynara Vianna
1 ano atrás

A Turquia é um destino que pretendo conhecer em breve, foi muito bom encontrar esse texto sobre o Sama, pois quero ver de perto esse ritual, vou incluir nas minhas pesquisas onde encontrar em Istambul.

Deyse
Deyse
1 ano atrás

Amei conhecer mais sobre essa cultura tão diferente. Adorei saber que Sama é um a dança que une o céu e a terra.