Atualizado em 07/07/2024 por Sylvia Leite
Quando foi inaugurada, em 1963, a Galeria do Rock tinha outro nome e outro perfil. Chamava-se centro comercial Grandes Galerias1 – provavelmente em alusão a seus sete longos andares – e era especializada em roupas finas, produzidas por mais de cem alfaiates, além de lojas de sapatos e prestadores de serviços como salões de beleza, lojas de serigrafia e oficinas de conserto de produtos eletrônicos. Naquele momento, ninguém podia imaginar que o prédio se transformaria em um espaço caracterizado pela diversidade cultural, com frequentadores das mais diversas tribos da cidade. Quase ninguém, porque Bramante Buffone – artista convidado para decorar o prédio – fez um trabalho que hoje pode parecer até premonitório.
Logo na entrada da galeria, acima dos elevadores, um painel de sua autoria, feito em azulejo, exibe mulheres de quatro etnias. E a referência à diversidade não para por aí: ao subir alguns andares, e olhar através das aberturas que permitem a visualização de pavimentos inferiores, você se dá conta de que os pisos são cuidadosamente desenhados, cada um com seu próprio padrão geométrico.
Premonitório ou não, o fato é que o painel e os pisos de Buffone parecem combinar mais com a realidade atual da galeria do que com sua configuração inicial, quando apesar de ter alguma diversidade no tipo de comércio, atendia um público de elite bastante uniforme.
Hoje, a variedade de artigos é infinitamente maior: de cds a camisetas de bandas, de sakates a tatuagens e piercings, de tênis a salões de beleza especializados em tribos específicas. Isso, sem falar nas lojas de material para grafiteiros e nas oficinas de serigrafia – os chamados camiseteiros – que estão lá desde a inauguração do prédio. Além da variedade de artigos, a Galeria do Rock diversificou também no público, a fim de adaptar-se aos novos tempos. Apesar do nome, o prédio não abriga apenas os roqueiros mas também as tribos de cultura Black, Hip Hop, Hardcore, Jazz, Blues e MPB.
Galeria do Rock: uma história de altos e baixos
Entre os primeiros tempos e a realidade atual, o prédio passou por várias fases. Poucos anos depois de inaugurado, o centro comercial Grandes Galerias sofreu o impacto do surgimento dos shopping centers, que levaram os lojistas do Centro para os bairros das zonas Sul e Oeste. A partir daí veio um período de abandono e, em seguida, chegaram as lojas de discos. Um dos marcos dessa nova fase parece ter sido a inauguração da primeira loja Punk, a Wop Bob, que pertencia ao vocalista da banda Olho Seco, Fábio Sampaio.
Depois desse período, os lojistas enfrentaram dificuldades. As tribos que frequentavam as lojas de discos começaram a entrar em conflito e, por um período, ficou proibida a abertura de novas lojas de Rock and Roll porque o síndico e uma parte dos condôminos achavam que elas para a degradação do prédio.
proibição não preservou a galeria. No início da década de 1990, apenas 50 lojas estavam ocupadas, eram comuns as brigas de grupos e havia vários pontos de venda de drogas. O prédio estava se deteriorando e existia até uma ordem de interdição da Prefeitura, mas a eleição de um novo síndico trouxe esperança aos lojistas. Antônio de Souza Neto, mais conhecido como Toninho da Galeria, largou a administração da loja de fotografia que mantinha há anos para dedicar-se à recuperação do prédio e permanece até hoje na função.
De centro comercial a instituto de cultura
Apaixonado pela galeria, e comprometido com seu resgate, Toninho foi além das reformas elétrica e hidráulica e do cumprimento de exigências feitas pela Prefeitura e pelo Corpo de Bombeiros. Para começar, suspendeu a proibição de lojas de Rock and Roll e incentivou todo tipo de manifestação underground a fim de legitimar a efervescência cultural que já acontecia, de alguma maneira, em seus corredores.
O propósito do novo síndico era dar uma conotação cultural à galeria, que até aquele momento tinha existido apenas como espaço comercial. A concretização da ideia ocorreu oito anos depois da sua posse, com a criação do Instituto Cultural Galeria do Rock, criado com o intuito de promover atividades culturais e sócio-culturais como espetáculos, cursos, ações de combate à pobreza e ações de interatividade entre públicos. Foi criada também a Rádio galeria do Rock, com uma programação que combina música com notícias do Instituto Cultural e pode ser acessada a partir do site da galeria.
Outro marco dessa nova fase foi a inauguração, na cobertura do prédio, do Jardim do Rock – uma horta2 que serve como laboratório para cursos de agricultura orgânica e administração de hortas. Ainda dentro dos planos do instituto, está a criação de um Museu do Rock. Embora o projeto pareça estar parado no momento, a julgar pelas conquistas obtidas até agora, não se pode duvidar de que isso um dia também sairá do papel.
Construído e visitado por celebridades
Se, hoje, a galeria é frequentada por anônimos dos mais diversos gostos e filiações, no passado suas paredes foram erguidas e decoradas por pessoas e empresas famosas, que tinham estilos semelhantes e contribuíram também para a construção ou decoração de outros prédios de São Paulo.
Bramante Buffone, por exemplo, autor dos pisos e do painel da galeria, foi um artista italiano que viveu no Brasil até sua morte, na década de 1980 e, embora seu nome não seja muito lembrado, são dele diversos murais históricos de São Paulo como o do hall e os da fachada do Edifício Nobel, no bairro de Higienópolis, ou os do Edifício Nova Barão, no centro da cidade. Além disso, há obras suas no acervo do Museu de Arte de São Paulo – Masp.
O painel feito por Buffone na Galeria do Rock tem mais uma assinatura importante na história dos prédios da cidade. As peças usadas no painel foram produzidas pela Vitrais Conrado Sorgenicht, a mesma que assina a maioria dos painéis em vidro produzidos naquele período, entre os quais estão o do Museu de Arte Brasileira Faap, o da Casa das Rosas e do Hospital Beneficência Portuguesa.
A Galeria do Rock, na época Centro comercial Grandes Galerias, foi projetada pelos arquitetos Maria Bardelli e Ermanno Siffredi, responsáveis, também, pela Galeria do Reggae, cujo nome oficial é Galeria Presidente. O engenheiro da obra foi Alfredo Matias, conhecido por assinar obras importantes como o Centro Empresarial de São Paulo, Shopping Iguatemi, e Palácio Anchieta, sede da Câmara Municipal de São Paulo. Igualmente famosos eram os incorporadores Benjamin Citron e Jacob Lerne, que atuaram junto aos arquitetos em várias outros empreendimentos.
Não bastassem os consagrados nomes envolvidos em sua construção, a Galeria do Rock, segundo se conta, teria também recebido visitas de celebridades como Raul Seixas, a banda Sepultura, Bruce Dickinson (vocalista do Iron Maiden), Kurt Cobain (ex-vocalista do Nirvana). Pena que nem a própria administração do prédio tem fotos que comprovem essas visitas.
De centro comercial a ponto turístico
Por tudo isso, a Galeria do Rock ficou conhecida no país inteiro, e até no exterior, atraindo jovens de toda parte, seja para comprar CDs raros, camisetas e skates ou simplesmente fazer tatuagens e colocar piercings. A galeria é visitada também por aqueles que não tem uma paixão específica por nenhum de seus produtos, ou serviços, mas se sente seduzido pelo ambiente e pela fama do lugar. Há ainda aqueles que chegam em busca de algo muito específíco e aparentemente sem nenhuma relação com a maioria das lojas. É o caso de uma ótica que faz milagres no conserto de armações de óculos. .
Pelo menos 20 mil pessoas passam diariamente por seus corredores, que atravessam o quarteirão, e podem ser acessados por dois endereços: Avenida São João, 439, e Avenida 24 de maio, 62. É verdade que esse volume de visitantes corresponde a menos da metade do registrados nos maiores shoppings do país, mas é superior às populações de quase 70 por cento dos municípios brasileiros3
Além de suas funções comercial e cultural, a Galeria do Rock ganhou também um aspecto turístico. Durante alguns anos, teve uma visita guiada promovida em parceria com uma agência de turismo. Agora integra o Circuito Turístico Paissandú que, além da Galeria do Rock, inclui outros pontos dos arredores como o Centro Cultural Olido e a Igreja de Senhora do Rosário dos Homens Pretos.4
Notas
- 1 Oficialmente, o nome permanece até hoje, mas o prédio é conhecido como galeria do Rock e muitos nem sabem o seu nome oficial.
- 2 A horta, está passando por um período de revitalização e seus canteiros, momentaneamente, não estão tão viçosos quanto mostra a foto, por isso foi usada uma imagem de outro período.
- 3 Dados do IBGE 2017.
- 4 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares especiais de São Paulo: Cemitério da Consolação / Parque Augusta / Vila Itororó / Bixiga / Teatro Oficina / Liberdade / Theatro Municipal / Parelheiros, Marsilac e Bororé
Galeria do Rock – Centro da cidade – São Paulo – São Paulo – Brasil
Fotos
- (1, 2, 3, 4, 7, 8, 9 e 10) Sylvia Leite
- (5) Print do site da Galeria do Rock
- (6) Foto site da Galeria
Participação especial
- Carlos Brisolla
Referências
Agradecimentos
- Daniele Lopes / Recepcionista da Galeria do Rock
- Manoel José dos Santos / Auxiliar de Manutenção da Galeria do Rock
Muito interessante, Sylvinha! Estive com o Afonso uma vez nessa galeria para comprar alguns discos e adereços para um filho roqueiro, quando ele era adolescente metaleiro. Ficamos impressionados com o tamanho da galeria e a diversidade de produtos oferecidos.
Bjs,
Val Cantanhede
Muito legal. Um texto repleto de informações, um estudo sobre a a galeria e seu papel na sociedade.
Bem, extenso…
Isso é sim levando -se em conta que quem acessa Facebook quer leituras rápidas, textos curtos.
Parabéns!
Esse galeria tem é história!!! Adorei, Sylvinha. Estive lá algumas vezes…boas lembranças.
Beijos
sonia pedrosa
Valeu, querida, beijos
Vale, Fernando, volte sempre. Toda quinta tem matéria nova no blog. Acompanhe!
Sem contar que o prédio é lindo, não é?
beijo
É legal, sim. DE vez em quando vou lá rsrs beijo
Irei divulgar em rede e citarei no trabalho de faculdade!Gratíssima !
Obrigada pelo comentário e pela divulgação. Pena que não deixou seu nome. Gostaria de saber. Gostaria, também, de ter acesso à divulgação que fará em rede e ao trabalho da faculdade. É possível?
lamentávelmente fechada, a pandemia atingiu o maior reduto roqueiro de SAMPA,minhas memórias deste local vem desde a decada de setenta, transcende a sua forma física, ela carrega toda a filosofia de gerações
É verdade, Luiz. A Galeria do Rock está na memória de muita gente. Tomara que tudo isso passe logo para podermos visitar esses lugares especiais. Abraço!
Sabia da existência da Galeria, embora não conhecesse sua história, que você agora nos conta Sylvia. Muito bom.
Que bom que gostou. Volte sempre. Toda quinta tem matéria nova no blog.