Atualizado em 29/04/2024 por Sylvia Leite
Quem nasceu até pelo menos a década de 1960, em Aracaju1, cresceu sabendo que o litoral de Sergipe foi palco de alguns dos ataques alemães considerados como gota d’água para o Brasil entrar na Segunda Guerra Mundial. Entre 15 e 16 de agosto de 1942, cerca de duas semanas antes de o governo brasileiro declarar guerra aos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), três navios foram afundados pelos alemães a poucas milhas da praia de Atalaia, deixando mais de 500 mortos e, no dia seguinte, três ataques semelhantes ocorreram no vizinho litoral da Bahia. Embora muitos não saibam, a memória desses acontecimentos está gravada em Aracaju, no Cemitério dos Náufragos – provavelmente o único do Brasil a concentrar vítimas da Segunda Guerra.
O Cemitério dos Náufragos são dois
Hoje, pouco se sabe sobre esses fatos. Historiadores locais atribuem o desconhecimento à pouca relevância que é dada aos episódios da Segunda Guerra na História do Brasil – especialmente em livros didáticos – onde o envolvimento brasileiro na guerra é apenas mencionado genericamente ou descrito como simbólico. Mesmo em Aracaju, as informações são escassas e contraditórias.
Alguns registros atribuem a fundação do cemitério ao médico Carlos Moraes de Menezes, que o teria criado à beira-mar especialmente para enterrar as vítimas dos bombardeios, mas há quem garanta que o local já existia de forma precária – com o nome de Cemitério de Manguinhos ou de Campinho -, e foi rebatizado depois desses sepultamentos. Apenas uma informação parece unânime: o Cemitério dos Náufragos recebeu somente as vítimas que não puderam ser identificadas em decorrência das mutilações.
Outro fato ajuda a confundir quem busca informações sobre o monumento: o local que hoje é oficialmente considerado Cemitério dos Náufragos foi construído na década de 1970, à margem de uma rodovia homônima, com o propósito de substituir o primeiro.
A proposta do deslocamento era desativar o antigo cemitério – que hoje se encontra em uma área residencial e turística na praia de Aruana -, e criar um novo espaço para a memória dos náufragos. Os túmulos foram transferidos, mas, pelo menos por enquanto, o cemitério original continua a existir, de modo que em alguns mapas constam dois monumentos: o original Cemitério dos Náufragos, localizado na praia de Aruana, e o Cemitério Monumento dos Náufragos, localizado no povoado do Mosqueiro, um distrito de Aracaju.
A gota d’água para a declaração de guerra
Os bombardeios ocorridos nas costas de Sergipe atingiram os navios Baependy, Annibal Benevolo e Araraquara – embarcações civis de transporte de carga e passageiros, que navegavam com luzes acesas sinalizando a neutralidade do Brasil até aquele momento. As duas primeiras pertenciam ao Loyd Brasileiro e, a última, ao Loyd Nacional. Na Bahia, os alemães atacaram os navios Itagiba, Arará, o veleiro Jacira e um cargueiro não identificado que alguns acreditam ter sido o S.S. Clymer.
Os torpedos partiram do submarino alemão U-507 que havia deixado a França cerca de um mês antes, com destino ao litoral brasileiro. Em seu comando estava o capitão de corveta Harro Schacht que, em 7 de agosto, teria recebido ordens, por rádio, do QG alemão, para bombardear qualquer navio de bandeira brasileira.
O primeiro alvo, o vapor Baependi, foi atacado na noite de 15 para 16 de agosto (há controvérsias sobre o horário), em meio à comemoração do aniversário de um tenente da Marinha Mercante. Os sons da festa teriam sido captados pelo sistema de escuta do U- 507, segundo anotações do comandante Schacht, em seu diário de bordo. Um dos sobreviventes, o então terceiro sargento Jorge Tramontin, contou que os passageiros estavam jantando quando foram atingidos pelo primeiro torpedo. Ele afundou, como os outros, mas conseguiu agarrar-se a destroços e depois foi salvo por um barco.
Algumas fontes contabilizam 270 mortos e 36 sobreviventes, 28 dos quais no único bote salva-vidas que pôde ser retirado do navio, pois o curto intervalo entre os ataques (cerca de 2 minutos) teriam impedido o acesso aos outros.
Em seguida foi a vez do Araraquara, que explodiu ao ser atingido pelos torpedos. Segundo as mesmas fontes, o ataque deixou 131 mortos e apenas 11 sobreviventes, que chegaram ao litoral de Sergipe agarrados em destroços.
O bombardeio ao Aníbal Benevolo ocorreu horas depois (não há consenso sobre o horário e questiona-se inclusive, se foi no dia 16 ou no dia 17). Há quem fale que ocorreu na madrugada enquanto todos dormiam. Conta-se que, segundo um sobrevivente, o navio foi partido em dois e em seguida afundou. Todos os passageiros morreram e apenas quatro tripulantes sobreviveram. O ataque teria deixado 150 mortos.
Do mesmo modo que não há consenso sobre datas e horários, também há divergência sobre o número de mortos. As informações são ainda mais contraditórias no que se refere à chegada dos corpos e de objetos ao litoral. Ao que tudo indica, assim como acontece em quase toda tragédia, algumas pessoas teriam tirado proveito da situação, roubando dinheiro, jóias e outros objetos de valor encontrados na praia.
Nos dias seguintes aos bombardeios, Aracaju viveu momentos de intensa comoção. Por um lado, um forte movimento de solidariedade, com famílias abrigando em suas casas sobreviventes de outras cidades, ou estados, que ainda não estavam em condições de viajar, ou parentes de vítimas que chegavam em busca de informações. Por outro, um clima de revolta que ocasionou protestos e perseguições a estrangeiros acusados, em alguns casos injustamente, de colaborar com os alemães. Os protestos estenderam-se a outros estados brasileiros, com depredações de estabelecimentos pertencentes a alemães, italianos, japoneses e seus descendentes, obrigando o governo brasileiro a entrar na guerra.
Memórias dispersas
Ao longo de muitos anos, a história dos bombardeios foi repetida aqui e ali por pessoas que, de alguma maneira, vivenciaram a tragédia. Um dos personagens mais populares era Saltro dos Santos – conhecido como Manequito – que se definia como um pescador e tirador de côco, seguindo a profissão dos pais, o que lhe deixou uma marca conhecida por todos: mãos e pés enormes.
Era um bar de aparência rústica, com estrutura de madeira barata, esteiras nas paredes e sem banheiro. Mesmo assim, entre as décadas de 1970 e 1980 atraiu muito mais que estudantes sem dinheiro. A maioria dos frequentadores da praia – gente de várias gerações – passavam ali em algum momento da noite para dar um trago e alguns deles levavam as batidas para tomar nos bares vizinhos. Os que ficavam – em geral jornalistas, artistas e intelectuais, eram premiados com as narrativas dos bombardeios e outras aventuras do ex-pescador.
História de amor
embaixo da embarcação. Conseguiu chegar a uma praia do município de Estância e foi levada para Aracaju, onde se recuperou e passou a viver em um hotel, sendo abrigada, em seguida, pela família de um médico.
Notas
- 1 As citações entre aspas são trechos de entrevista concedida por Manequito ao jornalista Osmário Santos, em 1990, publicada no Jornal da Cidade e em seu livro Oxente! Essa é a Nossa Gente e reproduzida pela Infonet.
- 2 O depoimento de Zé Peixe está em diversos textos e não foi possível identificar a quem foi prestado
- 3 Zé Peixe será tema de matéria aqui no blog. Aguardem
- 4 Leia, aqui no blog, outras matérias sobre Sergipe: Aracaju / Mercado Thales Ferraz / Museu da Gente Sergipana / Painéis de Jenner Augusto / Grota de Angico / Museu do Sertão / Parque dos Falcões / Horto de Caípe Velho
Cemitério dos Náufragos e Cemitério Monumento dos Náufragos – Praia de Aruana e Mosqueiro – Aracaju – Sergipe – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1,4,5,6) Autor desconhecido
- (2) Google Maps
- (3) Sylvia Leite
- (7) Osmário Santos
- (8) Arquivo Tv Sergipe
- (9) Cartaz de propaganda da Guerra
Referências
- A guerra já chegou entre nós!: o cotidiano de Aracaju durante a guerra submarina (1942/1945), de Luiz Antônio Pinto Cruz (Dissertação de Mestrado em História Social - Salvador: UFBA, 2012)
- O Brasil na mira de Hitler: a história do afundamento de navios brasileiros pelos nazistas, de R. Sander, Rio de Janeiro: Objetiva, 2007
- Cemitério dos Náufragos: uma Proposta de Arqueologia Histórica em Sergipe, Edição n. 10 – 10 de dezembro de 2012, www.getempo.org. Cadernos do Tempo Presente – ISSN: 2179-2143. UFS
- O patrimônio arqueológico de Sergipe referente ao período da Segunda Guerra Mundial, de Roberta da Silva Rosa e Gilson Rambelli, da Universidade Federal de Sergipe
- Os náufragos: uma história sangrenta no mar de Sergipe, de Luiz Antônio Barreto, publicado em 2012 no site Coisas de Socorro
- Manequito: figura carismática da Atalaia, do jornalista Osmário Santos, publicada no Jornal da Cidade e em seu livro "Oxente! Essa é a Nossa Gente" e reproduzida pela Infonet
- Os dois dias que abalaram o Brasil, documentário amador, postado no site da Força Expedicionária Brasileira -FEB
- Navios Brasileiros Afundados na Costa de Sergipe, de Carlos Arruda Accioly e Maurício Carvalho, Sistema de Informações de Naufrágios - SINAU
Excelente Silvinha. Uma pena que livros citem o Brasil na guerra com pouco valor enquanto a Itália ano pôs ano homenageia o Brasil pela sua intervenção.
Ótimo registro, Sylvinha!!!! Você reuniu todas as informações. Belo trabalho!
Beijo
sonia pedrosa
Pois é. E esses ataques foram terríveis. Atingiram alvos civis de um país que não estava em guerra.
Obrigada, Soninha. Suas fotos ajudaram bastante. Beijo
Muito interessante sua matéria, Sylvinha! Conhecia apenas alguns detalhes dessa história, contados por moradores dos povoado Areia Branca e Mosqueiro. Seu texto elucida muitos fatos desse episódio que comoveu o povo sergipano.
Abraços,
Val Cantanhede
Valeu, Val. Bom ter você sempre por aqui. Bj
Muito interessante esse episódio. Eu acredito que conheci uma jornalista que bebia muito naquele bar da praia. Uma vergonha não ter um monumento decente sobre o acontecido.
Que honra, ter como leitor um jornalista desse calibre (aproveitando a temática, hehehe)! Bom saber que anda espiando por aqui. Bjo
Meus parabéns pelo referido texto.
Obrigada, Maria Elizia.