Atualizado em 06/05/2024 por Sylvia Leite
Quando era menino, em Nossa Senhora da Glória, no sertão de Sergipe, Cícero Alves dos Santos, criador do Museu do Sertão, não gostava de brincar com as outras crianças. Preferia ouvir as histórias de Caipora, Lobisomen, Fogo corredor, Mulher de Padre e de Cordel contadas pelos velhos sertanejos. Quem assistia aquilo, achava uma escolha muito estranha e dizia que ele estava assumindo um comportamento de “Véio”.
O apelido permaneceu por toda a infância, entrou pela adolescência, vida adulta e acabou se tornando seu nome artístico. Se ainda estivessem vivas, as pessoas que lhe batizaram assim saberiam agora que na verdade ele sempre brincou, mas tinha uma brincadeira própria: viajar pelo mundo encantado das histórias que escutava.
O imaginário mítico foi pouco a pouco se materializando em esculturas de madeira que hoje habitam inúmeros compartimentos do Museu do Sertão, instalado em um sítio em Feira Nova, município vizinho à sua terra natal: Nossa Senhora da Glória. As árvores transformadas, dispostas lado a lado, parecem pequenas florestas de vultos, iluminadas por réstias de sol que entram pelas gretas dos telhados.
Em quartos vizinhos, e algumas vezes até ocupando o mesmo espaço, encontram-se velhas ferramentas das mais diversas profissões. Essas faces aparentemente antagônicas do artista, traduzidas por ele mesmo como “o desejo de criar e de preservar”, são, até o momento, as duas vertentes do Museu do Sertão. Mas como ele próprio já sinaliza, outras já começam a ganhar forma em sua imaginação e breve farão parte de seu acervo.
Museu do sertão: a vida extraída de árvores mortas
A face criativa do Museu do Sertão poderia ser classificada em três variedades: os bichos, as figuras humanas e as miniaturas. A escolha do tipo e do tema depende da hora, da vontade e do material disponível. “Eu olho o galho e já sei o que fazer” revela Véio. Ele diz que pensa, executa, dá nome e cria a história de cada peça, mas adverte: “não é história escrita, a história é pra mim. Se chegar alguém aqui que eu achar que mereça eu falar de alguma peça, eu vou falar …”
A escultura destacada na foto, pelo artista, por exemplo, traz à tona sua paixão pelas tradições. É inspirada em grupos religiosos conhecidos como “Penitentes“, que saem às ruas encapuzados e vestidos de branco, geralmente na Semana Santa, rezando pela purificação das almas. Já o cachimbo expõe seu lado espirituoso. Traz uma caveira para mostrar o destino de quem pita.
Véio esculpe ora em galhos ou troncos secos, ora em raízes e faz questão de deixar claro que não é desmatador. Pelo contrário. O que faz, segundo acredita, é “dar vida ao que já está morto”. O jeito encontrado para usar madeira sem destruir foi procurar, no mato, árvores caídas naturalmente ou, na área urbanizada, aquelas que por questões de segurança precisaram ser arrancadas.
No Museu do Sertão tem peça de todo tamanho. As maiores ultrapassam a altura do artista, enquanto as menores cabem em sua mão e algumas chegam a ser esculpidas em palitos de fósforo. Além de ser fascinado pelo detalhe, Véio vê nas miniaturas uma forma de comunicar ao mundo que o tamanho não importa: “a peça pode ser pequena e ter mais valor que uma grande”.
Esse talento para esculpir obras minúsculas surgiu na infância, por volta dos cinco anos de idade. O material era a cera de abelha. Ele trabalhava escondido e quando surgia alguém apressava-se em desmanchar tudo para não ser pego em flagrante. Era assim porque sua família e toda a vizinhança confundiam esculpir com brincar de boneca, uma atividade proibida para os homens.
Na época, o maior desejo de Cícero era poder manter as esculturas inteiras, à sua volta, para admirá-las – um sonho que só foi realizado décadas depois com a compra da terra que hoje abriga o Museu do Sertão.
Histórias de vida contadas pelas ferramentas de trabalho
Esculpir e admirar as próprias obras não é suficiente para o artista. Se na infância ele gostava de estar com os velhos, na medida em que foi amadurecendo parece ter substituído essa companhia pela de máquinas e instrumentos antigos.
São ferramentas de marceneiros, carpinteiros, ferreiros, pedreiros, costureiras, fiandeiras, moleiros, que ele arrecada com parentes, amigos e conhecidos. Muita gente já sabe de sua paixão pelos instrumentos e tem prazer em colaborar. Conta-se que Véio já foi até incluído em testamento como herdeiro de uma roca. É que a dona da peça queria ter certeza de que seu instrumento de trabalho seria preservado no museu.
Além de coletar, ele também faz questão de saber como as ferramentas funcionam. Busca as informações para sua satisfação pessoal e para poder explicar aos visitantes. Sabe como utilizar todas as peças e conhece as etapas do dos aparatos mais complexos como, por exemplo, a casa de farinha.
Criando e preservando
O desejo de criar e preservar foi fundido por Véio em um terceiro projeto: o resgate da memória da cidade natal, Nossa Senhora da Glória, na época de sua fundação, quando ainda se chamava Boca da Mata. Por meio de uma maquete que ele próprio esculpiu, o artista resgatou não apenas a aparência das casas e o traçado da cidade, mas também os aspectos culturais e religiosos do lugar. Tudo de maneira informal e sem escrever uma só linha.
Para complementar a maquete e tornar a memória ainda mais viva, Véio pretende fazer o que ele chama de “uma construção que vai mostrar como foram as primeiras moradias da região”. O passo inicial já foi dado com a aquisição de lajotas de cerâmica extraídas de uma casa construída em 1901, que o artista exibe como um troféu.
A vertente de preservação do Museu do Sertão é conhecida de poucos, mas a de criação já ganhou asas. Em 2017, o sertanejo conhecido em sua terra natal como “o cara que faz bonecos” foi um dos dez contemplados com o Prêmio Itaú Cultural 30 anos, promovido, segundo os organizadores, para destacar artistas cuja contribuição impactou o cenário cultural brasileiro nas últimas três décadas. Em 2018, a exposição intitulada “Véio – a imaginação da madeira”, ocupou três andares do prédio do Instituto na Avenida Paulista.
Mas antes disso, o trabalho do artista sergipano já tinha ido muito mais longe. Em 2012, algumas de suas obras integraram a coletiva Histoires de Voir, da Fondation Cartier, em Paris e quatro de suas obras fazem parte hoje do acervo da instituição. Três anos depois, o artista inaugurou uma exposição individual em Veneza, paralelamente à Bienal, com 109 obras, patrocinada por uma grife italiana.
Autêntico e irreverente, Véio vem construindo ao longo dos anos um verdadeiro Museu Vivo. Há vida em seu ateliê, que ocupa um dos quartinhos do sítio; há vida nas obras, que vão se acumulando dia a dia; há vida nas ferramentas que manuseia e descreve; há vida em todas esses movimentos que fazem o Museu do Sertão caminhar junto com seu autor, seguindo a ligeireza do tempo. Há vida, também, nas visitas, que precisam ser agendadas previamente e contam com a monitoria do próprio Véio.1
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, outras matérias sobre lugares e/ ou monumentos do sertão nordestino: Grota de Angico / Museu de Xingó / Ilumiara Jaúna / Pedra do Ingá / Lajedo de Pai Mateus
- 2 Leia, também, sobre outros museus ou acervos de artistas brasileiros: Portinari / Athos Bulcão /Jenner Augusto/
Museu do Sertão – Feira Nova – Sergipe- Brasil – América do Sul
Fotos
- (1,2,3,4,5,6,7 e 8) Sylvia Leite
- (7) Site da Fondation Cartier
Maravilhoso, Sylvinha!!!! Veio é nosso herói!
Que historia envolvente, ainda com a pitada de orgulho de ser sergipano. Viva Véio, viva!
Não é? Viva Véio e Viva o sertão sergipano.
Ele é muito especial mesmo!
Que história linda que vc resgato! Véio é um grande artista que precisa ser mais prestigiado pelos sergipanos.
Valeu, Ofélia. Também acho. Recebi várias mensagens de São Paulo dizendo coisas do tipo: "Ah, eu conheço. Vi a exposição dele no Centro Cultural Itaú". E aqui muita gente nunca ouviu falar nele.
Que história incrível. Vale a pena, mesmo, ser espalhada.
Então ajude a espalhar rsrsr Beijo.
Orgulho de ser sergipana , viva o talento de Veio.
Viva!
Esse véio não tem nada de véio, sempre foi muito inteligente, culto, inspeirador, criativo, artista nato, gostaria muitod e conhecer as sua obras ao vivo.
Quando for, levarei minhas filhas que são muito cultaas.
Vale a pena. Você esqueceu de colocar seu nome .Obrigada pelo comentário.
Esse foi o texto mais gostoso. Viajei pra valer com o "Veio". Quero muito conhecer o Museu do Sertao.Augusta Leite
Que bom! Não esqueça que é preciso agendar.
Ótimo. Elas vão gostar muito.
Mais uma vez um texto primoroso. Divulgar a obra de Véio é de fundamental importância para dar conhecimento a todos do trabalho consistente e criativo desenvolvido por esse sergipano, talvez, desconhecido pelo grande público. Parabéns
Deu vontade de conhecer.
O seu relato é carregado de sensibilidade. Contagiante!!
Belo texto, Sylvia!!
Obrigada, Márcia. Se puder, compartilhe com os amigos. Beijo
Obrigada, Neilton. Feliz por você estar aqui todas as quintas. Beijo.
Sylvia, estou cada vez mais encantada com seu texto impecável em lugaresdememoria.com.br, divulgando histórias maravilhosas como esta do Veio. Parabéns.
Obrigada, Vi. Quita-feira tem mais. Não perca!
Parabéns Silvia, texto maravilhoso, Veio é um grande artista, creio que muito sergipano nunca ouviu falar da sua história, eu inclusive
Obrigada. Bom poder contribuir com essa divulgação.
Parabens Sylvinha! Muito legal seu relato , não tinha conhecimento de Véio ! Vamos divulgar!
Você não assinou. Não sei quem você é, mas obrigada pelo comentário de qualquer forma. Beijo.
Otimo texto! Muito obrigada pelo compartilhamento! Gostaria muito de saber como fazer para agendar uma visita, mas nao encontrei essa informação em lugar nenhum… Você tem algum telefone para contato para agendamentos?
Desde já, muito obrigada!
Obrigada. Fico feliz que tenha gostado. Para agendar, você precisa falar com a mulher dele que se chama Graça. O telefone é (79) 99889-6400. Você esqueceu de assinar o comentário. Se puder deixar seu nome depois… Gosto de saber quem comenta. Obrigada mais uma vez.
Texto maravilhoso!
Obrigada, Gilca. Bom saber que que é leitora assídua.
http://bienaldosertao.wixsite.com/bienaldosertao
Que história maravilhosa. Muito boa mesmo a sua postagem. Uma verdadeira reportagem. Parabéns. Um abraço.
https://oseucompanheirodeviagem.wordpress.com/
Obrigada, Alberto.
Que lindo seu relato sobre criador e criaturas, é muita afetividade envolvida. Cheguei a me emocionar aqui sobre o que está por trás desse Museu do Sertão sergipano.
É um lugar muito especial que quase ninguém sabe que existe. E as obras de Véio estão espalhaas pelo mundo.
Encantada em conhecer aqui o Museu do Sertão. Acho de extrema importância toda iniciativa de cuidar, preservar e manter a nossa cultura. Gostaria de conhecer este Museu do sertão em Sergipe.
Você não vai se arrepender, Deyse. É um lugar muito especial, com peças incríveis.
Como dizia a minha avó, quem é bom já nasce pronto. É o caso de Veio, que desde pequeno é atento às coisas que verdadeiramente importam. O sucesso dele é o resultado dessa observação, do conhecimento acumulado toda a vida e o poder de transformar em arte o que encontra pela frente. Grande Veio. Grande Sylvinha, que resgatou essa história e dividiu com todos mundo!
Valeu, Soninha. Grande Véio mesmo. Fiquei fascinada com o Museu do Sertão. A obra dele é linda de qualquer maneira, mas observa-la nesse ambiente é muito melhor.
Uau, muito especial conhecer sobre o Museu do Sertão pelo seu texto Sylvia. Parabéns pela apresentação e para no chamar a atenção para a conciliação entre criar e preservar. E é isso que temos que fazer, cuidar, e preservar! quero conhecer este museu! Obrigada!
Vale a pena, Deyse. Dá vontade de ficar o dia todo.
Show! Adorei!
Adorei conhecer através do seu post o Museu do Sertão: a conciliação entre criar e preservar. Obrigada!
Que legal! Eu adoro museus, e adorei saber mais sobre o Museu do Sertão. Seu texto me fez querer viajar e conhecer esse lugar incrível do nosso país. Obrigada por compartilhar. Beijinhos