Museu de Xingó: o guardião de uma cultura ancestral

Tempo de Leitura: 5 minutos

Atualizado em 03/04/2022 por Sylvia Leite

 

Fachada do Museu de Arqueologia de Xingó - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIACada vez que se constrói uma usina hidrelétrica, o benefício da eletrificação é acompanhado pelo alagamento de extensa área, o que representa um alto custo social, tanto pelo desalojamento – e, muitas vezes, desagregação da comunidade -, como pelas perdas de fauna, flora e sítios arqueológicos. Por isso exige-se das empresas construtoras a realização de um salvamento prévio não apenas de animais e vegetais, mas também de evidências de civilizações passadas, o que nem sempre é feito de forma satisfatória. A construção da Usina de Xingó em Canindé do São Francisco, no sertão de Sergipe, não foge à regra no que diz respeito às perdas, mas diferencia-se por ter trazido um grande ganho: o Museu de Arqueologia de Xingó, mais conhecido como Museu de Xingó, que reúne cerca de 50 mil peças e vestígios dos primeiros habitantes da região.

Foto Sylvia Leite - Matéria Museu de Arqueologia de Xingó - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAAcredita-se que esses grupos pré-históricos tenham chegado ao local cerca de 9 mil anos atrás, vindos do Planalto Goiano, das cabeceiras do São Francisco e do Sudoeste da Bahia. Supõe-se que pertenciam a uma cultura arqueológica ainda não identificada. Um dos argumentos em favor dessa tese está no fato dos utensílios e expressões artísticas ali encontrados serem distintos do que se conhece, até o momento, na região Nordeste.

Sobre esses povos, sabe-se, por exemplo, que viviam em cavernas ou nos chamados terraços aluviais e alimentavam-se basicamente de peixes eResgate do processo de produção da arte rupestre em Xingó - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA moluscos, apesar de também coletarem frutas e caçarem tatus, lagartos e corujas. Para fabricar seus utensílios e adereços, usavam matérias primas abundantes na região como argila, pedras, madeira, conchas e ossos. Para o transporte, usavam pequenas embarcações como pirogas e canoas. Morriam cedo para os padrões atuais, vivendo apenas de 30 a 40 anos.

Os restos mortais encontrados na região indicam que havia, entre eles, uma estratificação social identificada pelas diferentes maneiras como os integrantes desses grupos foram enterrados: em covas individuais ou coletivas, com mais ou menos complementos funerários, especialmente objetos, vasos de cerâmica e adornos como colares de osso, além de cadáveres de animais.

Das marcas deixadas por esses primeiros habitantes da região, destaca-se principalmente sua arte rupestre1, executada com tinta vermelha, a partir de pincéis ou das próprias mãos. Entre os temas pintados, encontram-se principalmente imagens identificadas como figuras geométricas, havendo, também, representações humanas, de animais e símbolos astronômicos.

O projeto de salvamento

Salvamento do Cemitério do Justino - Imagem USP e Chesf - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAO salvamento foi realizado pela Universidade Federal de Sergipe – entidade gestora do museu – e teve início em 1988, cerca de sete anos antes do alagamento. Nesse período, foram descobertos 255 sítios arqueológicos. O primeiro grande vestígio pré-histórico encontrado na região foi o Cemitério do Justino, com 188 esqueletos humanos, a maioria em posição fetal e acompanhados de pertences usados em vida. A descoberta de animais em algumas covas talvez seja um dos elementos mais significativos desse estudo pois leva à hipótese de que os sepultamentos tenham sido acompanhados de práticas rituais.

Em uma das covas analisadas, a 119, foi encontrado um esqueleto de furão sobre a região abdominal do morto. Já na cova 116, havia, sobre os restos humanos, o esqueleto de uma ave de rapina. A suposição é de que humanos e animais tenham sido enterrados juntos, restando esclarecer, apenas, se os animais teriam uma relação em vida com as pessoas ali enterradas ou se teriam entrado em cena apenas no ato do sepultamento.

Com base em estudos realizados no Vale do Moche, no Peru, acredita-se que a presença de animais em covas possa indicar não apenas a existência de práticas rituais de sepultamento, mas também a utilização de algumas espécies na função de psicopompos – entidades capazes de conduzir a percepção do ser humano entre dois eventos significativos, e que, no caso dos mortos, atuariam como guias das almas em sua Ossada encontrada no Cemitério Justino - Foto USP/Chesf - BLOG LUGARES DE MEMÓRIApassagem para o outro mundo.

A riqueza do material encontrado ampliou a pesquisa para além da área que seria inundada e para muito além do período de salvamento. Os
levantamentos continuam e, segundo Cleonice Vergner, que foi coordenadora do Projeto Arqueológico de Xingó, há trabalho para pelo menos quatro gerações.

O museu que decorre desse salvamento funciona em dois espaços distintos: o prédio de exposições, com cerca de 800 metros quadrados, e os laboratórios de pesquisa, que ocupam uma área duas vezes maior. Juntas, as duas divisões do MAX empregam mais de 40 pessoas e sustentam mais de duzentas, entre funcionários e suas famílias. A maior parte da equipe é formada por moradores da região, muitos dos quais chegaram à instituição sem saber ler e escrever. Hoje todos estão alfabetizadase alguns deles avançaram ainda mais nos estudos chegando a fazer supletivo, graduação e até mestrado.

Arte contemporânea e difusão científica

Além do acervo pré-histórico,Obra de Arte produzida para o Museu de Xingó - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA que reúne peças de arte rupestre, esqueletos humanos e utensílios descobertos durante a operação de salvamento, o MAX conta com uma coleção de artes plásticas composta por quatro trabalhos. As obras tiveram origem nas discussões para a montagem da exposição de longa duração e estão integrados à arquitetura do prédio de exposições. São dois painéis, um óleo sobre tela e uma escultura, que procuram unir cultura e geologia e estabelecer um diálogo entre materiais antigos, como a pedra e a argila, e contemporâneos como o cimento.

Na área educacional, o museu realiza um programa educativo que, por meio de oficinas, cursos, exposições itinerantes e muita brincadeira procura proporcionar aos alunos de escolas sergipanas, especialmente de escolas públicas, os primeiros contatos com a Arqueologia e com as pesquisas desenvolvidas na região do Xingó. O MAX tem, ainda, uma revista científica, a Canindé, que reúne trabalhos acadêmicos sobre as pesquisas realizadas na região e sobre temas afins.23

 

 Friso do Museu de Arqueologia de Xingó - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

Notas

Museu de Arqueologia de Xingó – Canindé de São Francisco – Sergipe – Brasil – América do Sul

Texto

Fotos

  • (1,2,3,6 e 7) Sylvia Leite
  • (4 e 5) USP/Chesf
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sonia pedrosa cury
3 anos atrás

Sim, essa região é muito mais do que um passeio de catamarã. Por isso, acho que a visita de ser num final de semana inteiro e não num bate e volta. Há muito o que explorar, conhecer e aprender.
Beijão, Sylvinha!
sonia pedrosa.

Anônimo
Anônimo
3 anos atrás

Ótima matéria, Silvinha! Quero voltar lá. Beijos, Bia.

Susana Spotti
3 anos atrás

Não conheço essa região ainda, mas anotei deixei anotadinho aqui para conhecer o Museu de Arqueologia de Xingó: o guardião de uma cultura ancestral

Deyse
Deyse
3 anos atrás

Uma grande pena o "desenvolvimento" vir carregada de tanta perda, estrago e sem o mínimo de preservação. Quero muito conhecer o Museu de Arqueologia de Xingó, de fato um guardião de uma cultura ancestral.

Aline Laudelina Pires
3 anos atrás

Nunca tinha lido algo com tantas riquezas de detalhe sobre a arqueologia do Xingo. Menina fiquei pasmem com a quantidade de tempo estimado pelo arqueóloga para "desvendar" tudo a respeito desse povo, para mim que sou curiosa fiquei feliz com essa descoberta, imagino para quem trabalha na área, fascinante.

Cintia Vaz
Cintia Vaz
3 anos atrás

Nossa que demais! Sou louca por arqueologia, paleontologia e antropologia desde criança. Meu sonho por anos era de ser arqueóloga. Que incrível esse muse essa matéria maravilhosa sobre o museu de arqueologia de Xingó. Não sabia nada sobre turismo no Sergipe, nunca fui nem nunca tinha pesquisado, mas agora me interessei e vou procurar saber mais sobre o menor Estado Brasileiro.

Fabíola Moura
Fabíola Moura
3 anos atrás

Já estive duas vezes no Museu de Arqueologia de Xingó e a cada nova visita tenho uma descoberta. O acervo preservado da época da construção da barragem revela muito dos modos de vida dos povos ancestrais do Semiárido. Agora quero levar meus filhos para conhecer.

normeide neto de carvalho
normeide neto de carvalho
2 anos atrás

Adorei a matéria sobre o Museu de Arqueologia do Xingo. Estive lá na região recentemente, mas não cheguei a visitar o Museu. Já estou arrependida…

Cynara Vianna
1 ano atrás

Uma riqueza o Museu de Xingó. Fizemos uma viagem com os filhos quando eram ainda pequenos, passamos 4 dias pelas região, mostramos a hidrelétrica pra eles, Piranha, mas não fomos ao museu. Estamos programando voltar e sem dúvida o museu estará em nosso roteiro, agora com eles mais velhos será bem mais proveitoso também.