Grota de Angico: cenário da maior derrota do cangaço

Tempo de Leitura: 7 minutos

Atualizado em 15/03/2022 por Sylvia Leite

Grota de Angico - Foto Sylvia - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAO lugar parece uma arena teatral a céu aberto e as cruzes fincadas nas pedras mantêm viva a memória do trágico acontecimento: no dia 28 de julho de 1938, policias do município alagoano de Piranhas1 mataram e degolaram Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, sua mulher Maria Gomes de Oliveira, Maria Bonita, e mais nove cangaceiros. Embora o seu bando tenha agido por pelo menos mais dois anos, a partir desse dia a Grota de Angico passou à história como marco final do cangaço. O local do massacre e a trilha aberta pela ‘volante’ – nome dado aos grupos policiais da época – formam hoje o Monumento Natural Grota de Angico (MNGT) que recebe anualmente milhares de visitantes.

Cruzes em homenagem a Maria Bonita e Lampião- Foto Sylvia - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAO trajeto começa em Piranhas (AL), do outro lado do Rio São Francisco, de onde saíram as tropas oficiais, e inclui uma viagem de barco que hoje dura de 30 a 40 minutos, a depender do tipo de embarcação. Já na margem direita (SE), o visitante inicia o trajeto por uma trilha aberta na caatinga.

Embora o caminho já esteja muito mais ameno do que na época dos acontecimentos históricos – quando a caatinga era aberta a facão – é preciso disposição e preparo físico para encará-lo. São quase 700 metros de terreno acidentado, que dificilmente se consegue vencer em menos de meia hora.2

A visita oferece ao viajante um vislumbre do complexo contexto geográfico em que os fatos ocorreram: por um lado, uma paisagem de tirar o fôlego do ainda caudaloso Velho Chico. Por outro, e a poucos quilômetros do leito, a crueza da caatinga, seca, fechada e espinhenta.

No local da matança, duas cruzes homenageiam o casal de líderes e seus companheiros. Do outro lado, uma cruz isolada lembra o único soldado morto na operação: Adrião Pedro de Souza.

As dificuldades do trajeto são compensadas pela sensação de estar em um local ainda preservado que foi palco de um dos acontecimentos mais marcantes da história do Brasil.Tumba do únco soldado morto na operação - Foto Sylvia - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

O massacre na Grota de Angico

O massacre de Angico aconteceu em 28 de julho de 1938. Sua enorme repercussão deve-se principalmente à morte do casal Lampião e Maria Bonita, pois a volante de Piranhas não conseguiu exterminar nem metade dos 35 cangaceiros reunidos no local.

O bando foi entregue acredita-se que involuntariamente, por Pedro de Cândido, um de seus coiteiros – nome dado às pessoas que protegiam os bandos, em sua maioria fazendeiros, pequenos sitiantes ou mesmo autoridades.

Depois de quatro dias no local, Lampião pediu a Pedro Cândido que providenciasse mantimentos. O coiteiro, todos sabiam, tinha uma família pequena e chamou a atenção das pessoas a grande quantidade de rapadura, farinha e carne seca que ele comprou.

Em pouco tempo, a notícia já tinha chegado a Piranhas e o tenente João Bezerra da Silva começou a planejar a emboscada. O primeiro passo era torturar o coiteiro até que ele entregasse o esconderijo do bando. A cada pergunta não respondida, Pedro perdia uma unha. Não aguentando a tortura, ele e seu irmão, que também foi torturado, acabaram guiando os policiais até a grota.

Barco no Rio São Francisco entre Sergipe e Alagoas- Foto Sylvia - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAVinte e quatro deles conseguiram fugir. A Morte do soldado Adrião foi inicialmente atribuída ao bando, mas depois outras versões surgiram, todas incriminando a própria volante, entre elas a de queima de arquivo pelo fato do policial morto conhecer segredos que incriminavam o tenente líder da volante.

Os onze cangaceiros mortos tiveram suas cabeças decepadas e exibidas como troféus em várias cidades do Nordeste, a começar por Piranhas. Encerrada ‘a tournée’, as cabeças permaneceram expostas por 31 anos no Museu Antropológico Criminal do Instituto Nina Rodrigues, em Salvador.

Durante período, foram analisadas por equipes do instituto com base em uma teoria discriminatória desenvolvidaTrilha que leva à Grota de Angico - Foto Sylvia - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA pelo criminologista italiano Cesare Lombroso. De acordo com esse teórico, as pessoas que se tornam criminosas já nascem com essa predisposição e podem ser identificadas por características físicas e biológicas.

Depois da longa temporada de exposição e estudos, as cabeças foram enterradas no cemitério Quinta dos Lázaros, em Salvador. Somente em 2002 é que Expedita Ferreira Nunes, a única filha de Lampião e Maria Bonita, conseguiu reaver os crânios dos pais e acredita-se que ela os tenha enterrado em algum cemitério de Aracaju, cidade onde vive, mas sobre isso não há informações oficiais.

A história do cangaço

Como quase todos sabem, o cangaço foi um fenômeno social ocorrido entre os séculos 19 e 20 no sertão do Nordeste provavelmente em resposta à falta de emprego, alimentos e cidadania. Os cangaceiros eram andarilhos que vagavam pelas cidades e fazendas desafiando a ordem vigente e arrancando recursos dos fazendeiros. Usavam roupas e chapéus de couro para se proteger do sol e dos espinhos da caatinga. Calçavam sandálias de solas grossas que além de livrarem os pés dos espinhos e do calor, ainda ofereciam a vantagem de secar mais rápido que as botas quando era preciso atravessar um riacho.

Vegetação a de Angico - Foto Sylvia - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAEssa adaptação ao contexto geográfico e o grande conhecimento do sertão fazia com que tivessem grande agilidade e levassem grande vantagem sobre os policiais. Com isso foram crescendo e se multiplicando ao longo de aproximadamente cem anos.

Entre lendas, fatos reais e narrativas que misturam as duas realidades, a imagem do cangaço foi sendo construída pelos os moradores do serão. Um desses ‘causos’ explica o apelido de Virgulino Ferreira da Silva. Conta-se que em um de seus ataques a fazendas, Lampião atirou tanto que o fogo de suas balas iluminou a noite.

Há também histórias de horror, segundo as quais cangaceiros jogariam crianças para o alto e as aparariam com punhais. Mas também há relatos de distribuição de alimentos e até de dinheiro com as populações mais pobres.

As ações e as motivações dos cangaceiros são até hoje discutidas por historiadores e sociólogos. E as interpretações variam desde uma visão inteiramente negativa, em que são considerados bandidos sanguinários, até uma imagem romântica focada apenas no aspecto social sem levar em conta os atos de violência. Entre um extremo e outro talvez se encontre uma imagem mais próxima da realidade.

Quando a volante de piranhas emboscou Lampião, Maria Bonita e os outros onze componentes do bando, o cangaço já estava perdendo força. As estradas de rodagem iniciadas anos antes, depois da revolução de 1930, diminuíram a vantagem dos cangaceiros sobre os policiais, que passaram a deslocar-se de carro até bem perto dos esconderijos. A chegada dos telégrafos em maior número de cidades do sertão também contou pontos a favor das volantes.Cabeças dos cangaceiros exibidas como exemplo - Foto de domínio público - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

A história que se conta durante a visita à Grota de Angico é a de que Lampião estava no local para reunir-se com Cristino Gomes da Silva Cleto (Corisco) e outros cangaceiros a fim de traçar uma estratégia para matar o tenente Zé Rufino, líder da volante da Bahia e um dos maiores matadores que já se teve notícia. Mas há quem diga que o rei do cangaço foi até a fazenda Angico para entregar-se sob a proteção de um poderoso político de Sergipe, pois estava tuberculoso e precisava de tratamento.

As duas versões coincidem ao informar que naquele encontro Lampião passaria a liderança do grupo a Corisco, conhecido como Diabo Louro, mas por causa de um atraso a matança ocorreu Bando de Lampião Grota de Angico - Foto de domínio público - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAantes que ele chegasse ao local. Mesmo assim, Corisco deu continuidade ao que sobrou do bando e agiu por mais dois anos até ser executado pela volante de Zé Rufino, o que parece ter colocado o ponto final na história do bando.

A missa do cangaço

Em homenagem aos cangaceiros mortos na emboscada de 1938, e em memória de todo o movimento, é rezada anualmente a Missa do Cangaço. O evento teve início de forma privada, organizado pela família de Lampião, mas hoje tem o apoio de várias empresas e instituições e faz parte do calendário de ecoturismo do Estado.

Além de preservar a história do cangaço, a área onde se localiza a Grota de Angico é também uma reserva estadual do bioma caatinga.3

Notas

Grota de Angico – Poço Redondo – Sergipe – Brasil

Texto

Fotos

  • (1, 2, 3, 4, 5 e 6) Sylvia Leite
  • (7 e 8) Autor desconhecido
Compartilhe »
Increva-se
Notificar quando
guest
20 Comentários
Avaliações misturadas ao texto
Ver todos os comentários
R Leandro
5 anos atrás

Uma história que faz parte da história do Nordeste. Uma narrativa brilhante, feita por uma jornalista nordestina, que domina a arte… Obrigado Sylvia Leite.

Val Cantanhede
5 anos atrás

Muito bom seu texto, Sylvinha! Fiquei a imaginar quem seria o político sergipano que iria intermediar a rendição de Lampião…
Abraços
Val Cantanhede

Unknown
5 anos atrás

Gostei muito! Parabéns!

Mário Veiga
5 anos atrás

Excelente matéria sobre o encontro da volante x Lampião e final de uma estória do velho e sofrido Nordeste.

Unknown
3 anos atrás

Já fui conhecer! Um lugar incrível, gosto de tudo que concerne ao tema cangaço e você fez uma maravilhosa reportagem, fotos perfeitas, obrigado por difundir lugares do nordeste, minha terra!

Unknown
3 anos atrás

Meu nome: Artur Dantas Filho e adoro sua página!

Unknown
2 anos atrás

Sou um nordestino apaixonado por tudo do nordeste, inclusive essa brilhante Estória de lampião… Parabéns pela a narrativa!!!

Gélio Osório Filho
Gélio Osório Filho
1 ano atrás

Sou do sul do Brasil, de Florianópolis, SC, mas moro em Criciúma, no mesmo Estado. Gostei da matéria, aliás sempre gostei de aprender mais sobre Lampião e seus comandados, muito embora tenha sido acontecimento que ocorreu há tanto tempo e a tão grande distância. Parabéns!

Sonia Maria Pedrosa Silva Cury
1 ano atrás

Eu ainda não conheço a grota do Angico. Mas com a sua narrativa, Sylvinha, deu para deslumbrar. E o melhor: sem o calor que deve fazer no local.

Cynara Vianna
1 ano atrás

Lampião é um personagem que divide opiniões, há quem ame e quem odeie não é verdade? Estivemos em Piranhas, mas não chegamos a ir à Grota do Cangaço, os filhos ainda eram pequenos e não seria um passeio prazeroso pra eles. Mais tarde, eles foram numa excursão pedagógica com a escola, mas eu e meu marido ainda não voltamos. Tenho vontade de ver de perto essa parte da nossa história.