Atualizado em 01/05/2024 por Sylvia Leite
Quem leu “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago, ou assistiu ao filme homônimo, baseado em sua narrativa, vai entender perfeitamente o que o Memorial Leprosaria Canafístula tem a contar1. São fotos, cartas e registros que atestam o sofrimento de quase duas mil pessoas diagnosticadas com Lepra, ou Hanseníase, nas primeiras décadas do século 20. Além de conviverem com o medo e o estigma decorrentes de uma doença sem cura, esses doentes, inclusive crianças, eram isolados do convívio social, sem poder ter contato sequer com os familiares. A política de internação compulsória não dava escolha. Os que resistiam eram capturados pela polícia sanitária.
O Memorial Leprosaria Canafístula foi instalado no prédio onde funcionava a administração e os serviços médicos do leprosário. Em apenas sete salas, o museu consegue dar uma ideia bem clara da realiadade que milhares de pessoas amargaram durante décadas, não apenas dentro da instituição, mas também fora de seus muros. Sim, porque do lado de fora não havia menos sofrimento. Ali estavam maridos, esposas, pais e até filhos dos doentes que nunca mais poderiam encontrá-los. Alguns desses filhos haviam nascido dentro do leprosário e tinham sido arrancados das mães logo após o parto.
Leprosaria Canafístula – uma das pioneiras
A Leprosaria Canafístula foi a primeira insitução do gênero no Ceará e uma das primeiras do país. Como tinha a função de segregar os doentes a fim de proteger a sociedade do contágio, foi instalada no município de Redenção, a 55 km de Fortaleza, distancia significativa para a época, Era composta por um enorme prédio, onde funcionavam a administração e os serviços médicos, e por uma colônia com dezenas de casas, onde eram instalados os leprosos. Havia também uma capela devotada a Nossa Senhora da Imaculada Conceição, um cemitério e um local de moradia das irmãs franciscanas que cuidavam dos doentes. Com o tempo foram criados outros equipamentos como teatro e biblioteca.
Segundo os registros, os que chegavam ali, tinham que regorganizar suas vidas e sua rede de relações dentro das limitações do isolamento. Nos primeiros anos de funcionamento da instituição, não era possivel nenhum contato com a realidade externa, a não ser pormeio de cartas e, mesmo dentro da colônia, havia segregação: na igreja e em outros ambientes, os leprosos eram separados por vidro dos profissionais de saúde e dos funcionários da instituição.
Uma história permeada pelo preconceito
Inaugurada em 1928, a Leprosaria Canafístula funcionou como lazareto2 por 2mais de quatro décadas. A mudança só ocorreu em 1973, em decorrência da descoberta da cura da Hanseníase e do fim do isolamento compulsório no Brasil, ocorridos na década anterior. Ao longo desse período, os doentes alcançaram algumas conquistas, como visitas de parentes e até curtas saídas da instituição, mas nunca deixaram de sofrer preconceitos.
Há relatos de que até os moradores da localidade de Canafístula – hoje distrito Antônio Diogo -, onde o leprosário está localizado, eram vítimas de deboche e desrespeito por parte das populações de povoados e municípios vizinhos, pelo fato de viverem próximos aos leprosos.
Com a cura da Hanseníase e a abertura da colônia, seus moradores estavam livres para voltar ao convívio social, mas as marcas deixadas pela doença e pelo isolamento impediram que grande parte deles deixassem a instituição. Alguns constituíram família lá dentro. Outros não tinham para onde voltar. E houve ainda os que saíram, mas não se adaptaram e pediram para retornar.
Hoje, sob o nome de Centro de Convivência Antônio Diogo, a instituição mantém os remancescentes do leprosário e oferece um serviço ambulatorial de Dermatologia destinado não apenas a essas famílias, mas também a pacientes da comunidade.
O Memorial Leprosaria Canafístula
A ideia de criar o Memorial Leprosaria Canafístula surgiu no início dos anos 2.000, mas sua concretização só começou a se esboçar em 2009, quando foi criada uma comissão para realizar musealização do espaço. Em 2018, quase uma década depois, o material coletado foi reunido em mostra temática que marcou os 90 anos da instituição.
Em pouco tempo, a exposição cresceu e ocupou as sete salas que hoje compoem o Memorial Laprosaria Canafístula. O primeiro espaço é dedicado a contextualizar o surgimento da instituição, concebida como resposta ao temor da população cearense, especialmente de suas elites, de que houvesse uma disseminação da doença. Na segunda sala já começa a ser apresentado o terror da instituição: os registros de nascimentos, mortes, fugas e até da retirada de bebês
saudáveis das respectivas mães para serem criados sem risco de contaminação. O documentos são complementados por depoimentos dos moradores da colônia.
As condições de moradia dos enfermos são apresentadas na taerceira sala, por meio de objetos pessoais como urinois quartinhas e lamparinas, que deixam claras a falta de instalações sanitárias e de luz elétrica nos primeiros anos de funcionamento da colônia. Já a quarta sala, mostra a presença religiosa na instituição que durou desde o início até a década de 1990. Nessa sala estão reunidos objetos sagrados, vestimentas usadas em rituais religiosos e uma mensagem do papa dirigida aos portadores de Hanseníase.
Imersão na realidade da colônia
Uma dos espaços mais vivos do Memorial é a quinta sala, batizada como Sala dos Pacientes que apresenta a história da instituição pelas lentes de seus usuários. Nela, estão reunidos artefatos e fotos que narram, do ponto de vista dos pacientes, a realidade dentro do leprosário ao longo de quase um século. Por um lado, as alternaticvas de sociabilidade e de auto-expressão que os pacientes abriram ao longo dos anos, por outro, o registro da solidão e da saudade materializados especialmente no monumento em alusão aos filhos separados pela política de internação compulsória.
A sexta e penúltima sala é dedicada à memória dos tratamentos médicos e odontológicos realizados na instituição ao longo de sua história, com destaque para o óleo da chaulmoogra que representou, até a década de 1940, a grande esperança de cura da Lepra e os registros do início da poliquimioterapia que trouxe a solução definitiva.
Depois de conhecer todos os aspectos da vida no lazareto, inclusive sob o ponto de vista dos pacientes, chegamos à sétima e última sala do Memorial Leprosaria Canafístula. Nela, o visitante vai mergulhar na realidade desses doentes, especialmente os que foram levados para a instituição em seus primeiros anos de funcionamento. Essa última parte do Memorial proporciona ao visitante uma imersão no leprosário por meio de uma experiência sensório-motora do processo de adoecimento, exclusão social, ressocialização e cura corridos lá dentro. Em seguida, conhecerá alguas propostas de ressocialização e inclusão social dos pacientes.34
Notas
- 1 As instituições onde os leprosos eram isolados recebiam o nme de leprosários, mas eram também chamadas de leprosarias ou lazaretos
- 2 A palavra Lazareto alude ao personagem bíblico Lázaro, que era um mendigo leproso e a São Lázaro que é considerado o protetor dos leprosos. Há uma confusão entre os dois personagens que, segundo algumas fontes, são a mesma pessoa
- 3 Não é permitido fotografar na sétima sala
- 4 Leia, aqui no blog, sobre outros lugares de memória do Ceará: Redenção / Mucuripe / Juazeiro do Norte
Memorial Leprosria Canafístula – Redenção – Ceará – Brasil – América do Sul
Fotos
- Sylvia Leite
Muito interessante a escolha da matéria. A história guarda informações preciosas.
Que bom que gostou, Ilda, Toda semana tem matéria nova no blog. Acompanhe!
Sou muito impressionada com leprosários pois fui algumas vezes com minha mãe e minhas irmãs visitar o de NS do Socorro, na estrada antiga que ligava Aracaju ao Quissamã. Minha mãe era considerada corajosa por visita-los e ainda nos levava junto, nao os rejeitava, levávamos ajuda que ela recolhia entre amigos e também sacas com tangerinas, cajus e jaca cultivadas no Quissamã.E entrávamos pra fazer a entrega aos responsáveis e víamos alguns doentes. Minha mae não super-estimava o p0der do contagio, apenas íamos com alguns cuidados. Tinhamos muita pena deles.
Isso ocorreu na decada de 1950 até a metade da década de 1960.
Esse museu é um grande feito de louvor em favor da memoria de uma época muito sofrida pra muita gente no Brasil. Muita rejeiçao já que a doença pegava e não tinha cura, era deformante e muito dolorida.
Verdade, Lílian. Eu não cheguei a ter contato com doentes , mas ouvia falar nas deformidades e ficava penalizada. Que corajosa, a sua mãe! Corajosa e humana. Deu um belo exemplo a vocês.
Sylvia, era muito penoso, apesar de crianças na faixa de 7 a 10 anos e tudo se transformar em passeio, voltavamos muito tristes pois eles corriam e se escondiam e davam adeus de longe, e quando avisados da visita fechavam -se nos bangalôs, esses que lá moravam eram os mais graves e quase sempre uma familia toda doente.
Minha mãe não falhava nas ajudas e conversava sobre eles com o pessoal da saúde que trabalhava lá…
Mas o tema era socialmente um tabu, sigiloso, apesar da zona ser rural com muito mato e pouco habitada existiam algumas casas de produtores rurais na redondeza, que ouviam de vez em quando dizerem com cautela: “ele mora perto do leprosario”, um estigma.
Exatamente como mostra o Memorial Leprosaria Canafístula. Obrigada pelo seu depoimento.
Sylvinha, que registro importante! Imagina quanta dor, quanto sofrimento impregnaram essas paredes…Ainda bem que a cura foi descoberta.
Sim, deve ter sido desesperador para os doentes e para os familiares.