Sitio do Mocó: da extração de borracha ao turismo arqueológico

Tempo de Leitura: 7 minutos

Atualizado em 02/05/2024 por Sylvia Leite

Igreja do povoado Sítio do Mocó - Foto de Sylvia Leite -- BLOG LUGARES DE MEMORIAPouco se sabe sobre a história do Sítio do Mocó – um pequeno povoado do município de Coronel José Dias1, no Sudeste do Piauí, que fica ao lado do Parque Nacional Serra da Capivara, onde se encontra uma das maiores concentrações de arte rupestre do mundo. Mas apesar da dificuldade de se encontrar registros sobre o local, dois marcos permanecem vivos na memória e na tradição oral de seus moradores: a formação do povoado por extratores de borracha e o impulso recebido com a chegada da arqueóloga Niéde Guidon e de sua equipe, que envolveram a comunidade na luta pela preservação dos sítios pré-históricos.

Segundo o guia de turismo Nestor Paes Landim Neto, os extratores de borracha vieram da Bahia e de Pernambuco, atraídos pela abundância da uma árvore típica da Caatinga e conhecida popularmente como Maniçoba – a Manihot pseudoglaziovii – de onde se tirava o látex para a produção de borracha natural. O primeiro deles teria sido Antônio Pereira, que chegou à região no comecinho do século 20.

Mais de um século depois, quando o povoado já reúne 140 famílias, Antônio Pereira ainda é considerado o personagem histórico mais importante do povoado e descendentes seus continuam vivendo no local. Foi ele quem construiu  a capela do Divino Salvador e é nessa igreja que seu corpo está enterrado. Em frente ao local onde se encontra a igreja, foi inaugurada uma praça que recebeu o seu nome. É também por causa dele –  e não por causa da abundância, na região, do mamífero roedor kerodon rupestris, popularmente conhecido como Mocó – que o povoado tem esse nome. Mesmo assim, a praça ostenta uma estátua do roedor pelo menos cinco vezes maior que seu tamanho natural.

A origem do nome Sítio do Mocó

Estátua de um mocó em praça no Sítio do Mocó - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAQuem conta esse caso é a moradora Paula Alves, dona de restaurante e de pousada no povoado. Pelo que ela sabe, Antônio Pereira era considerado um melhor atirador de rifle da região. Certo dia, um dos pedeiros que ele havia contratado para construir a igreja viu um mocó perto do paredão que fica a cerca de duzentos metros de distância e resolveu fazer um desafio: se Antônio conseguisse matar o mocó, ele abriria mão das oito diárias já trabalhadas.

Segundo Paula, “ele só fez arribar o braço e atirou, aí o mocozinho desceu rolando e o rapaz chega amarelou, só que ele não descontou nas diárias do rapaz”. Ela conta que a partir desse dia, Antônio Pereira passou a ser chamado de Antônio Mocó e e como era ali que ele morava, quando alguém queria se referir ao lugarejo que começou com sua chegada, dizia: “vamos lá no sítio do Mocó”. Foi assim que o apelido foi se consolidando até virar nome oficial do povoado.

A revolução comandada por Niéde

O Sítio do Mocó talvez tenha sido a localidade mais beneficiada pelas ações da equipe de Niéde Guidon que resultaram na criação do Parque Nacional da Serra da Capivara. Embora o foco desse trabalho fosse o estudo e a preservação da arte rupestre, Niéde e sua equipe apostaram  engajamento da comunidade, o que levou  a uma melhora na qualidade de vida e na geração de empregos.Já nos primeiros tempos, sua pesquisa mobilizou moradores do povoado – primeiro para guiá-la pela serra e em seguida nas escavações.Rua do Sítio do Mocó - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIA

Paula conta que quando a arqueóloga chegou à região, em 1970, o sítio do Mocó era povoado isolado, onde, segundo ela, “só ia quem tinha negócio”. A população, muito pobre, não tinha luz nem água encanada e vivia quase exclusivamente da agricultura familiar e da caça. Era lá que morava Nivaldo Coelho, que guiou Niéde na descoberta dos sítios arqueológicos.

Nos primeiros tempos, Niéde se hospedou na casa do guia e foi conhecendo o povoado. Percebeu, por exemplo, que a água era retirada de caldeirões naturais e vinha suja de dejetos de animais, o que causava uma grande mortalidade infantil provocada por diarréia. Descobriu também que muitos moradores extraiam mel de abelha, mas faziam isso de forma desorganizada, muitas vezes destruindo árvores e as próprias colmeias. A resposta chegou por meio de projetos sociais e comunitários.

Para resolver o problema da água, a arqueóloga e sua equipe conseguiram incluir o Sítio do Mocó em um projeto do Instituto Caritas, que instalou uma cisterna em cada casa. Paula conta que foi uma das primeiras a receber o benefício porque ela tinha uma criança de dois anos e afirma que desde o momento em que o projeto foi concluído, não morreu mais nenhuma criança de diarréia. Já o problema do mel foi contornado com um curso de apicultura visando não apenas a extração do mel para consumo, mas também para comercialização. Quem chegava ao final, recebia 40 colméias a serem pagas com o lucro da produção. Segundo Paula, os que souberam aproveitar, estão hoje com cerca de 400 colméias.

Os núcleos de apoio às comunidades

Os projetos da água e do mel não foram ações isoladas. A equipe de arqueólogos instalou núcleos de apoio – tanto no Sítio do Mocó como em outras comunidades vizinhas ao parque – com postos de saúde, hortas comunitárias e escolas que além do ensino formal, serviam cinco refeições por dia para as crianças e ofereciam cursos de todo tipo para jovens e adultos. Dessas escolas saíram os atuais guias da Serra da Capivara, os Prédio da escola criada por Niéde Guidon - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAceramistas que trabalham na oficina da Cerâmica Serra da Capivara, instalada na Comunidade de Barreirinho, também no município de Coronel José Dias, entre outros profissionais

Nestor conta que o engajamento da comunidade no projeto de Niéde gerou conversões. Além de ter acabado com a destruição de árvores e de colmeias para extração de mel, praticamente todas as pessoas que caçavam no parque para sustento próprio, e também para comercialização, hoje ganham a vida como vigilantes comprometidos com a proteção da fauna e da flora locais.

A preservação da arte rupestre não exigiu tantos esforços de conscientização junto à comunidade do Sítio do Mocó porque existia um consenso entre os mais antigos que não se podia mexer nas pinturas e isso foi passado para as novas gerações.  O guia Nestor, por exemplo, ouviu de seus pais que os desenhos eram ‘coisa de caboco bravo’ e, por isso, tinham que ser respeitados. Já o pai de Paula dizia que não se podia por as mãos nas pinturas nem riscar por cima delas porque no futuro as pessoas fariam filas para admirá-las e isso iria trazer desenvolvimento para a região.

A luta, no caso da arte rupestre, foi contra a degradação natural pela umidade e contra a ação de forasteiros, que arrancavam pedaços de rocha ou seixos pintados para levar como lembrança ou acendiam fogueiras próximas aos paredões, produzindo fuligem, ao pernoitarem na serra. Lutou-se também, e principalmente, pela proteção oficial do parque a fim de evitar sua invasão por grandes empreendedores.

Um sítio arqueológico na comunidade

Toca do Cruzeiro - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAAlém de estar muito próximo do Boqueirão da Pedra Furada – um dos mais importantes  pontos do Parque Nacional da Serra da Capivara, onde é realizada a já tradicional Ópera da Serra da Capivara —  e a menos de 3 km do Museu da Natureza, o Sítio do Mocó tem uma das paisagens mais bonitas da região e seu próprio sítio arqueológico.

A Toca do Cruzeiro não tem pinturas nem esculturas rupestres, mas adquiriu um valor especial para a comunidade. Paula conta que quando criança e adolescente, ia jogar bola e fazer piquenique em seu enorme salão.

Segundo a moradora, esse local sempre teve, também, uma conotação religiosa. Ela acredita que pelo fato de ficar no alto e ter um acesso relativamente difícil, foi escolhido pelos moradores para pagamento de promessas e recebeu uma grande cruz de madeira.

Pessoas doentes ou com algum tipo de dificuldade faziam promessas que prometiam pagar subindo até a toca. Alguns dos fiéis levam também ex-votos, isto é, imagens da parte do corpo que eles acreditavam ter sido curada por meio da promessa (no caso do Sítio do Mocó, os ex-votos costumam ser esculpidos em madeira). Em 2023, a Toca do Cruzeiro foi também ponto final da procissão que é realizada anualmente a partir da Igreja do Divino Salvador fundada por Antônio Mocó.

Turismo no Sítio do Mocó

Jornalista Altier Moulin fotografa estátua de Mocó- Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAEm pouco mais de um século, o Sítio do Mocó passou de área de extração de látex a comunidade turística, até o momento com quatro pousadas e dois restaurantes. Segundo Paula, que é proprietária de uma pousada e um restaurante, o movimento turístico aumentou muito depois da inauguração dos museus da Natureza e do Homem Americano. A região também ganhou um aeroporto no município de São Raimundo Nonato, com dois voos semanais para Recife e Petrolina, com previsão de abrir um terceiro voo ainda este ano.2

À  primeira vista, o Sítio do Mocó pode parecer apenas um povoado dormitório para os turistas, por estar localizado bem próximo ao parque e por ter uma vista privilegiada de seus paredões, mas com um pouco de atenção é possível perceber que o local tem seus próprios encantos além de se tratar de uma das comunidades mais envolvidas na luta pela criação do Parque Nacional da Serra da Capivara e pela preservação dos sítios arqueológicos que ela abriga.3

Notas

  • 1 Coronel José Dias já pertenceu ao município vizinho de São Raimundo Nonato - que abriga a maior cidade da região da Serra da Capivara
  • 2 Surpreendentemente, não há voos entre a região da Serra da Capivara e Teresina, a capital do Piauí
  • 3 Leia, aqui no blog, outras matérias sobre lugares especiais na região da Serra da Capivara: Museu do Homem Americano / Museu da Natureza / Cerâmica Serra da Capivara

Sítio do Mocó – Coronel José Dias – Serra da Capivara – Piauí – Brasil – América do Sul

Texto

Fotos

  • (1,2,3,4) Sylvia Leite
  • (5) Imagem cedida por Paula Alves, que foi entrevistada para esta reportagem e é proprietária da pousada e restaurante Trilha da Capivara
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Pricila Alves de Sousa
Pricila Alves de Sousa
7 meses atrás

Linda matéria! Nosso sítio do mocó é maravilhoso venha conhecer a serra da capivara um lugar exuberante!

Andressa Garcia Aguiar
Andressa Garcia Aguiar
Resposta a  Pricila Alves de Sousa
3 meses atrás

Tem casa de hospedagem?

Andressa Garcia
Andressa Garcia
Resposta a  Sylvia Leite
2 meses atrás

Qual seria o nome?

Hugo Leite Brito
Hugo Leite Brito
7 meses atrás

Olá Sylvia, muito interessante essa região e belíssimo o empenho social da arqueóloga Niéde Guidon. Precisamos conhecer a serra da Capivara! Parabéns pelo excelente trabalho de divulção!

Augusta Leite Campos
Augusta Leite Campos
7 meses atrás

Sylvia você tem feito um maravilhoso trabalho de divulgação da Serra da Capivara e de suas Comunidades. Quando estive lá o nosso guia foi o Nestor e ele nos levou na casa de sua mãe no Sítio do Mocó. Ele falava com tanto orgulho da escola onde estudou e onde era cultivada uma horta pelas crianças, cuja produção era utilizada na alimentação servida na própia escola , cujo período era integral. Nos mostrou como foram as transformações do uso da água , antes e após a chegada de Niéde Guidon. Haja admiração e gratidão por alguém.

Sonia Pedrosa
7 meses atrás

Sylvinha, que legal que vc mostrou pra gente o Sítio do Mocó e esse trabalho maravilhoso pra gente!!! Que sirva de exemplo para todo o resto do Brasil!

William
William
7 meses atrás

Adorei o texto, espero um dia poder visitar a Serra da Capivara, um local único no mundo.

Manoel Prado
Manoel Prado
6 meses atrás

Bela reportagem sobre esta comunidade do Sito do Mocó e sua interação com o patrimônio arqueológico da Serra da Capivara agregando melhoria na qualidade de vida e preservação deste tesouro Arqueológico

Gerson Aquino dos Santos
Gerson Aquino dos Santos
Resposta a  Sylvia Leite
6 meses atrás

Gostei muito da matéria e para ficar perfeita seria interessante informar quantas pessoas habitam o povoado.