Tava ou Casa de Transformação: o Museu das Culturas Indígenas

Tempo de Leitura: 6 minutos

Atualizado em 02/05/2024 por Sylvia Leite

Placa do museu com nome indígena Tava - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAPara início de conversa, o Museu das Culturas Indígenas, localizado no bairro de Água Branca, em São Paulo, não foi batizado apenas na língua do colonizador. Os povos ali representados o chamaram de Tava, palavra Guarani que significa Casa de Transformação. O nome não está na denominação oficial – como talvez fosse mais justo – mas aparece em placas, depoimentos e outros materiais do museu, além de denominar o podcast da instituição.

E esta não é a única novidade: as tradições, saberes, histórias, cantares e lutas das diversas etnias são apresentadas principalmente por seus próprios integrantes – sejam artistas individuais ou coletivos artísticos  -, a partir de um ponto de vista interno. Tudo isso inaugura uma postura diversa da que se viu historicamente, quando os povos originários não tinham voz direta e tudo que se divulgava a seu respeito era resultado de pesquisas, ou seja, concebido a partir de uma visão externa.

Ao transportar o protagonismo para os próprios povos ali representados, o Museu das Culturas Indígenas se constitui em uma instituição viva, capaz de mostrar não apenas as tradições culturais – incluindo o imaginário e as crenças de cada um desses povos – mas também de repercutir, sem intermediações, o que eles estão fazendo Facaha do Museu das Culturas Indigenas ou Tava - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAhoje, como enxergam sua relação com outras culturas e como se sentem em relação ao país onde vivem.

Tudo isso fica bem claro nas exposições – permanentes ou não – que foram escolhidas para dar início ao museu inaugurado em junho de 2022. Antes mesmo de entrar no prédio, já nos deparamos com a mostra “Ocupação Decoloniza – São Paulo Terra Indígena”, concebida e realizada coletivamente e em diversas linguagens, com o propósito de desfazer estereótipos e reafirmar a cultura e os direitos de das várias etnias.

A exposição ocupa muros, paredes e grades, com destaque para grafismos Guarani Mbya e imagens de onças. No gradil de entrada, o padrão denominado Ypará Korá ou Ypará Korava’e tem significado de proteção para o museu e acolhimento para os que vem visitá-lo.

Uma viagem pelo universo Huni Kuim

Sala da Jiboia noTava ou seu das Culturas Indigenas - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAO primeiro espaço que se visita no Museu das Culturas Indígenas é a chamada Sala da Jiboia – um local de acolhimento, leitura e atividades, concebido com intervenções da artista Rita Sales da etnia Huni Kuim, a partir de uma lenda que integra a cosmologia de seu povo. No centro da sala, um enorme puff onde os visitantes podem acomodar-se livremente, remete à história do caçador Yube Inu, que se apaixonou por uma mulher-jiboia Yube Shanu e foi levado por ela para viver em sua aldeia no fundo do lago. Cenas dessa lenda foram registradas por Rita Sales Huni Kuim nas paredes da sala. Rita Sales é autora, também, da pintura do corpo da jibóia gigante.

Mas além de nos proporcionar um mergulho na lenda de Yube Inu, ao mesmo tempo que nos apresenta o trabalho da artista da etnia Huni Kuim, a Sala da Jiboia abriga materiais para serem observados ou usados de forma individual ou nas atividades coletivas. São pincéis, instrumentos musicais e de caça, além de inúmeros livros escritos por autores de diversos povos. A sala é destinada à realização de oficinas, seminários, rodas de conversa e reuniões.

A defesa da floresta no Museu das Culturas Indígenas

Exposição Munba'i - Foto de Sylvia Leite BLOG LUGARES DE MEMORIATrês exposições do Museu das Culturas Indígenas mostram a preocupação dos povos originários com a terra e a preservação ambiental. Em “Mymba’i – pedindo licença aos espíritos, dialogando com a Mata Atlântica”, somos chamados a pensar sobre os impactos das ações humanas destrutivas e a tomar consciência da necessidade de cuidarmos da Natureza e de recuperarmos o que foi destruído. A exposição reúne imagens de animais que trazem a marca desse impacto em seus corpos. São desenhos, pinturas e colagens produzidos em oficina concebida pela artista Tamikuã Txihi.

Não por acaso, a onça é uma das figuras mais presentes na exposição. Segundo uma lenda Pataxó, etnia da artista Tamikuã Txihi, a onça vivia em outro mundo e quando este novo mundo em que vivemos foi criado, ela ficou encarregada de cuidar de todos os seres: a Terra, o Sol, a Lua, as Estrelas. Um dia ela percebeu que a terra estava estremecendo – de tanto ser cortada pelo homem –Exposição Nhe'e ry no Museu das Culturas Indígenas - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE EMEMORIA e resolveu descer para ver o que estava acontecendo. Nunca mais, a onça conseguiu voltar para o mundo de cima e se tornou pajé das matas e líder espiritual.

A exposição “Nhe’e ry – onde os espítritos  se banham” nos põe em contato com a atmosfera da Mata Atlântica por meio de experiências sensoriais. O impacto visual de uma grande oca de pau a pique, a audição de cantos e falas de guardiões de várias etnias, a textura e o cheiro de mais de 60 espécies nativas, entre outros estímulos, são usados como uma espécie de convite à compreensão do bioma e de todos os seus elementos. .

Ao fundo da sala, monitores de tv exibem depoimentos de guardiões dos povos Guarani Mbya, Tupi Guarani, Maxakali, Krenak e Pataxó sobre a degradação da Nhe’e ry – palavra Guarani usada para denominar Mata Atlântica – e sobre a luta de seus povos para defendê-la. O propósito da exposição, segundo Sonia Ara Mirim, representante do povo Xucuru-Cariri, é expor a relação de sinergia dos Exposição Igapó no Museu das Culturas Indígenas - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIApovos indígenas com todos os seres que habitam a mata “e mostrar que essa é a forma mais importante de regeneração´: coexistir em explorar”.

Já a exposição “Igapó: terra firme”, de Denilson Beniwa, nos traz a realidade da Amazônia por meio de produções sonoras e visuais de músicos indígenas projetadas em um telão que se reflete em um espelho d’água. Igapó é o nome de uma região amazônica que permanece alagada mesmo durante a estiagem e por isso foi usada como metáfora da resistência dos povos originários.

Ao apresentar a exposição de Beniwa, o Museu das Culturas Indígenas afirma que “a dança, o canto, o fazer com as mãos e a conexão com a floresta são caminhos para a continuidade da cultura e da vida”, e “mesmo que as árvores caiam, sua matéria orgânica torna viável o nascimento de outras ainda mais fortes”.

Gestão compartilhada e Mestres de Saberes

O que garante essa perspectiva interna das exposições é a gestão compartilhada. Embora o Museu das Culturas Indígenas seja uma instituição do Governo do Estado, sua administração está a cargo não apenas da Secretaria da Cultura, Economia e Induústria Criativas, mas também da ACAM Portinari – responsável pelo Museu Histórico e Pedagógico Índia VanuíreÁrea externa do Museu das Culturas Indígenas - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIA – e do Instituto Maracá – uma organização não governamental que tem o propósito de proteger e disseminar o patrimônio histórico, ambiental e cultural dos povos indígenas. Além disso, conta com a influente participação do Conselho Indígena Aty  Mirim.

Representantes indígenas ocupam grande parte dos cargos do museu, inclusive os de curadoria dos artistas e das obras, que são exercidos por profissionais de diferentes etnias: Tamikuã Txihi (Pataxó), Denilson Baniwa (Baniwa) e Sandra Benites (Guarani). Para completar, foi criado o cargo de Mestre de Saberes – uma espécie de monitor, com a função de guiar os visitantes pelas exposições, elaborar e desenvolver projetos e oficinas, mas com um diferencial: a capacidade de levar para o museu as referências, os valores e as narrativas de suas comunidades e de estabelecer um diálogo entre elas e os visitantes.

A fim de difundir a vivência indígena para fora de seus muros, o Museu das Culturas Indígenas lançou, em abril de 2022, o podcast “Tavas”, com episódios mensais que abordam temas como “O Protagonismo da Mulher Indígena”,  “Ancestralidade e Espiritualidade”, “Brincadeiras Indígenas”, entre outros, mas, infelizmente, não se sabe por que razão, sua publicação está interrompida desde agosto.1

Notas

Museu das Culturas Indígenas – Água Branca – São Paulo – São Paulo- Brasil – América do Sul

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  • Sylvia Leite

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12 Comentários
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Marlene Miranda
Marlene Miranda
7 meses atrás

Eu desconhecia a existência dessa preciosidade. Obrigada por trazer sempre assuntos tão interessantes.

Cristina
Cristina
7 meses atrás

Muito legal, Sylvia! A matéria e o museu! Quero muito ir.
Qual é o endereço na Água Branca, pf?

Joaquim Sobral
Joaquim Sobral
7 meses atrás

Excelente ! Mais um lugar que você me incentivar a descobrir. Muito obrigado.

Valdeci da Silva Meneses Cantanhede
Valdeci da Silva Meneses Cantanhede
7 meses atrás

Excelente texto Sylvinha!
Nossos povos originários e sua sabedoria milenar precisam ser valorizados e respeitados.
Abraço

Ude Guimarães
Ude Guimarães
7 meses atrás

Que demais!!! Gostinho de raiz, cheirinho de verde, olhar de respeito, sons da natureza e sensação de força!! Obrigada Sylvia!! Sempre arrasando…!!

Sonia Pedrosa
7 meses atrás

Que espetáculo de museu, Sylvinha! Quero conhecer!!!