Cerâmica Serra da Capivara: um negócio socioambiental

Tempo de Leitura: 7 minutos

Atualizado em 02/05/2024 por Sylvia Leite

Peças de Cerâmica artesanal - Divulgação Serra da Capivara - BLOG LUGARES DE MEMORIAQuem compra uma peça da Cerâmica Serra da Capivara em uma loja urbana ou mesmo lá no sertão do Piauí, não imagina o que está por trás de toda aquela beleza. A empresa é fruto do trabalho socioambiental de uma equipe liderada pela arqueóloga Niéde Guidon – que atua há cerca de cinco décadas na região – e tem regras muito claras desde a sua fundação: emprega somente moradores do entorno do Parque Nacional da Serra da Capivara1, além de não poder usar matérias primas nem adotar processos que degradem a natureza.

Embora a empresa tenha proprietários e fins lucrativos, seu principal objetivo é gerar renda para a comunidade local, com um produto que divulga as pinturas rupestres da Serra da Capivara e ajuda a impulsionar o turismo – ainda tímido na região. Somente a oficina de cerâmica emprega hoje 46 pessoas, mas há ainda os pontos de venda e outras atividades que surgiram em decorrência da oficina, como um restaurante e uma pousada, que elevam esse total para 89 funcionários registrados – fora os que fazem serviços eventuais.Placa da Cerâmica da Serra da Capivara - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIA

Para se ter uma ideia do que isso representa, na comunidade de Barreirinho – que abriga a oficina – onde há 29 casas  – e no povoado mais próximo, o Sítio do Mocó, que reúne outras 140 residências, a maioria das famílias tem pelo menos uma pessoa trabalhando para a oficina de Cerâmica Serra da Capivara. E a empresa emprega, ainda, moradores de Coronel José Dias.

Além de empresar e não agredir a Natureza, a Cerâmica Serra da Capivara tem o compromisso de zelar pelo Parque, assumindo a responsabilidade pelos postos, onde mantém suas lojas, e pela limpeza da área, além de outros cuidados.

O surpreendente é que mesmo tendo como prioridade gerar renda para os moradores da região e proteger a natureza, a empresa consegue se manter, fornecendo peças para cerca de 30 lojas – algumas em outras cidades ou estados, outras em pontos locais que fazem venda direta aos turistas. A Cerâmica Serra da Capivara só precisou de socorro financeiro durante a pandemia, quando perdeu seu maior comprador, que fazia aquisições de meio milhão por ano. A ajuda veio dos recursos pessoais de Niéde Guidon e da família dos proprietários, mas logo foi dispensada porque a cerâmica começou a fornecer peças para uma loja online voltou a se equilibrar.

A história da Cerâmica Serra da Capivara

Peças cruas de Cerâmica da Serra da Capivara _ Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAPara chegar ao estágio atual, a Cerâmica Serra da Capivara precisou percorrer um longo caminho. Tudo começou na década de 1970, quando Niéde Guidon passou a frequentar a região, atraída pelas pinturas rupestres.

O dono da casa onde ela se hospedava, Nivaldo Coelho – que era também o seu guia mateiro -, tinha no quintal uma fabriqueta de telhas moldadas na coxa e Niéde percebeu que a argila usada por ele era de ótima qualidade. Além disso, não agredia a natureza porque sua extração era feita em lagoas, pelo processo de desassoreamento, que – diferente das escavações em jazidas – não provoca danos ao meio ambiente.

Nos anos 1990, a cerâmica foi um dos temas escolhidos por Niéde para a formação de jovens locais, realizada em cinco escolas criadas por ela com apoio do governo francês. O critério para a escolha desses conteúdos era a pré-existência de um saber local ou sua adequação a objetivos turísticos. As outras atividades contempladas foram a produção de mel – também preEsmaltação na Cerâmica da Serra da Capivara - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAexistente, porém realizada de forma desordenada -, produtos de cera de abelha como velas e repelentes, reciclagem de papel e corte e costura para a produção de camisetas. Tudo com desenhos reproduzidos das pinturas rupestres a fim de divulgar o Parque Nacional da Serra da Capivara.

Cerca de duas décadas depois, Niéde Guidon contratou Shoichi Yamada – um especialista em cerâmica de alta temperatura, de origem japonesa – para pesquisar as argilas da região e encontrar a matéria prima adequada à produção de peças para uso doméstico. A argila escolhida deveria, por um lado, ter elasticidade para facilitar a modelação das peças e, por outro, suportar altas temperaturas. A condição principal é que fosse uma argila de desassoreamento, a fim de não causar danos ambientais.

Peça no torno Serra da Capivara - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAAo longo de um ano e oito meses de trabalho, Yamada encontrou 36 tipos de argila na região – nenhuma delas com as duas características. Levou, então, as amostras para São Paulo a fim de fazer uma série de testes e chegou a uma fórmula que reúne dois tipos de argila: um colhido ali mesmo, em Barreirinho, município de Coronel José Dias, e o outro no município de João Costa, a carca de 75 km de distância da oficina. A primeira tem elasticidade e é a mesma utilizada por seu Nivaldo para a produção de telhas. Já a segunda resiste às altas temperaturas e também já era conhecida na região pelos fabricantes caseiros de tijolos.

Definida a fórmula da argila, era preciso descobrir uma maneira de dar cor e impermeabilidade às peças sem recorrer a esmaltes químicos, o que foi feito com adobe, isto é, uma mescla de argila fundente, também encontrada na região, com pigmentos naturais.

Ceramista ensina menino a usar o torno - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIARestava, ainda, garantir a formação contínua de ceramistas, porque as escolas fecharam por falta de recursos no início dos anos 2.000. Adotou-se, então, o aprendizado dentro da própria oficina com a equipe inicial. Hoje, há famílias com duas gerações dentro da Cerâmica Serra da Capivara, e os mais jovens já começam a se interessar pelo ofício de ceramista.

Um exemplo disso é a família de Geovany de Sousa Lima, que na foto aparece ensinando ao primo Wamerson Pereira Paes, de apenas 9 anos, como usar o torno. O pai de Geovany, Josenias Parceira Paes Lima, está na cerâmica praticamente desde o início e além dos dois há mais sete familiares na equipe. O menino Wamerson estava apenas fazendo uma visita, mas saiu satisfeito porque, com a ajuda do primo, conseguiu modelar uma caneca. Se esse encanto perdurar, ele poderá ser o décimo integrante da família Paes Lima a integrar-se à empresa.

De cooperativa a empresa privada

Peças no forno - Serra da Capivara - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIADesde 2003, a Cerâmica Serra da Capivara é tocada por Girleide Oliveira – uma pernambucana que deixou um restaurante próprio e uma carreira de administradora em grandes empresas para, a convite de Niéde Guidon, dar suporte à equipe que tentava proteger e divulgar a Serra da Capivara.

Girleide chegou à região para dirigir o Hotel Serra da Capivara – o primeiro construído com fim de atender ao turismo. O hotel, hoje em reforma, sempre pertenceu ao Estado do Piauí, mas na época era administrado pela Fundação Museu do Homem Americano FUNDHAM, criada por Niéde Guidon. E foi a partir do sucesso dessa experiência que Girleide acabou assumindo a cerâmica.

A ideia inicial de Niéde era fazer uma cooperativa, mas por inúmeras razões o formato não deu certo e ela decidiu criar uma empresa com apoio da equipe de pesquisadores. Mas o empreendimento precisava de Ceramista junto ao forno - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAalguém da área administrativa, e foi aí que Girleide entrou em cena, adquirindo a empresa junto com o irmão Antônio Marcos Oliveira.

Girleide conta que no início colocava as peças em uma kombi e ia vender em outras cidades do Piauí. Com o tempo, conseguiu fazer contratos de fornecimento nesses locais, mas a venda no Brasil ainda era pequena, o que a levou a exportar principalmente para a Itália. Foram apenas cinco anos de exportação porque nesse meio tempo a Cerâmica Serra da Capivara acabou sendo descoberta por grandes lojas nacionais, que passaram a absorver toda a sua produção.

Os frutos sociais do trabalho de Girleide e de toda a equipe de Niéde Guidon – que criou o alicerce socioambiental para o desenvolvimento da empresa e do turismo na região – não podem ser comprovados por números, porque carecemLoja da Cerâmica da Serra da Capivara - Foto de Sylvia Leite - BLOGLUGARES DE MEMORIA de estatísticas oficiais, mas os envolvidos no projeto não têm dúvida de que as ações de formação dos moradores e geração de renda proporcionou a redução do alcoolismo e da violência doméstica na região.

Já os resultados da empresa podem ser facilmente demonstrados. Girleide conta que quando assumiu seu posto, cerca de duas décadas atrás, a Cerâmica Serra da Capivara tinha apenas quatro funcionários. Hoje, esse número é cerca de 25 vezes maior se levarmos em conta o restaurante e a pousada, surgidos em função da oficina. E a produção, que sequer era contabilizada no início, alcançou uma média de 50 mil peças por ano.

Girleide contabiliza, também, os reflexos de tudo isso – e da divulgação do próprio parque – sobre o Turismo, que até pouco tempo atrás era eventual e hoje gira em torno de 100 pessoas por fim de semana. O número é bem pequeno para um Patrimônio Mundial da Humanidade, mas representa muito para uma região que ainda é pouco conhecida. E essa procura vem crescendo lado a lado com a estrutura local que já conta com algumas pousadas e restaurantes, além de um aeroporto com dois voos semanais – e um terceiro previsto – ligando a cidade de Raimundo Nonato – um dos municípios da região da  Serra da Capivara – a Recife e Petrolina.2

Notas

Cerâmica Serra da Capivara – Coronel José Dias – Serra da Capivara – Piauí – Brasil América do Sul

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18 Comentários
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Iris
Iris
11 meses atrás

Que lindo!!

Valdeci da Silva Meneses Cantanhede
Valdeci da Silva Meneses Cantanhede
11 meses atrás

Que texto excelente, Sylvinha!
Esse empreendimento socioambiental da Serra da Capivara merece ser amplamente divulgado.
Abraços

Ude Guimarães
Ude Guimarães
11 meses atrás

Maravilhosas e diferentes estas cerâmicas! Muito especial!!!

Barbara Nogueira
Barbara Nogueira
10 meses atrás

Muito legal!!

Sonia Pedrosa
10 meses atrás

Que exemplo mais lindo o desses empresários. Que muitos outros se inspirem neles e façam mais pessoas felizes!

Augusta Leite Campos
Augusta Leite Campos
10 meses atrás

A oficina de Cerâmica é um importante trabalho de desenvolvimento econômico e social para as comunidades em volta da Serra da Capivara, com criatividade e valorização do patrimônio arqueológico. Além de de preservar o meio ambiente e servir como escola para as próximas gerações. É fruto da genialidade e generosidade de uma cientista como Niede Guidon. Estive lá e adquiri várias peças que podem ser utilizadas em temperaturas elevadas e são lindas. O turista também pode ter acesso ao conhecimento de como o trabalho é realizado e tive esta oportunidade. Sensacional Sylvia a abrangência com que em Lugares de Memória voçê vai nos enriquecendo de histórias e informações desse Patrimõnio da Humanidade que é a Serra da Capivara.

Joaquim Sobral
Joaquim Sobral
10 meses atrás

Que linda a história desse empreendimento. Estou sempre aprendendo contigo.
Muito obrigado Sylvinha.

Hebe
Hebe
10 meses atrás

Nossa estou encantada com essas ceramicas da Serra da Capivara, que coisa linda!!!!

Oksana Boldo
16 dias atrás

Boa noite. Minha compra chegou. Adorei tudo. Trabalho de mestre respeitando e homenageando a natureza. Parabéns.