Atualizado em 30/04/2024 por Sylvia Leite
O d’Orsay é aquele tipo de museu que quando a gente entra não sabe se olha para as obras de arte ou para arquitetura. Mas com uma diferença: nele, o prédio parece planejado para estabelecer um diálogo, seja com as obras, por meio de mirantes internos, seja com a cidade, através das janelas, ou entre tudo isso e os visitantes.
É como se cruzássemos uma fronteira entre a fachada do prédio – construído no século 19 para funcionar como uma estação de trens –, e os conceitos arquitetônicos da década de 1980 – introduzidos durante a reforma realizada para sua instalação –, ou entre o conceito de museu que predominava até meados do século 20 – como depósito de obras e relíquias – e a proposta contemporânea de museu vivo e dinâmico. Suas obras, apesar de terem sido produzidas um século antes – trazem em si o gen da renovação e propõem uma travessia, que se inicia ainda dentro de uma arte tradicional e caminha rumo à modernidade.
Há quem diga que apesar do seu foco estar na arte, o d’Orsay é antes de tudo um museu de época – a expressão do século 19, ou de sua segunda metade – não apenas por reunir obras produzidas entre 1848 e 1914, mas também por representar claramente a mentalidade daquele momento histórico. O respaldo para esta concepção estaria no próprio acervo que se compõe não apenas de pinturas e esculturas, mas, também, de artes decorativas e mobiliário. Sem falar no que se preservou da arquitetura original do prédio.
Um cenário efervescente
A época retratada pelas obras reunidas no d’Orsay foi de grandes mudanças, especialmente na França. Depois de atravessar um período marcado por crises políticas e sociais, Paris passou por uma revolução urbanística – com a abertura de grandes boulevards – e acabou se transformando em modelo de cidade para o mundo. Além disso, sediou algumas das mais famosas Exposições Universais, que festejavam as novas tecnologias; ganhou magazines; e sua burguesia enriquecida passou a investir em obras de arte.
Toda essa efervescência fez surgir movimentos que refletiam as inquietações crescentes do período e obras que rompiam padrões até então nuca questionados, como, por exemplo, a representação idealizada da nudez. Caso das pinturas ‘Almoço na relva’ e ‘Olympia”, ambas de Edouard Manet, que escandalizaram o público e a crítica por retratarem mulheres nuas em situações do cotidiano.
Os traços mais conhecidos dessa ruptura são a busca da luz natural – que na verdade constitui uma preferência da percepção sobre o raciocínio – e a dissolução dos traços em borrões, que apenas sugerem as formas, ganhando nitidez na medida em que o espectador se distancia da imagem. Tudo isso permeado por uma mudança no conceito do tempo – que passa a ser percebido como fugaz – , e inspirado em uma estética trazida do oriente por meio das as gravuras japonesas.
As mudanças ocorreram também na representação das figuras humanas, que passam a ser mostradas de pessoas de maneira mais aprofundada, com formas que refletem não apenas sua aparência externa, mas, principalmente, suas questões psicológicas. A escultura Cloto, por exemplo, seria uma autoimagem de Camille Claudell na busca de uma representação interior.
A própria relação da arte com o entorno, comtemplada um século depois como uma das propostas do museu, e dos novos conceitos museológicos, nasce em obras desse período como a escultura ‘A Porta do Inferno‘, de August Rodin, ou ‘A Idade Madura’ da mesma Camille.
A vocação inovadora do d’Orsay
Embora seja frequentemente citado como a instituição que abriga a mais rica coleção impressionista do mundo, o que não deixa de ser verdade, talvez o d’Orsay fosse melhor definido como um museu que retrata um momento de grandes ousadias e as incorpora em seu DNA.
A evidência mais radical desse traço, pelo menos no que diz respeito às obras, talvez seja o fato de abrigar a pintura ‘A Origem do Mundo’ de Gustave Courbet, que pode ser considerada a mais censurada da História da Arte. A obra chegou ao museu em 1995, em meio a muita polêmica e não há sinais de que as reações negativas tenham terminado. Em 2012, o artista dinamarquês Frode Steinicke teve seu perfil excluído do Facebook depois que postou uma foto da obra. Fato semelhante ocorreu com o professor Jorge Coli da Unicamp durante palestra transmitida ao vivo no site da Academia Brasileira de Letras. No momento em que ele mostrou a imagem, a transmissão foi cortada.
A ousadia está também na própria concepção do museu que levou mais de uma década para ser pensado, discutido e concretizado. Diferente de outras instituições espalhados pelo mundo, não foi idealizado por apenas um curador ou autoridade da área cultural e sim por uma equipe multidisciplinar. Isso, por si só, já configuraria uma quebra de paradigma para a década de 1980, mas o d’Orsay foi mais longe ao imprimir ousadia em suas mais diversas ações, desde projetos educativos até a comunicação.
Um exemplo recente é uma campanha publicitária como a para atrair famílias ao museu lançada em 2015 e retomada em 2017, que em um de seus cartazes veicula a seguinte frase: “Tragam seus filhos para ver gente nua”. A ideia, segundo os criadores da campanha, era apenas se colocar no lugar das crianças – na maneira como elas visualizam as obras –, além de fazer uma brincadeira de inversão de valores ao propor que os pais vão ao museus por causa das crianças, ou seja, em certo sentido levados por elas.12
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares especiais de Paris: Passagens Parisienses / Torre Eiffel
- 2 Leia, também, sobre outros museus mundo afora: Museu Botero / Getty Center / Museu do Amanhã / Museu de Imagens do Inconsciente / Museu Casa de Portinari / Casas de Neruda / Casa do Rio Vermelho / Cordisburgo / Museu do Sertão - Véio
Para saber mais
- Conheça outro lugar especial de Paris - os Jardins de Luxemburgo - no blog Mulher Casada Viaja
Museu d’Orsay – Paris – França – Europa
Fotos
- (1) 139904 por Pixabay
- (2) Hermann Traub por Pixabay
- (3) Almoço na relva, de Édouard Manet - Domínio Público em Wikimedia
- (4) As Papoulas, de Claude Monet - Domínio Público em Wikimedia
- (5) A Idade Madura, de Camille Claudel - Domínio Público - Foto de Arnaud 25 em Wikimedia
- (6) A Origem do Mundo, de Gustave Courbet - Domínio Público em Wikimedia
- (7) Guy Dugas por Pixabay
Consulturia:
- Gilberto Habib - artista plástico e museólogo
Referências
Nas poucas vezes que tive oportunidade de ir a Paris o museu D’Orsay esteve incluído . Amo esse espaço descomplicado
Não é à toa que foi considerado o melhor do mundo pelos usuários do TripAdvisor.
Conhecia o museu que me encantou em varias visitas. Porem aos ler esse relato de Sylvia voltarei lá com outros olhos para me encantar com o novo mudeu que ela apresentou
Parabéns.
Valeu, Cacai, bjs
Excelente matéria para quem conhece, quem cultua ou quem nunca teve oportunidade de visitar o Museu d’Orsay. Abordagem original e objetiva, como é seu estilo. Parabéns, Sylvinha!
Obrigada, Jane. Fico feliz com seu comentário.
O d’Orsay é daqueles lugares que sempre que voltamos a Paris queremos visitar mais e mais, pois a cada ida nosso olhar está diferente, vemos e sentimos coisas a mais.
É verdade, Cynara. Acho que isso vale para todos os museus, mas o d’Orsay é realmente especial.