Atualizado em 29/04/2024 por Sylvia Leite
Houve época em que a palavra museu estava inteiramente associada à ideia de passado pelo fato desse tipo de instituição ter se originado no hábito de colecionar, que evoluiu para a preservação de objetos com finalidade cultural. O conceito foi se transformando ao longo do tempo e, apesar de não ter perdido as características originais, hoje agrega muitas outras facetas – como preocupações educacionais, de interação com a comunidade e de inclusão social – que o enriquecem e tornam vivo. Mesmo com todas essas mudanças, ainda se pode considerar ‘diferente’, ou até visionário, um museu de ciências (ou seria de filosofia?) que está voltado prioritariamente para o futuro, como é o caso do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro.
O futuro parece já estar impresso de maneira bem definida na arquitetura do espanhol Santiago Calatrava, inspirada nas bromélias do Jardim Botânico; na decoração interna, feita quase toda com equipamentos de imagem, e no próprio nome, mas sua consolidação no acervo do museu permanece em construção contínua e dinâmica.
A proposta dos idealizadores é refletir sobre as transformações do período geológico em que vivemos, o Antropoceno – marcado pela possibilidade do homem de gerar impactos na natureza – a partir de dados fornecidos por instituições de pesquisa e pelo acompanhamento dos sinais vitais do planeta no Brasil e no mundo.
Museu do amanhã: uma ponte para o futuro
A preocupação central do museu, isso já deve estar claro, é com a sustentabilidade, e seu principal objetivo é provocar questionamentos internos acerca de nossas ações e sua repercussão no futuro da terra. A abordagem do tema é feita por meio de perguntas filosóficas clássicas:De onde viemos? Quem somos? Onde estamos? Para onde vamos? Como queremos ir?
Para responder cada uma delas, o museu recorre não apenas a informações, mas também a simbolismos tradicionais e literários. Exemplo disso é a divulgação de uma frase do escritor Jorge Luis Borges – publicadaem seu livro de viagens “Atlas”1 – que demonstra a repercussão de pequenas ações humanas no meio ambiente: “… peguei um punhado de areia, deixei-o cair silenciosamente um pouco mais adiante e disse em voz baixa: Estou modificando o Saara…”.
O simbolismo tradicional vem especialmente por meio da Churinga, uma ferramenta ritual dos aborígenes australianos que foi escolhida para representar o museu e por isso ganhou uma sala especial onde reina dentro de uma oca estilizada. “O museu do Amanhã pretende ser uma churinga do século 21″ diz a legenda explicativa do monumento. A função desse objeto entre os nativos da Austrália é “costurar o tempo, conectando passado e futuro” ao registrar, no presente, a história dos ancestrais e, com isso, interferir na construção dos futuros possíveis.
Na Churinga, o passado é registrado por meio de inscrições geralmente feitas em pedra e madeira. No Museu do Amanhã, nossa história ancestral é apresentada em telas, grande e pequena, horizontal e vertical, alimentada por imagens e sons – alguns produzidos com esse fim, outros gerados por instituições de pesquisa como o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), ou o MIT (Massachusetts Institute of Technology).
Um museu para sentir, pensar e interagir
A interatividade talvez seja a principal característica do museu, que chega a oferecer aos interessados a possibilidade de simular a repercussão futura de seus hábitos atuais. Isso é feito de forma lúdica, por meio de jogos como o da Pegada Ecológica, que informa quantos planetas precisariam existir no futuro caso todas as pessoas do mundo consumissem do mesmo jeito que você consome. E a experiência não se resume a analisar hábitos atuais. No Jogo das Civilizações, o visitante é convidado a solucionar questões urbanas, climáticas ou de biodiversidade a partir de uma gestão sustentável dos recursos naturais, e sentir na própria pele as dificuldades que enfrentaremos se não construirmos um futuro sustentável.
Igualmente impressionante, apesar de não conter interatividade, é a instalação “Os quatro oceanos”. Composta por quatro lençóis que se relacionam harmonicamente. A ideia é fazer o visitante pensar sobre o fato de que tudo está interligado, em constante movimento, e qualquer interferência em um ponto pode provocar alterações em todos os outros.
Quem resolve seguir a ordem de visitação (recomendável) tem uma experiência ainda mais sensorial pois penetra paulatinamente nas questões apresentadas pelo museu, alcançando uma verdadeira imersão. O caminho começa com a apresentação dos COSMOS, onde o visitante viaja para galáxias distantes e conhece inúmeras formas de vida, depois passa para a TERRA, aonde enormes cubos compostos por telas apresentam as três dimensões do planeta: Matéria, Vida e Pensamento.
É na etapa do ANTROPOCENO que o visitante entra em contato com o próprio poder de destruição ou de construção do futuro, a depender de suas ações no presente para, em seguida, avançar até o pavilhão dos AMANHÃS e ficar frente a frente com essa responsabilidade, por meio de jogos e simulações.
Somente depois dessa “chacoalhada” promovida por imagens, sons e interações é que o visitante chega à Churinga – única peça museólogica do lugar e único elemento do último pavilhão, batizado como NÓS. Além de simbolizar a ponte na qual o Museu Amanhã pretende transformar-se para unir passado e futuro, esse objeto sagrado aos aborígenes australianos representa também a nossa ponte com a natureza e com as sociedades que se encontram mais próximas da origem.
A sustentabilidade depende de tudo
Quando se fala em questões climáticas, Pegada Ecológica e outros temas relacionados ao meio ambiente pode ficar a impressão de que, mesmo envolvendo elementos literários e simbólicos, o Museu do Amanhã lida apenas com dados estritamente geográficos. Mas seus registros abrangem um leque muito maior e essa amplitude está presente tanto na exposição permanente – em que é possível informar-se, por exemplo, sobre o DNA dos seres vivos, ou até mesmo sobre a história da escrita -, como nas mostras temporárias, que exploram temas como a capacidade do inventor brasileiro, traduzida pela exposição “O poeta voador, Santos Dumont”. Nessa exposição, os visitantes puderam informar-se sobre o funcionamento das aeronaves, conhecer de conceitos de aerodinâmica e de mecânica de motores, tudo de forma lúdica, por meio de jogos e simulações.
Quem propõe tem que dar o exemplo
Para ter credibilidade nessa jornada de conhecimento, reflexão e mudança de atitude, o Museu do Amanhã precisa ser o primeiro a utilizar racionalmente os recursos naturais e isso está inscrito no projeto do prédio. A climatização dos ambientes do museu é feita com água da Bahia de Guanabara que, por sua vez, é reutilizada no espelho d’água. Já a energia é obtida por meio de estruturas metálicas que se deslocam como asas de acordo com a posição do sol, permitindo tanto a captação da energia solar para utilizações diversas como a iluminação direta.
O museu dá o exemplo também na questão da acessibilidade, seja em relação a deslocamento, com rampas e cadeiras de rodas, seja em relação à comunicação, com a utilização de linguagens como braile e libras. Ainda assim, há quem cobre a ação do museu em relação ao entorno, que parece não estar sendo tratado com a mesma consciência ambiental, apesar do museu fazer parte do projeto de revitalização da zona portuária do Rio, que passou a ser conhecida, depois das obras, como porto Maravilha, mas talvez essa cobrança devesse ser feita diretamente às autoridades. E é preciso cobrar também a manutenção do museu – único do mundo com esse perfil – que anda ameaçada por falta de verbas.2
Notas
- 1 O livro é escrito por Borges e ilustrado com fotografias de María Kodama.
- 2 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros museus do Rio de Janeiro: Museu de Imagens do Inconsciente / Castelo Mourisco/ Casa da Gávea
Museu do Amanhã – Praça Mauá – Zona Portuária – Rio de Janeiro – Brasil – América do Sul
Fotos
- Sylvia Leite
Participação especial
- Rosalie
- Othon Corrêa
Livros editados pelo museu
- Museu do amanhã
- Pensando o amanhã
- O amanhã é hoje
- Muito + que dois
- Museu do Amanhã três anos
Já fui 2x. É imperdível. A visita deve ser feita sem pressa.
���������������� excelente texto. É a primeira vez que vejo esse museu sendo tão bem descrito.
Compartilharei sem moderação.
Beijo querida. Joaquim Sobral
É um museu para ser visitado muitas vezes. Obrigada pelo comentário e não esqueça de dizer seu nome da próxima vez.
Valeu, Joaquim. Obrigada pelo comentário.
Que porreta esse Museu, Sylvinha!
Preciso conhecer.
Abraços
Val Cantanhede
Um museu fundamental! Além de lindo.
Parabéns, Sylvinha!
sonia pedrosa.
Legal, né? Quem sabe vamos juntas. Não me canso de ir ao Rio rsrs
Valeu, Soninha, beijo
Que riqueza de postagem, Sylvia!
Parabéns pelo texto tão completo e esclarecer! Conheci seu blog através do RBBV!
Esse é um passeio que me faltou fazer o Rio. Com certeza vou incluí-lo na próxima vez.
😉
Obrigada, Cleide. Bom saber que gostou! Volte sempre. Toda quinta tem matéria nova e se der uma navegada pelo blog encontrará mais de 90 lugares de nemória.
Amei conhecer o Museu do Amanhã realmente é orgulho para os cariocas, é a restauração desse espaço que estava abandonado ficou linda, conheci na inauguração, não sei hoje como está…
Que bom que gostou, Ivanete. Toda quinta tem matéria nova no blog. Acompanhe!