Cemitério dos náufragos: a triste memória da 2ª Guerra em Sergipe

Tempo de Leitura: 9 minutos

Atualizado em 18/09/2023 por Sylvia Leite

Cemitério Monumento dos Naufragos - Foto autor desconhecido - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAQuem nasceu até pelo menos a década de 1960, em Aracaju1, cresceu sabendo que o litoral de Sergipe foi palco de alguns dos ataques alemães considerados como gota d’água para o Brasil entrar na Segunda Guerra Mundial. Entre 15 e 16 de agosto de 1942, cerca de duas semanas antes de o governo brasileiro declarar guerra aos países do Eixo (Alemanha, Itália  e Japão), três navios foram afundados pelos alemães a poucas milhas da praia de Atalaia, deixando mais de 500 mortos e, no dia seguinte, três ataques semelhantes ocorreram no vizinho litoral da Bahia. Embora muitos não saibam, a memória desses acontecimentos está gravada em Aracaju, no Cemitério dos Náufragos – provavelmente o único do Brasil a concentrar vítimas da Segunda Guerra.

O Cemitério dos Náufragos são dois

Localização dos dois Cemitérios dos NáufragosHoje, pouco se sabe sobre esses fatos. Historiadores locais atribuem o desconhecimento à pouca relevância que é dada aos episódios da Segunda Guerra na História do Brasil – especialmente em livros didáticos – onde o envolvimento brasileiro na guerra é apenas mencionado genericamente ou descrito como simbólico. Mesmo em Aracaju, as informações são escassas e contraditórias.

Alguns registros atribuem a fundação do cemitério ao médico Carlos Moraes de Menezes, que o teria criado à beira-mar especialmente para enterrar as vítimas dos bombardeios, mas há quem garanta que o local já existia de forma precária – com o nome de Cemitério de Manguinhos ou de Campinho -, e foi rebatizado depois desses sepultamentos. Apenas uma informação parece unânime: o Cemitério dos Náufragos recebeu somente as vítimas que não puderam ser identificadas emFachada do antigo Cemitério dos Náugrafos - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIA decorrência das mutilações.

Outro fato ajuda a confundir quem busca informações sobre o monumento: o local que hoje é oficialmente considerado Cemitério dos Náufragos foi construído na década de 1970, à margem de uma rodovia homônima, com o propósito de substituir o primeiro.

A proposta do deslocamento era desativar o antigo cemitério – que hoje se encontra em uma área residencial e turística na praia de Aruana -, e criar um novo espaço para a memória dos náufragos. Os túmulos foram transferidos, mas, pelo menos por enquanto, o cemitério original continua a existir, de modo que em alguns mapas constam dois monumentos: o original Cemitério dos Náufragos, localizado na praia de Aruana, e o Cemitério Monumento dos Náufragos, localizado no povoado do Mosqueiro, um distrito de Aracaju.

A gota d’água para a declaração de guerra

Os bombardeios ocorridos nas costas de Sergipe atingiram os navios Baependy,Navio Baependi - Foto autor desconhecido - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA Annibal Benevolo e Araraquara – embarcações civis de transporte de carga e passageiros, que navegavam com luzes acesas sinalizando a neutralidade do Brasil até aquele momento. As duas primeiras pertenciam ao Loyd Brasileiro e, a última, ao Loyd Nacional. Na Bahia, os alemães atacaram os navios Itagiba, Arará, o veleiro Jacira e um cargueiro não identificado que alguns acreditam ter sido o S.S. Clymer.

Os torpedos partiram do submarino alemão U-507 que havia deixado a França cerca de um mês antes, com destino ao litoral brasileiro. Em seu comando estava o capitão de corveta Harro Schacht que, em 7 de agosto, teria recebido ordens, por rádio, do QG alemão, para bombardear qualquer navio de bandeira brasileira.

O primeiro alvo, o vapor Baependi, foi atacado na noite de 15 para 16 de agosto (há controvérsias sobre o horário), em meio à comemoração do aniversário de um tenente da Marinha Mercante. Os sons da festa teriam sido captados pelo sistema de escuta do U- 507, segundo anotações do comandante Schacht, em seu diário deNavio Araraquara - Foto autor desconhecido - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA bordo. Um dos sobreviventes, o então terceiro sargento Jorge Tramontin, contou que os passageiros estavam jantando quando foram atingidos pelo primeiro torpedo. Ele afundou, como os outros, mas conseguiu agarrar-se a destroços e depois foi salvo por um barco.

Algumas fontes contabilizam 270 mortos e 36 sobreviventes, 28 dos quais no único bote salva-vidas que pôde ser retirado do navio, pois o curto intervalo entre os ataques (cerca de 2 minutos) teriam impedido o acesso aos outros.

Em seguida foi a vez do Araraquara, que explodiu ao ser atingido pelos torpedos. Segundo as mesmas fontes, o ataque deixou 131 mortos e apenas 11 sobreviventes, que chegaram ao litoral de Sergipe agarrados em destroços.

O bombardeio ao Aníbal Benevolo ocorreu horas depois (não há consenso sobre o horário e questiona-se inclusive, se foi no dia 16 ou no dia 17). Há quem fale que ocorreu na madrugada enquanto todos dormiam. Conta-se que, segundo um sobrevivente, o navio foi partido em dois e em seguida afundou. Todos os passageiros morreram e apenas quatro tripulantes sobreviveram. O ataque teria deixado 150 mortos.

Navio Aníbal Benevolo - Foto autor desconhecido - BLOG LUGARES DE MEMÓRIADo mesmo modo que não há consenso sobre datas e horários, também há divergência sobre o número de mortos. As informações são ainda mais contraditórias no que se refere à chegada dos corpos e de objetos ao litoral. Ao que tudo indica, assim como acontece em quase toda tragédia, algumas pessoas teriam tirado proveito da situação, roubando dinheiro, jóias e outros objetos de valor encontrados na praia.

Nos dias seguintes aos bombardeios, Aracaju viveu momentos de intensa comoção. Por um lado, um forte movimento de solidariedade, com famílias abrigando em suas casas sobreviventes de outras cidades, ou estados, que ainda não estavam em condições de viajar, ou parentes de vítimas que chegavam em busca de informações. Por outro, um clima de revolta que ocasionou protestos e perseguições a estrangeiros acusados, em alguns casos injustamente, de colaborar com os alemães. Os protestos estenderam-se a outros estados brasileiros, com depredações de estabelecimentos pertencentes a alemães, italianos, japoneses e seus descendentes, obrigando o governo brasileiro a entrar na guerra.

Memórias dispersas

Ao longo de muitos anos, a história dos bombardeios foi repetida aqui e ali por pessoas que, de alguma maneira, vivenciaram a tragédia. Um dos personagens mais populares era Saltro dos Santos – conhecido como Manequito – que se definia como um pescador e tirador de côco, seguindo a profissão dos pais, o que lhe deixou uma marca Manequito segurando garrafa de batida - Foto Osmário Santos - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAconhecida por todos: mãos e pés enormes.

Durante décadas, Manequito teve um bar na praia de Atalaia e era ali que contava suas memórias dos bombardeios e dos enterros que presenciou no Cemitério dos Náufragos.  Nos primeiros tempos, o lugar vendia apenas cachaça “casca de pau” e era frequentado por pescadores que passavam para “tomar uma chamada” e depois contavam o que tinham visto na praia. Nessa época, Manequito mais ouvia que contava.
O bar mudou de lugar várias vezes e, em sua última localização – ao lado da atual “Passarela do Caranguejo”, começou a atrair estudantes que não podiam pagar para tomar cerveja: “Quem tinha dinheiro bebia, e quem não tinha, bebia do mesmo jeito” ele tinha orgulho de contar. Nessa época, Manequito já havia sofisticado o cardápio. Em vez da cachaça “casca de pau” dos primeiros tempos, passou a servir batidas de frutas regionais, que ele dizia ter aprendido a fazer com os mais velhos.

Era um bar de aparência rústica, com estrutura de madeira barata, esteiras nas paredes e sem banheiro. Mesmo assim, entre as décadas de 1970 e 1980 atraiu muito mais que estudantes sem dinheiro. A maioria dos frequentadores da praia – gente de várias gerações – passavam ali em algum momento da noite para dar um trago e alguns deles levavam as batidas para tomar nos bares vizinhos. Os que ficavam – em geral jornalistas, artistas e intelectuais, eram premiados com as narrativas dos bombardeios e outras aventuras do ex-pescador.Zé Peixe - Foto Arquivo Tv Sergipe - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

Ele contava, por exemplo, que durante a Segunda Guerra foi guarda costeiro “mandado pela polícia” e ficava noite e dia patrulhando a praia à procura de submarinos. “Se avistasse, informava para a polícia”*. Manequito contava, também, que, na época da tragédia, levou vários corpos para o Cemitério dos Náufragos. Os relatos sobre a guerra eram alternados com outras memórias como, por exemplo, as vezes em que ele chegou a descascar três mil cocos em um só dia.
Cenas da tragédia eram narradas, também, por José Martins Ribeiro Nunes, conhecido como Zé Peixe, que na época tinha apenas 15 anos, mas lembrou da tragédia pelo resto da vida: “Quando acordei, soube da notícia e fui até lá para ajudar. Era triste ver aquilo. barcos destroçados, gente morta”, disse ele2. Zé Peixe, que desde criança foi apaixonado pelo mar, acabou se tornando um prático de fama internacional pela maneira como conduzia as embarcações que chegavam e saíram de Sergipe e pelo profundo conhecimento que tinha das correntes marítimas3.

História de amor

Além das memórias individuais, contadas aqui e ali, restou uma narrativa de conhecimento público, que muita gente ouviu e chegou a ser registrada pelo historiador Luiz Antônio Barreto. Foi um caso de superação e esperança vivido Propaganda de Guerra - Foto de autor desconhecido - BLOG LUGARES DE MEMÓRIApor um homem e uma mulher que ficaram viúvos em decorrência dos bombardeios .
Alaíde Lins Cavalcanti era passageira do navio Araraquara e perdeu no naufrágio o marido – o subtenente Antônio Lins Cavalcanti – três filhos e um irmão. Segundo os registros, ela foi salva graças a uma bolha de ar que se formou
embaixo da embarcação. Conseguiu chegar a uma praia do município de Estância e foi levada para Aracaju, onde se recuperou e passou a viver em um hotel, sendo abrigada, em seguida, pela família de um médico.
Francisco Alves Pereira estava em terra e esperava em Campina Grande, na Paraíba, a chegada do mesmo navio – o Araraquara – onde viajavam sua mulher, Amélia Figueiredo, e seus três filhos. Informado sobre os ataques, viajou a Aracaju com esperança de encontrar a família entre os sobreviventes e foi Alaíde quem lhe deu a notícia de que estavam todos mortos.
Sua primeira atitude foi retornar à casa. Dias depois, quando o presidente Getúlio Vargas declarou guerra aos países do Eixo, Francisco alistou-se como voluntário na Força Expedicionária Brasileira e chegou a ir até o front. Os dois viúvos encontraram-se novamente em 1945 e casaram-se no primeiro dia do ano seguinte, provavelmente na Paraíba. Em 1950, mudaram-se para Aracaju, onde viveram até morrer, sem deixar descendentes.4

Notas

Cemitério dos Náufragos e Cemitério Monumento dos Náufragos – Praia de Aruana e Mosqueiro – Aracaju – Sergipe – Brasil – América do Sul

Texto

Fotos

  • (1,4,5,6) Autor desconhecido
  • (2) Google Maps
  • (3) Sylvia Leite
  • (7) Osmário Santos
  • (8) Arquivo Tv Sergipe
  • (9) Cartaz de propaganda da Guerra

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Sidney Menezes
3 anos atrás

Excelente Silvinha. Uma pena que livros citem o Brasil na guerra com pouco valor enquanto a Itália ano pôs ano homenageia o Brasil pela sua intervenção.

sonia pedrosa cury
3 anos atrás

Ótimo registro, Sylvinha!!!! Você reuniu todas as informações. Belo trabalho!
Beijo
sonia pedrosa

Val Cantanhede
3 anos atrás

Muito interessante sua matéria, Sylvinha! Conhecia apenas alguns detalhes dessa história, contados por moradores dos povoado Areia Branca e Mosqueiro. Seu texto elucida muitos fatos desse episódio que comoveu o povo sergipano.
Abraços,
Val Cantanhede

Mauro Bastos
3 anos atrás

Muito interessante esse episódio. Eu acredito que conheci uma jornalista que bebia muito naquele bar da praia. Uma vergonha não ter um monumento decente sobre o acontecido.

Maria Elizia Borges
Maria Elizia Borges
1 ano atrás

Meus parabéns pelo referido texto.