Atualizado em 29/04/2024 por Sylvia Leite
Muita gente conhece ou ouviu falar na Timbalada – uma banda baiana surgida no comecinho da década de 1990, que ganhou repercussão internacional pelo ritmo dançante e por ter como ícone um instrumento pouco conhecido e até então marginalizado: o timbau. O que talvez poucos conheçam é o movimento social surgido na esteira do sucesso alcançado pelos timbaleiros. Em parceria com diversas instituições, a comunidade do Candeal Pequeno, que já foi uma das mais pobres de Salvador, ganhou e segue conquistando sustentabilidade. E como diria Caetano, “é bonito de se ver”.
Além da beleza intangível, expressa pelas oportunidades oferecidas a milhares de jovens, pela afirmação da cultura ancestral do bairro e pela melhoria na qualidade de vida da população, os projetos sociais trouxeram beleza estética. Casas foram pintadas pelos próprios moradores com tintas coloridas, locais públicos e comerciais receberam grafitis ou mosaicos. As ruas pelas quais taxistas se negavam a passar viraram cenário para a gravação de clipes.
Timbau – o instrumento da libertação
Tudo começou com o resgate do timbau, instrumento baiano inspirado no Caxambu – tambor cerimonial utilizado em uma manifestação afro-brasileira denominada Jongo. A proposta, segundo declarações públicas do idealizador da Timbalada, Carlinhos Brown, foi retomar a cultura angolana e propor um novo ritmo usando o som da percussão.
Era o começo dos anos 1990, momento em que os trios elétricos estavam incorporando o samba-reggae dos blocos afro, como Ilê Aiyê e Olodum, e os tambores, antes restritos às periferias e bairros pobres de Salvador, chegaram também às classes mais altas que já corriam atrás dos trios desde a década anterior. Do carnaval, os blocos afro foram às gravadoras. O caminho estava aberto para os tambores, mas a Timbalada seguiu pela contramão, invertendo o roteiro seguido por outros grupos de percussão: primeiro se lançou como banda para depois criar o bloco, o que só ocorreu no carnaval de 1995.
A música afro-baiana revolucionou a hierarquia dos músicos, elevando o percussionista de uma condição secundária, de acompanhamento, à condição de criador, e abrindo espaço para sua participação em festivais e prêmios internacionais. Mas a consequência principal foi o empoderamento conquistado por esses grupos, que acabou se refletindo nas respectivas comunidades de origem, como é o caso do Curuzu, do Ilê Aiyê, e do Candeal, da Timbalada.
O milagre dos timbaleiros
Para entender o que a virada dos tambores representou para a comunidade do Candeal Pequeno, é preciso conhecer um pouco a história do lugar.
O Candeal é uma área do bairro de Brotas, localizado em uma região nobre e central de Salvador, e está dividido em duas partes: o Candeal Grande, que é um bairro de classe média e o Candeal Pequeno que é a comunidade onde nasceram Carlinhos Brown e a Timbalada.
Conta-se que o local começou a ser povoado no século 18. No início era uma senzala e foi comprado pela escrava alforriada Josefa Santana que voltou da África para libertar seus parentes. Como era muito rica, pagou pela liberdade de vários negros e, com eles, deu início a uma plantação de cana-de-açúcar.
Moradores e estudiosos calculam que ainda existam no local cerca de 250 descendentes seus, mas a época de bonança foi se perdendo ao longo do tempo. A comunidade atual ocupa uma área de aproximadamente 20 mil metros quadrados, onde vivem cerca de 1.500 famílias de baixa renda, cercadas por bairros de classe média e alta.
Antes de Carlinhos Brown começar a implantar seus projetos sociais, o local não tinha calçamento, nem saneamento básico, nem posto de saúde. Quando chovia, as ruas ficavam cobertas de lama.
Por sorte dos moradores, a degradação não atingiu os valores culturais, resguardados por meio das serestas e dos terreiros de Candomblé que os moradores frequentava. O próprio Carlinhos, quando era criança, batucava nas latas que usava para ir buscar água na bica. E, como ele, muitos outros, de várias gerações, cresceram fazendo e ouvindo batuques, ora de lata, ora de tambores. E tudo isso foi fundamental para o reerguimento da comunidade.
Uma série de ações educacionais e de desenvolvimento integrado, aliadas ao talento musical dos moradores, transformaram a realidade do Candeal em poucos anos. Para coordenar o trabalho, foi criada a Associação Pracatum de Ação Social, que atua em dois eixos principais: o programa de desenvolvimento ‘Tá Rebocado’ e o ‘Programa de Música, Educação e Cultura’.
A parte de ação social é voltada para a urbanização e a implantação de serviços no bairro. Inclui também o projeto ‘Recicle óleo’, que tem caráter ambiental, mas sua principal função é promover a inclusão produtiva de mulheres da comunidade na fabricação de sabão e no refinamento de óleo de gordura residual (OGR) para a produção de biodiesel.
No eixo educacional, a Escola de Música Pracatum, formou em menos de 30 anos cerca de 5 mil percussionistas, do Candeal e de outros bairros de Salvador, muitos deles já absorvidos pelo mercado de trabalho no Brasil e no exterior. A escola realiza ainda cursos e oficinas nas áreas de comunicação e tecnologia e, a pedido das famílias, mantém uma escola de Inglês.
O Candeal também ganhou uma casa de shows Candhyall Guetho Square (mais conhecida como o Guetho) onde havia constantes apresentações e a Timbalada ensaiava aos domingos, sempre com plateia lotada por baianos e turistas, mas as atividades não puderam continuar porque incomodavam os moradores dos bairros vizinhos.
Atualmente, funciona no local um estúdio de gravação de Carlinhos Brown e o Cantinho da Tita – restaurante de dona Madá, a mãe do timbaleiro, que só atende com reserva e serve pratos baianos feitos na hora. A espera é grande, mas ninguém reclama porque o tempo de preparo das refeições costuma ser pouco para os visitantes conhecerem, ou revisitarem, todos os espaços do Guetho. O local reúne referências de diversas religiões e fraternidades, como a maçônica, por exemplo, além de sinais de trânsito, detalhes dos mais diversos estilos arquitetônicos, uma carcaça de foguete restaurada e poemas estampados nas paredes.
Como era de se esperar, a virada do Candeal encantou pessoas pelo mundo afora. O bairro recebeu visitas de dirigentes internacionais como o Ministro da Cultura e Mídia da Alemanha, Bernd Neumann e de monarcas, como o rei Felipe VI da Espanha que na época da visita ainda era príncipe. Foi tema do documentário “El milagro de Candeal” dirigido pelo espanhol Fernando Trueba e recebeu muitos prêmios, entre eles o “Beste Practice” das Nações Unidas, o de “Mensageiro da verdade”, da ONU Habitat, e o de reconhecimento pelo trabalho artístico e social, da Fundação Claus Awards, da Holanda. 1
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, outras matérias sobre lugares especiais de Salvador: Casa do Rio Vermelho / Mercado Modelo / Farol da Barra / Forte de São Marcelo / Ribeira / Santo Antônio Além do Carmo / Elevador Lacerda
Candeal Pequeno – Brotas – Salvador – Bahia – Brasil – América do Sul
Fotos
- Sylvia Leite
Referências
- Site da ONG Pracatum
- Site de Carlinhos Brown
- Filme: "El milagro de Candeal", de Fernando Trueba
Candeal maravilhoso! Estive lá, há alguns bons anos, com Claudia, conversamos com Carlinhos Brown e conhecemos o lindo trabalho dele. Belo registro, Sylvinha! Beijos!
Que beleza, Sylvinha!Tanta coisa boa que precisa ser muito divulgada para nós dar alegria e esperança no futuro do País! Suas escolhas de Lugares de Memória são sempre surpreendentes e encantadoras. Textos concisos e muito informativos, ao mesmo tempo. Parabéns!
Não conheço o Candyal, mas fiquei interessada em ir até lá, pela história que você descreveu. Tá na minha lista obrigada Sylvia. Beijos
Eu que agradeço pelo comentário. Beijos
Obrigada,Jane. Bom te ver por aqui. Volte sempre. Beijos
Obrigada, Soninha.pelo comentário e pela assiduidade. Beijos
Parabéns Silvia!
São maravilhosos e de bom gosto todos blog 'lugares de memória' que vc posta. Gilca
Só mesmo a arte para manter acesa a chama ancestral!
Texto delicioso de ler, Sylvinha!
❤❤❤ Val
Obrigada, Gilca! Fico feliz com sua assiduidade. Beijos.
É mesmo, Val. Só a arte! Obrigada. Beijos
Esse projeto é muito bom! Seu padrinho maior, o Carlinhos Brown usou da sua fama, vivência e amor pelo seu local em benefício dessa comunidade. O Gueto Square virou point da jovem elite baiana e turistas abonados, que é questionável… Tudo bem que precisavam captar recursos, mas os dólares foram mais valorizados, e como! que o nosso parco Real. Cobravam "entradas" caríssimas e consumo de bar pra poucos. Não é espaço para "todos" os baianos…
Esse restaurante da mãe de Brown, deve ser pra Popstars, rsrs.
Mas, queira ou não, a valorização e empoderamento desta Comunidade foi um ganho que não podemos dimensionar.
Essa matéria me incentivou a ir lá visitar de perto! Ótima matéria! Laís Alves
Obrigada pelo comentário, Laís. Bom saber que a matéria despertou o seu desejo de conhecer o Candeal. Sempre tive vontade e quando conheci me encantei. Espero que aconteça o mesmo com você. Quanto ao público do Guetho, eu gostaria de fazer algumas considerações. Não posso falar nada sobre os shows, porque infelizmente nunca tive a oportunidade de ir a nenhum, mas posso falar do restaurante, porque almocei lá agora em setembro. É um restaurante muito simples, com mesas no pátio e comida caseira. Não diria que os preços são populares, como ocorre em por exemplo em restaurantes subsidiados (os famosos bandejões), mas são bastante acessíveis e mais baixos que em muitos restaurantes por quilo Brasil afora. Torço para que consiga ir e e depois nos conte o que achou. Grande abraço.
Bem legal!! Não conhecia… bem interessante!! Beijos querida Ude
É legal mesmo! Beijos
Sou fa do Carlinhos Brown. Não sabia nada sobre o Candeal Pequeno. Morei em Salvador de 1977 a 1982 e nunca ouvi referência a ele. Parabéns Sylvia por nos levar a esse universo. Augusta Leite Campos
Obrigada, Gusta. Bom saber que gostou da matéria e que com ela adquiriu novas informações. Quinta que vem tem mais. Beijos