Carnaval da Bahia: uma amalgama de ritmos afros e trios elétricos

Tempo de Leitura: 10 minutos

Atualizado em 04/09/2023 por Sylvia Leite

 Carnaval da Bahia - Foto Site Gov Ba - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAO famoso Carnaval da Bahia, que acontece em Salvador, começou como todos os outros carnavais de rua do Brasil: com desfiles de foliões, carros alegóricos e corsos. O que lhe deu um perfil particular foi a forte presença de alguns elementos muito próprios, que surgiram ou vieram à tona ao longo de sua história. Os mais evidentes talvez sejam os Afoxés, especialmente os “Filhos de Gandhy”, os Blocos Afros, que incluem o Ilê Ayê, Olodum e Timbalada, e os famosos Trios Elétricos.
Menos divulgados, mas também com forte presença na história do Carnaval da Bahia, são os Blocos de Índios1, em sua maioria formados por negros ou mestiços e, por isso, tidos por alguns como Blocos Negros de Índios. Acredita-se que o primeiro pode ter sido o Aymorés, que desfilou pela primeira vez em 1934 e ostentava o nome de uma tribo brasileira.

Mas, o que ganhou maior evidência ao longo dos anos, surgiu na década de 1960 e faz parte de uma leva de Blocos de Índios influenciados, em seu surgimento, pelo cinema hollyoodiano, tanto que foi batizado com o nome de uma tribo americana em combinação com o nome do bairro onde instalou sua sede: Apaches do Tororó. Os Apaches desfilam até hoje e sua ênfase é na preservação da raça indígena. Não fica claro, no entanto, se houve, ao longo dos anos, uma troca cultural entre os Blocos de Índios e os outros grupos carnavalescos como se sabe que ocorreu, de maneira significativa, com Blocos Afros e Afoxés.

Integrante do Afoxé Filhos de Gandhy - Foto Fernando Vivas Gov Ba - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAO carnaval dos Afoxés

Quem primeiro levou a cultura afro para as ruas foram os Afoxés. São cortejos, também chamados de Candomblés de Rua por estarem vinculados a terreiros e serem conduzidos por Babalorixás ou Ialorixás que incorporam em suas músicas mensagens de paz, harmonia e integração dos povos.
O primeiro Afoxé, batizado como Embaixada Africana, surgiu em 1895. Foi organizado por negros Nagôs, que desfilavam com roupas e adornos importados da África. No ano seguinte já havia mais um: o Pândegos da África. Mas se hoje os Afoxés são grandes estrelas na história do carnaval baiano, naquela época sofriam discriminação e havia uma espécie de acordo tácito que os restringia lugares como a Baixa dos Sapateiros, Taboão, e Pelourinho, enquanto aos Clubes Carnavalescos cabiam as áreas mais nobres da cidade, como Ladeira da Montanha, Barroquinha, rua Direita do Palácio (atual rua Chile), entre outras.
Filhos de Gandhy - Foto Fernando Vivas Gov Ba - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

Felizmente, a segregação durou pouco porque novos Afoxés foram surgindo e tratando de desobedecer às restrições. A rebeldia provocou tentativas, em sua maioria veladas, de proibir os Afoxés, como uma portaria, baixada em 1904, determinando que somente clubes registrados podiam participar dos desfiles. Mas os candomblés de rua se multiplicaram e ganharam fama internacional. O curioso é que alguns de seus mais famosos representantes surgiram como blocos convencionais.

Caso do festejado Filhos de Gandhy, que foi criado em 1949 por estivadores portuários. Desde o início, a principal característica dos Filhos de Gandhy é a defesa da paz e da harmonia, inspirada nos princípios de não violência de Mahatma Gandhi, e muitos se espantam ao saber que, em pleno carnaval, seus integrantes não consomem bebida alcoólica.Filhos de Gandhy - Foto Gov Ba Flickr - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

Foi somente em 1952 que os Filhos de Gandhy tornaram-se Afoxé, assumindo a orientação religiosa do Candomblé e levando para as  ruas cânticos de Ijexá , que é um ritmo nigeriano trazido ao Brasil pelos Iorubás. Embora tenha enfrentado alguns percalços, o grupo foi ganhando tanta projeção e respeito que passou a ser um privilégio vestir sua indumentária, composta basicamente por roupas e turbantes brancos, além de colares de contas azuis e brancas, tudo com cheiro de alfazema.

Já o Badauê, assumiu-se como Afoxé desde o início e, apesar de sua curta existência, entre 1979 e1992, foi um dos mais festejados pelos artistas baianos, entre eles Ceateno Veloso, que exaltou o “moço lindo do Badauê”, em sua canção Beleza Pura, e Moraes Moreira que cantou:

Badauê - Foto autor desconhecido site iBahia - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

Toda a cidade vai navegar / No mar azul Badauê/ Fazer tempero, se namorar /Na massa do massapé.

Esse Afoxé foi fundado em 1978, por jovens moradores do Engenho Velho de Brotas. O líder do grupo era o poeta Romualdo Rosário da Costa, Mestre Moa do Katendê, que usou apenas uma estrofe para compor sua música de apresentação, depois gravada por Caetano Veloso: Misteriosamente/ O Badauê surgiu / Sua expressão cultural/ O povo aplaudiu

Em seus poucos anos de vida, o Badauê chegou a sair com dois mil figurantes e, em 1981, teve a participação do cantor jamaicano Jimmi Clif. O grupo inovou por dançar de forma mais solta e não ser vinculado a nenhum terreiro de Candomblé. Para Gilberto Gil, era um Afoxé-Pop, para Antônio Risério, co-autor da música cantada por Moraes Moreira, um Neo-Afoxé.

Fobica precursora do Trio Elétrico - Foto Manu Dias Gov Ba - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

E chega o Trio Elétrico

Depois dos Afoxés, chegou avez do Trio Elétricos. Tudo começou quando Dodô (Antônio Adolfo Nascimento) e Osmar Macêdo, que tocavam juntos no grupo Três e Meio, criado por Dorival Caymmi, decidiram ligar um violão e um instrumento inventado por eles – batizado de pau elétrico2 – à bateria de um Ford 1929, conhecido como Fobica. O carro foi decorado com desenhos de confetes e recebeu nome de Dupla Elétrica. O nome Trio Elétrico surgiu no ano seguinte, quando a Fobica foi trocada por um pickup Chrysler Fargo e o músico Temístocles Aragão juntou-se à dupla, com seu triolim ou guitarra tenor.

O crescimento foi rápido. Com dois anos de criado, o Trio Elétrico passou a ter oito alto-falantes e recebeu o apoio da extinta fábrica de guaraná Fratelli Vita e, ao completar três anos, seu conceito já estava tão consolidado, que começaram a surgir novos trios, como 5 Irmãos, Ipiranga e Conjunto Atlas. Mas o sucesso nacional só veio no fim da década de 1960, quando Caetano Veloso cantou: “Atrás do Trio Elétrico só não vai quem já morreu”.Trio Elétrico - Foto Site Gov Ba - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

E muita gente foi atrás do trio elétrico mesmo sem pertencer a nenhum bloco. E como os blocos desfilam isolados por cordas, para evitar a participação dos que não estão inscritos e garantir a segurança dos participantes, a pequena multidão que se juntava por fora das cordas passou a ser chamada de Pipoca. E as pessoas que seguram as cordas de Cordeiros.

A grande virada aconteceu na década de 1970, quando Moraes Moreira, na época integrante da banda Novos Baianos, deu voz ao Trio Elétrico que, até então, era instrumental. A primeira música cantada em cima do trio no Carnaval da Bahia foi Assim Pintou Moçambique. Ao que tudo indica a ideia partiu de Gilberto Gil e foi viabilizada pelo músico Armandinho, filho de Osmar Macedo, que tocava no trio junto com o pai e os irmãos.Ilê Ayê - Foto Fernando Vivas Gov Ba - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

A novidade da música cantada exigiu uma reforma estrutural dos trios, que passaram a ter uma melhor qualidade de som. Outra importante mudança ocorreu no repertório: os trios que nasceram tocando o chamado ‘frevo eletrizado’ passaram a incorporar ritmos afros, especialmente o Ijexá.

Os blocos Afros

Quando os Trios Elétricos começaram a incluir elementos africanos em seu repertório, já existia, no bairro do Curuzu, o Ilê Aiyê – primeiro Bloco Afro do Brasil que trazia, em sua música, elementos do Samba- Reggae. Como pioneiro, o Ilê Aiyê foi modelo para outros blocos que levantaram a bandeira contra o racismo e pela valorização da cultura negra, além de realizarem importantes trabalhos sociais nas suas respectivas comunidades.Bloco Afro no Carnaval da Bahia - Foto Fernando Vivas Gov Ba - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

No desfile de estreia, o Ilê Aiyê teve apenas cem participantes e recebeu críticas desfavoráveis da imprensa, que o considerava racista por só permitir a participação de negros. Mas, em seu enredo inaugural, o bloco disse a que veio e, pouco tempo depois, era já difícil encontrar um amante do Carnaval da Bahia que não soubesse cantar a letra de Paulinho Camafeu.

Que bloco é esse? / Eu quero Saber /É o Mundo Negro /Que viemos cantar pra você.

Mundo Negro é a tradução para o Português do nome Ilê Aiyê, que pertence ao idioma Iorubá, e a proposta do bloco é de preservar, valorizar e expandir a cultura afro-brasileira. O Ilê Aiyê foi cantado por Caetano Veloso na música que ele compôs com seu filho Moreno, cujo refrão também poucos desconhecem: Ilê Aiyê, como você é bonito de se ver.

Olodum - Foto Manu Dias Gov Ba - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAAtrás do Ilê Aiyê veio o Olodum, nascido com o objetivo de proporcionar lazer a jovens dos bairros Maciel e Pelourinho, no Centro de Salvador. A ideia era prepará-los para participarem de forma organizada do Carnaval da Bahia, apresentando ao público a origem, cultura e a história dos negros que residiam na região.

Em pouco tempo, seus tambores ecoaram pelo mundo e o Olodum atraiu à Bahia músicos de fama internacional como Paul Simon, que levou a banda a Nova Iorque para uma memorável apresentação no Central Parque, com um público de 750 mil pessoas. Outra estrela seduzida pelo Olodum foi Michael Jackson, com quem seus integrantes fizeram apresentações e gravaram o clip “They don’t care about us”, ambientado no Pelourinho, com direção de Spike Lee.

Mais que um bloco, o Olodum é hoje uma instituição cultural sem fins lucrativos que reúne uma banda e uma escola, com cursos de Tambores, Dança Afro, Canto/Coral, Empreendedorismo, Informática eEscola de persussão do Olodum - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA Formação de Lideranças. Além disso, organiza um festival. E em resposta a esse compromisso social, o Olodum tornou-se, em 2010, Embaixador da ONU na América Latina com a função de dar visibilidade a eventos  relacionados a uma ação mundial em prol das mulheres e crianças que não têm a assistência médica.

Desde que o Olodum foi criado, passaram-se cerca de duas décadas até o surgimento da Timbalada, do famoso Carlinhos Brown, mas a distância no tempo não impediu uma série de semelhanças com o antecessor. É considerado um bloco de Samba-Reggae, apesar de misturar gêneros musicais como Samba Duro, e outros criados pelo próprio grupo, como Tamanquinho, Funk Ijexá e Indiado. Outra semelhança está na atuação social, que transformou o bairro do Candeal Pequeno, um dos mais pobres de Salvador, em uma comunidade sustentável3.

Mas a Timbalada também tem suas especificidades e a maior delas talvez seja o som do Timbal – instrumento baiano inspirado em um tambor cerimonial, denominado Caxambu. A ideia de Brown era resgatar a cultura angolana e propor um novo ritmo baseado em percussão.

O Axé Music chega ao Carnaval da Bahia

A mistura dos ritmos e narrativas afros com os instrumentos e a tecnologia do Trio Elétrico foi tecendo, ao longo dos anos, uma espécie de movimento musical heterogêneo, porém unido pelas raízes negras e pelo Carnaval da Bahia, batizado como Axé Music. O nome foi dado pelo jornalista baiano Hagamenon Brito e tinha, inicialmente, uma conotação pejorativa. Tanto que, segundo os próprios integrantes do movimento, ninguém queria ser identificado como cantor de Axé, porque era sinônimo de breguice.

Trio Elétrico no Carnaval da Bahia- Foto de Roberto Viana AGECOM Flickr - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

Mas o movimento cresceu e se firmou. Ao longo do tempo, cantores como Luiz Caldas, Sarajane, Gerônimo, Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Claudia Leite, e Bel Marques (na época do Chiclete com Banana), para citar apenas alguns, tornaram-se conhecidos no país inteiro e fizeram o Carnaval da Bahia crescer de uma forma nunca antes imaginada. De um único percurso de aproximadamente cinco quilômetros, entre a Praça Castro Alves e o Campo Grande, passou a ter sete circuitos de igual ou maior extensão. Isso sem falar em eventos paralelos que acontecem nos bairros, nos camarotes e no Palco de Rock, criado como alternativa aos ritmos carnavalescos.

Para quem sente saudade daquele Carnaval da Bahia com o Trio Elétrico que tocava frevo eletrizado, parece não haver solução. Mas se a preferência é pelos Afoxés e Blocos Afros, basta ficar atento à programação dos diversos circuitos. Os mais ligados no aspecto cultural, podem ir mais longe, tentando assistir aos rituais que os blocos realizam em suas respectivas sedes.

E os que preferem assistir tudo de longe, podem visitar a Casa do Carnaval  no centro de Salvador, e conhecer a maior festa da Bahia por meio de fotos, vídeos, fantasias e adereços.4

Notas

Carnaval da Bahia – Ruas de Salvador – Salvador – Bahia – Brasil – América do Sul

Texto

Fotos

  • (1,11) Site Gov/Ba
  • (2) (2,3,8,9) Fernando Vivas Gov/Ba
  • (5) Autor desconhecido - Site iBahia
  • (6,10) Manu Dias Gov/Ba
  • (7) Gov/Ba Flickr, CC BY 2.0, Wikimedia
  • (10) Roberto Viana AGECOM -Flickr, CC BY 2.0, Wikimedia
  • (11) Sylvia Leite
  • (12) Roberto Viana AGECOM Flickr

Participação Especial

Referências

  • Site do Carvaval da Bahia
  • Aymorés. O primeiro bloco de índios do carnaval da Bahia? Nelson Cadena - Blogs iBahia
  • Badauê, o mais admirado afoxé em inícios da década de 1980
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sonia pedrosa cury
3 anos atrás

Que delícia de história, o carnaval da Bahia tem. Na década de 70, eu fui atrás do trio, ainda não tinha esses blocos do jeito que são organizados hoje. Era muito bom. Depois, quando tudo ficou muito profissional, eu não me arrisquei mais. Na minha opinião, ficou chato. Depois, só voltei ao carnaval a trabalho. Amanhã, vou a Salvador – porque não tem carnaval.

dih
3 anos atrás

Eu quero muito ir conferir como é o carnaval na Bahia pelo menos uma vez na vida, conheço muitos amigos que ja foram e amaram.

Jane Alves
3 anos atrás

Quanta informação interessante que eu, baiana de nascimento e sergipana por adoção estou tendo aqui! O carnaval da Bahia da infância (virada dos anos 50's), que me apavorava, era o tsunami de foliões descendo a Av. Sete em torno de enormes carros alegóricos (fascinantes!) enquanto o tio se postava de braços abertos entre a família (em cadeiras na calçada) e a enxurrada frenética dançante. ( Virada dos anos 50's). Não voltei ao carnaval baiano, lá passada a fase de acompanhar a Mãe nas visitas à família. Embora contemplasse a cada ano a invejável explosão descompromissada de alegria, marca registrada do baiano…

Ju Saueia
2 anos atrás

Cultura pura! Amei entender mais sobre os blocos de carnaval da Bahia e o início de tudo. Só fez aumentar ainda mais a vontade de marcar de passar um carnaval por lá um dia na vida. Espero que voltemos a festejar essa festa em breve, num mundo pós covid.