Atualizado em 01/05/2024 por Sylvia Leite
Embora esteja longe de ser o município brasileiro com maior número de comunidades quilombolas – um total de 14 enquanto Barreirinha, no Amazonas, reúne 1671 -, Chapada do Norte, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, pode ser considerado um dos pontos do país com mais forte presença da cultura negra. Esse traço é evidenciado, principalmente, pela Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, declarada Patrimônio Imaterial pelo Iepha.
Quem comanda a celebração é a tradicional Irmandade do Rosário dos Homens Pretos que está presente em praticamente toda a região. A própria festa também não é única, mas como cada localidade tem uma data própria para homenagear a santa, as comemorações de Chapada do Norte acabam atraindo moradores de outros municípios, inclusive daqueles que têm sua própria festa. Isso sem falar de pessoas que vêm de outros estados e até do exterior.
Os festejos de Chapada do Norte ocorrem sempre em outubro, o mais próximo possível do dia 7, dedicado a Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. A programação começa sempre numa sexta-feira com uma cerimônia denominada Meio-dia das novenas, que inclui banda de música – com a Banda Filarmônica de Santa Cruz – e queima de fogos seguida de um cortejo.
Entre a abertura e o encerramento, há novena, lavação ou lavagem simbólica da igreja, leilões de guloseimas e prendas, além de danças, batuques e uma procissão. Um dos pontos altos da festa acontece na quinta-feira, quando é servido o Angu – em alusão a um dos poucos alimentos a que os escravizados tinham acesso e usavam para comemorar o dia da santa. Antes da refeição gratuita, é realizada a benção da comida e uma sequência de orações.
Outro momento importante é a Buscada da Santa. Segundo a tradição oral de Chapada do Norte, a imagem de Nossa Senhora do Rosário teria sido encontrada pelos brancos em uma certa gruta e levada para uma igreja, mas a imagem desapareceu. Os negros intuíram que a santa teria voltado para a gruta e foram buscá-la batucando e cantando. E embora a imagem permaneça até hoje na Capela de Nossa Senhora do Rosário, a ‘buscada’ é repetida anualmente para relembrar o evento original.
Também faz parte dos festejos o tradicional Mastro a Cavalo – uma encenação de luta entre cristãos e mouros que termina com a vitória dos primeiros seguida de uma reconciliação. Mas o ápice da programação acontece no encerramento da festa, domingo de manhã, com as chamadas Subida e Descida do Reinado.
Um compromisso de reis e rainhas
É que a organização do evento fica a cargo de um rei e de uma rainha escolhidos anualmente pelos membros da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos. Antigamente, os dois tinham que ser negros, mas atualmente apenas um deles precisa ser afrodescendente.
Aceitar esses postos, caso eleitos, é um compromisso que os integrantes da Irmandade assumem ao se associar ao grupo. Em geral, são escolhidos para rei e rainha os membros mais antigos ou os que se declaram interessados em organizar a festa.
Os eleitos sentem orgulho da função, mas quem assiste percebe que o desafio não é pequeno, seja pelo grande volume de trabalho, seja pelas regras que precisam seguir. Uma das primeiras obrigações do rei e da rainha, logo no início dos preparativos, é pedir doações aos moradores da cidade – a famosa Esmola do Rosário.
Isso, por um lado, se deve a uma necessidade material, devido ao alto custo dos festejos, e, por outro, a um propósito moral, para que o rei e a rainha exercitem a humildade. Mas eles não vão sozinhos. Como mostra a foto, o rei e a rainha vão pedir as esmolas acompanhado de uma pequena multidão.
O pedido de esmolas tem que ser feito mesmo que o rei ou a rainha tenha condições de bancar a festa. Outra regra relativa ao custeio do evento diz respeito ao orçamento. Os fogos, por exemplo, devem ser adquiridos dentro do padrão dos eventos anteriores para que a festa de um ano não seja lembrada como melhor que as outras.
É nas casas do rei ou da rainha que se realiza grande parte da programação, como o Angu da quinta-feira e os leilões de peças doadas, incluindo carnes, queijos, eventuais prendas como colchões e lençóis e as tradicionais Quitandas – espécie de cestas de guloseimas compostas basicamente por pães e doces caseiros.
E é em torno do rei e da rainha que ocorre o já citado ápice da festa. É nesse momento que, pela primeira vez desde o início da programação, rei e rainha se vestem a caráter e assumem seu reinado. Em seguida, é realizada a Descida do Reinado, marcada pela missa de posse e pela transmissão do reinado dos velhos festeiros, que realizaram o evento daquele ano, para os novos festeiros, eleitos meses antes, que realizarão a festa no ano seguinte.
Os Tamborzeiros e o Congado: a alma da festa
A alma de toda a programação são os batuques, os cantos e as danças promovidos por dois grupos de matriz africana: os Tamborzeiros do Rosário e o Congado. Em alguns momentos, eles atuam juntos, mas cada um deles tem as suas especificidades.
Os tamborzeiros constituem um grupo de percussão que tocam, dança e joga versos de louvor a Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, além de abordar, em uma espécie de Repente, temas ligados ao dia a dia da cidade.
Segundo conta a tradição, foi ao som do batuque desses músicos que os negros de Chapada do Norte foram buscar a santa na gruta e é ao som deles que o ritual se repete a cada ano.
Os tamborzeiros são também peça fundamental no cortejo de abertura, nos leilões, na distribuição do Angu e no encerramento, quando se realizam a Subida e a Descida do Trono. O grupo era tradicionalmente formado por homens, mas hoje conta com duas mulheres – e a tendência é que esse número aumente.
Já o Congado – ou Congada – é formado principalmente por mulheres. Elas cantam, enquanto os homens tocam e todos dançam. Diferentemente da festa, o Congado não tem rei, apenas rainha. Cabe a ela puxar os cantos criando Repentes com as situações do momento. A figura masculina é representada por um presidente.
Segundo Dona Geni, a atual rainha da dança que já está há mais de dez anos no posto, o Congado nasceu como um misto de Canto de Trabalho e Lamento: “os escravo quando eles trabalhava, né, com ouro, eles trabaiava, batia, cantava e dançava e quando eles apanhava, em vez de chorar eles cantava.” Ela conta que na roça, o que hoje é conhecido como Congado tinha o nome de Maromba.
Isso aconteceu na Comunidade Quilombola de Misericórdia – uma das 14 localizadas no município de Chapada do Norte – tanto que quando o grupo deixou de ser conhecido como Maromba, recebeu o nome de Congada Beneficente da Comunidade Quilombola de Misericórdia. Com a morte de Dona Eva, que antecedeu Dona Geni, muitas pessoas foram saindo e entraram outras de comunidades vizinhas, como Dona Geni que é da Comunidade de Água Suja.
Dona Geni se vangloria de ter recebido o Congado com quatro pessoas e hoje ter mais de vinte. Cada vez que ela convoca a dança, aparece mais gente. O orgulho de conduzir a manifestação está expresso em sua casa, onde os instrumentos e adereços do Congado fazem parte da decoração. Esse sentimento parece aumentar quando ela mostra a roupa que veste para dançar.
O caminho dos escravos de Chapada do Norte
A presença dos negros em Chapada do Norte está intimamente ligada à extração do ouro. O pequeno vilarejo surgiu por volta de 1728 como consequência do trabalho nas lavras – nome dado às minas onde a busca do ouro é feita lavrando ou revolvendo a terra.
Um dos registros físicos dessa relação entre extração do ouro e a escravidão é o chamado Caminho das Lavras ou Caminho dos Escravos – uma bonita trilha de pedras por onde passavam os escravizados que trabalhavam nas lavras e por onde era feito o transporte de animais e de carga.
O Caminho dos Escravos se deteriorou com o tempo e hoje não é mais possível percorrê-lo por inteiro, entre outras coisas porque não existe mais a ponte que ligava as duas margens do Capivari. Mas os interessados na memória do lugar podem visitar os trechos remancescentes.
Há, ainda, o Locomóvel – uma máquina a vapor surgida na Europa na metade do século 19, e instalada onde hoje se encontra Comunidade Quilombola de Misericórcia – a mesma onde nasceu o Congado – uma das 14 localizadas no município de Chapada do Norte.
O objetivo da instalação do Locomóvel teria sido bombear água do Rio Capivari para as lavras. Mas há quem diga que o locomóvel servia para mover a máquina que fazia os tears girarem. Não se sabe, exatamente, quando o equipamento chegou, mas não há dúvida de que foi instalado na atual comunidade quilombola de Misericórdia.
O projeto de bombeamento de água não funcionou. Provavelmente por ser muito pesada – o que demandaria trabalho e dinheiro para ser removida -, a máquina foi abandonada no local, onde se encontra até hoje para a alegria dos turistas que posam junto a ela em fotos e selfies.
Chapada do Norte
A cultura de matriz africana é certamente o traço mais importante de Chapada do Norte, mas a cidade também recebeu grande influência europeia, especialmente na Arquitetura.
O município, de aproximadamente 15 mil habitantes, tem quatro igrejas históricas: a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, a Matriz de Santa Cruz e as capelas de Nossa Senhora da Saúde e de Bom Jesus da Lapa. Mas chama a atenção, também, o casario histórico que apresenta uma característica curiosa – as construções originais exibem em sua fachada a data em que foram construídas.
Chapada do Norte foi influenciada, ainda, por indígenas, de quem provavelmente herdou a tradição da tecelagem e a cestaria, que são artesanatos expressivos na região. O município produz, além disso, pequenas peças de mobiliário de madeira com assentos e encostos formados por uma espécie de trançado com tiras de couro de boi.
Chapada do Norte surgiu como freguesia, com o nome de Santa Cruz da Chapada. Inicialmente, pertenceu à Capitania da Bahia, tanto que até hoje o sotaque mineiro dos chapadenses tem uma tonalidade baiana. A transferência para a Capitania de Minas Gerais teve o propósito de aumentar o controle sobre as minas da região e combater o contrabando do ouro. 23
Notas
- 1 Dados do IBGE
- 2 Leia, aqui no blog, outras matérias sobre lugares especiais do Vale do Jequitinhonha: Curralinho / Gruta do Salitre / Joias de coco e ouro / Bonecas do Jequitinhonha / Vila do Biribiri / Diamantina
- 3 Leia, aqui também, sobre lugares ou festas do Brasil com forte influência da cultura africana: Bixiga / Liberdade / Mussuca / Saracura / Santo Antônio Além do Carmo / Carnaval da Bahia /
Chapada do Norte – Vale do Jequitinhonha – Minas Gerais – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1,2,3,4,5,6) Maurício Costa
- (7,8) Edinaldo Soares
- (9) Sylvia Leite
Consultoria
- Maurício Costa, Secretário de Cultura de Chapada do Norte, Procurador Geral da Irmandade e ex-rei da Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
- Edinaldo Soares, Coordenador de Cultura de Chapada do Norte e Irmão do Rosário
Participação especial
- Marisa Mattua Portela da marca de jóias Marisa Portella
Referências
Excelente matéria, Sylvinha!
Fiquei encantada com a Chapada do Norte e com a cultura viva dos remanescentes quilombolas e indígenas.
Abraços
Chapada do Norte é encantadora mesmo. Foi uma grata surpresa.
Parabéns pela matéria! Excelente! Chapada do Norte possui uma rica cultura expressa através do artesanato em palha e couro; nas comunidades quilombolas que preservam tradições e costumes dos antepasados; grupos folclóricos (Tamborzeiros, Congada…) e festas tradicionais de matriz africana; Folias de Reis, patrimônio edificado com características de construções feitas no passado; destaques para a culinária, igrejas entre outros vários atrativos. Sendo o ponto alto a Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial de Chapada do Norte
Obrigada, Maurício. A sua participação e a de Edinaldo foram fundamentais para a construção da matéria.
Parabéns a essa linda e preciosa pesquisa!!!
Esse registro deixa a história do Brasil mais rica e verdadeira!
Viva o Vale do Jequitinhonha!
Vivas as comunidades quilombolas!
Viva Chapada do Norte!!!
Obrigada pelo comentário, Geralda. Concordo inteiramente com você. Os brasileiros precisam conhecer essa preciosidade que é o Vale do Jequitinhonha.
Que interessante a história de Chapada do Norte! Adoro vivenciar esses festejos do interior do Brasil, eles são a história viva do nosso país.
É verdade, Marcella. Os festejos populares são a alma viva do país e a Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Chapada do Norte é uma das mais importantes de Minas e do Brasil.
Que legal, Sylvinha! A Chapada do Norte é um lugar para se conhecer e aprender.
Concordo. A Chapada do Norte é realmente um lugar pra se conhecer e aprender. É uma descoberta. Aquele tipo de cidade especial, mas que pouca gente conhece.