Atualizado em 01/05/2024 por Sylvia Leite
Como o nome já anuncia, Diamantina é um município mineiro que floresceu na época colonial a partir da exploração de minas, especialmente de diamantes. A partir da décadas de 1940, até meados de 1970, ganhou visibilidade como a terra do carismático e visionário político Juscelino Kubitschek de Oliveira, que foi presidente da República entre 1956 e 1961. Mas, por trás de tudo isso, o que sempre caracterizou Diamantina, e se manteve firme desde a época da mineração até hoje, passando pela era Juscelino, foi a sua vocação musical.
É comum, entre os diamantinenses, a afirmação de que cada família da cidade tem pelo menos um músico. A tradição teria origem no século 18, quando Diamantina ainda se Chamava Arraial do Tijuco e as celebrações religiosas eram todas cantadas e acompanhadas de música. Isso teria levado as irmandades religiosas a incentivarem a formação de músicos e a reconhecerem seu ofício.
A professora de história Maria de Lourdes Reis, que se mudou de Belo Horizonte para Diamantina depois da aposentadoria, afirma que a música tem sido difundida em Diamantina dentro das próprias famílias. “O pai ou a mãe com conhecimento musical transmite para um filho, o filho ensina a um neto e assim por diante”. Isso, em sua opinião, tem garantido a continuidade da tradição e despertado o interesse dos jovens.
Os mais velhos, por outro lado, não se cansam de tocar e continuam ocupando seus lugares nos grupos de seresta. Caso de José da Silva Macena, o popular Maestro Macena que durante 30 anos integrou a centenária Banda de Música da Polícia Militar e hoje participa das apresentações como convidado especial em eventos importantes como, por exemplo, as comemorações da Semana da Pátria, além de dirigir o conjunto de seresta mais antigo da cidade.
A própria professora Lourdinha foi contaminada por essa paixão musical e hoje tem aulas de violão e toca pandeiro nas serestas. Mais que isso: todas as tardes, quando não tem nenhum evento na cidade, ela e o Maestro Macena se reúnem para tocar e cantar. Ela no pandeiro e ele no trombone de vara.
Em Diamantina é assim. Quem não toca, como eles, gosta de cantar, ou simplesmente de ouvir. E a paixão dos diamantinenses pela música tornou-se evidente para todo o país na figura do próprio ex-presidente Juscelino, que fez questão de explicitá-la durante toda a sua vida pública e ficou conhecido como o presidente Bossa Nova.
Juscelino: o presidente seresteiro
O ex-presidente sempre participou das serestas de Diamantina e era considerado um excelente cantar e tocar violão com os amigos, entre eles músicos e cantores como Inezita Barroso.
Durante seu mandato, costumava promover festas no Palácio Guanabara – residência oficial do Governo Federal antes da inauguração de Brasília. Nessas ocasiões, cantava junto com os convidados.
Era também costume de Juscelino, chamar o pianista Bené Nunes para tocar em suas festas. E quando o presidente americano Dwight Eisenhower visitou as obras da nova capital federal, em 1960, foi recepcionado pelo governante brasileiro com uma apresentação da cantora lírica Maria Lúcia Godoy.
Embora seu gosto musical incluísse também essas expressões menos populares, foi uma cantiga de roda, muito presente nas serestas mineiras, que acabou fazendo parte de sua identidade e era cantada pelo povo para homenageá-lo sempre que estava presente em algum evento público ou visitava alguma cidade: a cantiga de roda Peixe Vivo:
Como pode um peixe vivo / Viver fora da água fria? / Como pode um peixe vivo / Viver fora da água fria? / Como poderei viver / Como poderei viver / Sem a sua, sem a sua /Sem a sua companhia?
A cantiga de roda preferida do ex-presidente foi de tal forma identificada à sua imagem e à de Diamantina que quase atingiu a condição de hino da cidade.1 Peixe Vivo continua sendo cantada nas serestas diamantinenses e é o nome do conjunto de seresta presidido pelo Maestro Macena.
O grupo foi criado em 1954, pelo compositor Crisantino Dionísio Gomes e passou à direção de Macena há cerca de 15 anos. Além de ser o mais antigo da cidade é também o mais numeroso. Enquanto os outros reúnem de três a cinco músicos, o Peixe Vivo conta hoje com 30 integrantes, entre músicos e cantores.
As serestas são realizadas nas sextas-feiras, cada semana por um grupo diferente. Mas o trajeto não muda. Parte da Igreja do Carmo e anda pelas ruas até o Mercado Velho onde são executadas as últimas composições. A fim de incentivar os músicos, a Prefeitura Municipal paga um salário mínimo a cada coordenador de grupo, que o divide igualmente com seus integrantes, mas o valor é considerado simbólico pois cobre apenas a manutenção dos instrumentos.
Além dessa programação oficial, as serestas acontecem também de forma espontânea, geralmente em comemorações particulares ou simplesmente porque um músico ou um grupo deles resolveu tirar uma tarde ou uma noite para tocar e cantar, como fazem a professora Lourdinha e o Maestro Macena.
Para os diamantinenses, é algo corriqueiro que pode se repetir com alguma frequência. Para os visitantes, é uma experiência inesquecível e muitos não perdem a oportunidade de contar. Um exemplo curioso é o da professora aposentada da UFMG Jane Magalhães Alves, que visitou a cidade com alguns colegas de trabalho e casualmente acabou fazendo parte de uma extensa programação musical.
“Nós estávamos sentados na frente da igreja quando alguns diamantinenses perceberam que éramos de fora e nos convidaram a participar de uma festa de aniversário que seria animada por seresteiros. Aceitamos o convite e ficamos horas cantando com eles. Quando a festa acabou, nos chamaram para participar de uma seresta cantando pelas ruas”.
A seresta é uma manifestação musical sobrevivente. Além dela havia, no passado, a famosa serenata, por meio da qual os homens apaixonados comunicavam seu interesse às jovens donzelas, que viviam trancadas dentro de casa. Os que eram músicos, faziam suas próprias apresentações, os que não eram tinham que convocar amigos ou contratar um grupo de profissionais. Mas tanto em um caso como no outro, uma coisa não de alterava: os músicos tocavam na rua e as jovens assistiam da janela ou da sacada. Isso quando os pais permitiam.
Havia, ainda, a retreta, que consistia em uma apresentação musical em espaço público, que os moradores da cidade assistiam sentados em cadeiras que levavam de casa. Diferente das serenatas, que eram dirigidas a uma pessoa específica, as retretas eram para todos.
De Serenata a Vesperata
Nas últimas décadas, a serenata e a retreta deixaram de existir e a seresta tem dividido a atenção dos diamantinenses – e principalmente dos turistas – com um novo tipo de apresentação musical batizado como Vesperata. O evento acontece duas vezes por mês, em sábados intercalados, no período de abril a outubro, quando a cidade está livre das chuvas.
O curioso é que, na Vesperata, ao contrário das serenatas, são os músicos que se colocam nas sacadas dos casarões históricos e o público assiste de baixo, ao redor de mesinhas espalhadas pela rua da Quitanda – uma das mais conhecidas do centro da cidade. Entre as mesas, numa plataforma um pouco mais alta, posiciona-se o maestro, que precisa virar-se constantemente para reger os músicos posicionados dos dois lados da rua.
A Vesperata é realizada pela tradicional Banda da Polícia Militar e pela Banda Mirim Prefeito Antônio de Carvalho Cruz, da Prefeitura de Diamantina. Embora tenha sido criada há cerca de três décadas, não se pode dizer que a Vesperata seja desprovida de raízes históricas já que é apresentada por uma banda centenária e confirma uma tradição musical também secular.
Mas além da inversão de posições entre público e músicos, a Vesperata difere da seresta, da serenata e da retreta pelo tipo de música. É que embora seu repertório inclua clássicos da seresta como o próprio Peixe Vivo, a Vesperata se arrisca por outros ritmos chegamdo, algumas vezes, até o rock.
É a Vesperata, no entanto, que garante a movimentação turística da cidade no período de abril a outubro, deixando-a vazia e silenciosa entre novembro e março – época chuvosa, quando não é possível realizar apresentações ao ar livre. Além disso, acredita-se que a sua existência contribuiu para que Diamantina fosse considerada Patrimônio Mundial da Unesco.2
Notas
- 1 Quando Juscelino foi afastado da vida pública e depois exilado, a cantiga Peixe Vivo parecia ter sido feita sob encomenda e sua identificação com o ex-presidente tornou-se ainda mais forte.
- 2 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares especiais do Vale do Jequitinhonha: Curralinho / Gruta do Salitre / Vila do Biribiri / Bonecas do Jequitinhonha / Chapada do Norte
Diamantina – Vale do Jequitinhonha – Minas Gerais – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1,8,9) Sylvia Leite
- (2,6) Fotos cedidas pela professora Lourdinha
- (3) Capa e miolo de disco - Divulgação
- (4) Juvenal Pereira - acervo do Museu do Clube da Esquina
- (5) Arquivo Nacional em Wikimedia
- (7)Pintura de autor desconhecido
Participação especial
- Marisa Mattua Portela da marca de jóias Marisa Portella
Referências
- Site da Prefeitura de Diamantina
- Gravações raras de J.K. completam 50 anos, no blog do Assis Ângelo - Instituto Memória Brasil IMB
- Disco J.K. em Serenata
- Texto Juscelino tinha gosto pela Música - Jornal Opção
- Vídeo A História da Cantiga de |Roda Peixe Vivo - Canal A História da Música
Gostei muito de ler o seu artigo,pois sou fâ de música de uma forma geral, e em particular de música brasileira,tanto erudita(Villa Lobos), como popular(Martinho da Vila).Muito Obrigado Sylvia,um beijinho…,
Valeu, Manuel. Aproveite para ler também , aqui no blog, uma matéria sobre conservatória, outra importante cidade seresteira.
Matéria lida e comentada na própria página sobre Conservatória.Obrigado.Bj.
Eu que agradeço, Manuel. O blog tem mais de 200 matérias, todas voltadas para a história e a cultura dos lugares ou das manifestações retratadas. E você pode receber avisos por email, whatsapp ou signal cada vez que houver uma nova publicação. Basta se inscrever na versão do blog para computador. Se achar mais fácil, envie seu número de telefone com DDD para o email [email protected] para que eu possa inclui-lo em nosso mailing.
Informações para se guardar e ir conhecer, com certeza!
Parabéns por descrever com detalhes em cada matéria o lugar escolhido e nos presentear com seus textos, Sylvia.
Obrigada, Glicia, volte sempre.
Que maravilha Sylvia!! Passei belos tempos de carnaval lá…. E essa foto do J.K. com Miltom , Fernando Brandt e Lô Borges bem novinho… demais!!!! A cidade da seresta!!! Arrasou!!
Poxa, não sabia que Diamantina tem essa tradição. A música é uma arte nobre, uma terapia, e uma cidade que tem a música assim, tão impregnada nas paredes, na história e nas pessoas, só pode ser muito especial. Preciso conhecê-la com urgência!
Pois é, acho que muita gente não sabe porque Diamantina ficou muito conhecida pela mineração.
Muito interessante saber que Diamantina é a capital musical de Minas. Adorei saber mais sobre a origem do Clube da Esquina, que eu adoro, e fiquei surpresa em saber que o então presidente teve contato com aqueles artistas. Parabéns pelo post!
Que bom que gostou. Quando for a Diamantina tente marcar a viagem em um período que tenha Vesperata. Vale a pena assistir.
Nunca tinha ouvido falar que Diamantina fosse a capita musical de Minas. E achei muito interessante toda a história e a tradição de pelo menos 1 membro da família ser músico. Maravilha.
Eu também nunca tinha ouvido falar que Diamantina é a capital musical de Minas até minha ida ao Vale do Jequitinhonha em agosto último.Interessante, não é?