Atualizado em 01/05/2024 por Sylvia Leite
A tradição de modelar argila não é nenhuma novidade nem privilegio de qualquer povo. Foi e continua sendo cultivada há cerca de milênios, no Brasil e no mundo. Mas no interior de São Paulo um grupo de artesãos modeladores têm uma história singular. São os Figureiros de Taubaté. Suas primeiras peças foram produzidas por uma religiosa, faxineira voluntária de um convento franciscano, que decidiu copiar as imagens de um presépio trazido da Itália. Em pouco tempo, outros moradores da cidade também quiseram fazer seus próprios presépios e, aos poucos, aquilo foi se tornando uma atividade econômica.
Maria da Conceição Frutuoso Barbosa, a artesã pioneira, aprendeu a modelar argila por acaso. Em uma de suas faxinas no Convento de Santa Clara, ela encontrou no sótão uma imagem quebrada da Imaculada Conceição e resolveu consertá-la. Para fazer os reparos, usou argila colhida no rio Itaim e, com isso, deu seus primeiros passos na modelagem. Em seguida, quando os frades montaram o presépio com peças italianas, ela sentiu-se apta a copiá-las.
O que mais impressiona nessa história é que Maria da Conceição tinha um problema nas mãos e, para fazer a modelagem, precisava amarrar as ferramentas nos pulsos, apoiar a argila no queixo e até usar a língua para fazer o acabamento . Mesmo assim, ela se tornou a primeira artesã de argila de Taubaté.
Figureiros de Taubaté: uma herança familiar
Durante algum tempo, os artesãos faziam as peças para uso pessoal. Só mais tarde é que começaram a presentear amigos e parentes e, por fim, passaram a vendê-las no mercado municipal. Os que aprendiam a modelar, ensinavam aos filhos e estes transmitiam aos netos e assim a tradição de modelar figuras humanas e animais foi passando de geração em geração.
A figureira Tania Sampaio – filha, neta, sobrinha, prima e mãe de figureiros conta que, quando criança, ajudava a avó a modelar as peças e depois iam juntas vende-las na feira. E assim faziam todas as famílias de figureiros. Sempre na época de Natal. Até que um dia o folclorista Rossini Tavares de Lima, diretor do Museu de Folclore de São Paulo, apareceu nesse mercado, levou algumas peças para São Paulo e os figureiros começaram a receber convites para participar de exposições.
Depois disso os artesãos de Taubaté passaram a ser procurados em suas casas por gente de várias partes do país, e a Rua Imaculada, onde a maioria deles morava, tornou-se famosa. Mas os visitantes, segundo Tânia, não passavam das primeiras casas e quem morava nas últimas ficava sem vender as peças. Foi aí que se iniciou o movimento para a criação da Casa do Figureiro, batizada com o nome de Maria da Conceição Frutuoso Barbosa e instalada em um prédio cedido pela Prefeitura.
Atualmente há mais de 50 artesãos em atividade em Taubaté, e cerca de 30 participam ativamente da Casa, onde é colocada à venda grande parte da produção da cidade. É também ali que alguns deles modelam suas peças e oferecem cursos para quem deseja tornar-se figureiro. Há, ainda uma outra organização, ligada à Associação Artística Cultural Oswaldo Goeldi, que funciona com os mesmos objetivos.
Pavão azul: símbolo do artesanato paulista
Apesar de ter nascido num convento franciscano e de suas primeiras modelagens terem sido peças de presépio, a arte dos Figureiros de Taubaté, hoje, não se limita mais à temática religiosa. Mesmo antes de terem sido descobertos pelo folclorista Rossini, os artesãos populares do Vale do Paraíba, como eles gostam de se definir, já haviam ampliado sua temática, passando a modelar, além de santos e presépios, uma grande variedade de figuras, especialmente zoomórficas.
Na época, ainda havia um hábito, trazido da Europa, de retratar animais em praças públicas e foi inspirada em uma dessas esculturas que a artesã Maria Cândida introduziu o pavão no repertório dos figureiros e acabou fazendo dele seu principal tema. Ela usou como modelo uma imagem que existia na Praça do Mercado de Taubaté e concebeu quatro pavões que até hoje são copiados ou reinterpretados por seus colegas.
Foi com um dessas quatro peças, intitulada “Pavão em Relevo”, que Maria Cândida venceu um concurso estadual, realizado pela Subsecretaria do Trabalho Artesanal nas Comunidades (Sutaco), para escolher o símbolo do artesanato paulista. Embora se diga que a peça premiada era branca, acredita-se que venha desse episódio a predileção dos figureiros pela figura do pavão azul com detalhes coloridos. Seja como for, é o pavão azul, e não o branco, que representa hoje o artesanato de São Paulo e a própria Sutaco. E foi também o pavão azul que se tornou ícone da produção dos figureiros e símbolo do Folclore de Taubaté.
O risco de faltar pigmento
Uma das principais características desse famoso pavão é o fato de ser pintado com um tipo de azul conhecido como ultramar. Há quem diga, inclusive, que os figureiros de Taubaté são os únicos artesão brasileiros a usar essa tonalidade, que já se tornou conhecida como uma marca de seu trabalho.
A má notícia é que a famosa e tradicional fábrica Xadrez, que produzia os pigmentos usados pelos figureiros para produzir suas tintas, fechou as portas. Com as tintas de outras cores não houve problema porque puderam ser rapidamente substituídas por produtos de outras empresas, mas ninguém no Brasil produz o azul ultramar. Segundo Tânia Sampaio, os figureiros só conseguem manter a produção de suas peças nessa cor porque conseguiram importar o pigmento da Europa, e cada um ainda tem uma certa quantidade, mas ela não sabe o que vai acontecer quando esses estoques acabarem.
Como recordação dons bons tempos em que o pigmento azul ultramar era encontrado com facilidade, Tânia guarda a ultima embalagem da tinta xadrez emoldurada em um porta-retrato.
Os Figureiros de Taubaté hoje
Cerca de 150 anos depois que Maria da Conceição Frutuoso Barbosa modelou as primeiras peças de presépio, os figureiros estão consolidados, exportando seu trabalho para o mundo inteiro e com uma produção extremamente diversificada inspirada no cotidiano da cidade: de presépios a trabalhadores, como lavadeiras, jardineiros ou vendedores; de santos a personagens do famoso conterrâneo Monteiro Lobato. Isso sem falar nas encomendas, que não têm limitação de temas.
A técnica e o material também mudaram. No início, a argila era retirada do rio com uma pá e carregada nos braços até a cidade. Depois era preciso prepará-la para a modelagem. Hoje, os artesãos recebem a argila pronta para uso. A secagem das peças também foi alterada: antes era feita naturalmente, apenas com exposição ao sol, enquanto agora muitos artesãos já utilizam fornos, inclusive os elétricos. O que permanece igual é a modelagem e o preparo da tinta, feita com pigmento em pó, álcool e goma laca.
A origem do nome
A palavra figureiro não consta de nenhum dicionário. Foi inventada por alguém, em algum momento, e acabou se firmando como denominação do grupo de artistas que inicialmente foram chamados de santeiros. A explicação para a mudança, segundo Tânia, é que, lá no início, os artesãos dividiam-se entre os que tinham a habilidade de modelar feições humanas e os que não tinham. Os primeiros encarregavam-se dos santos e das peças principais dos presépios. Aos outros, cabia a modelagem dos animais que compunham a cena do nascimento. Os primeiros eram chamados de santeiros e os últimos de figureiros.
Houve época, segundo Tânia, em que o número de figureiros era bem maior que o de santeiros e, como eles precisavam unificar o grupo, passaram a autodenominar-se figureiros. Hoje em dia não há mais essa diferenciação porque é exigido de todo figureiro que aprenda a fazer tanto animais como tipos humanos.
A padroeira dos figureiros
Mesmo com uma produção diversificada, e tendo como ícone um pavão, o trabalho dos Figureiros de Taubaté permanece vinculado ao seu passado religioso. Prova disso são os santos e os presépios que estão entre as peças mais procuradas. Mas esse não é o único vínculo dos artesãos com a Igreja Católica.
Maria da Conceição Frutuoso Barbosa, a mesma que deu início ao trabalho dos figureiros depois de restaurar a imagem da Imaculada Conceição, era uma cristã fervorosa e na época conseguiu construir, com apoio de outros fiéis, uma capelinha para abrigar a santa. Tempos depois, um vendaval destruiu a capela, mas o altar e a imagem permaneceram intactos, o que foi considerado um milagre por muita gente. A imagem preservada foi então transferida para a atual igreja da Imaculada Conceição, erguida no mesmo local.
Imaculada Conceição, como já foi visto, é o nome da rua onde morava a maioria dos primeiros artesãos e também batizou o bairro onde estão instaladas hoje tanto a igreja como a Casa dos Figureiros. Diante de tudo isso, a santa é por muitos considerada a padroeira desses artistas. 1
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares especiais de São Paulo: Parque Augusta / Minhocão /Theatro Municipal / Galeria do Rock / Beco do Batman/ Bixiga / Theatro Municipal / Estação Júlio Prestes e Sala São Paulo / Teatro Oficina / Pavilhão da Bienal
Figureiros de Taubaté – Taubaté – Vale do Paraíba – São Paulo – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1,2,3,4,5,7,8 e 9) Cristiane Squarcina
- Logomarca da Sutaco
Participação especial
- Entrevista e fotos: Cristiane Squarcina
Referências
- Site dos artesãos
- Guia de Taubaté
- Site de Oscar DAmbrosio
Esse azul é único mesmo… é a vida das peças
Verdade. Sem esse azul, o trabalho deles não seria o mesmo.
Que interessante! Não conhecia essa história! Adorei saber! Parabéns Sylvia!
Obrigada, Cynthia. Volte sempre!
Adorei conhecer a história desses artesãos. A superação da Maria da Conceição também é muito interessante.
Sim, Marcele, tudo isso é muito legal e as peças que eles fazem são lindas. Tenho algumas.
Lindo trabalho! Que pena que não fabricam mais este pigmento deste azul maravilhoso!
Verdade, Bárbara, uma pena mesmo o pigmeneto azul ultramar não ser mais fabricado no Brasil, mas eles vão arrumar um jeito de importar.
Que história legal, Sylvinha e esse azul, hein?! Maravilhoso! Valeu por compartilhar!
A história é legal mesmo. E as peças são lindas. Tenho algumas.
Nossa! mas que peças mais lindas, uma mais bela que a outra! Não conhecia que em Taubaté tinha grandes artistas! amei conhecer os figureiros de Taubaté, estes modeladores do cotidiano.
São lindas mesmo. Tenho algumas em casa e não me canso de olhar pra elas.