Atualizado em 07/02/2025 por Sylvia Leite
O pequeno distrito de Andrequicé, no município mineiro de Três Marias, poderia permanecer para sempre no anonimato, como ocorre com a maioria das vilas do sertão brasleiro. Mas alguns fatos e, principalmente, um personagem real – o vaqueiro Manuel Nardi, o Manuelzão – fizeram desse lugar um dos mais importantes pontos de referência da Literatura de Guimarães Rosa.
Manuelzão não nasceu em Andrequicé, mas morou lá nos últimos 20 anos de vida, quando foi descoberto pela imprensa e acabou se tornando quase tão conhecido como o escritor. Já as histórias de sua vida, que Rosa transportou para o conto “Uma Estória de Amor”, inserido no livro “Manuelzão e Miguilim”, da trilogia “Corpo de Baile”1, ocorreram a poucos quilômetros dali.
O escritor conheceu o vaqueiro na fazenda Sirga – arrendada por seu primo Chico Moreira – durante a visita que fez ao sertão em 1952. Ali os dois viveram – cada um a seu modo – os preparativos da viagem que fariam a cavalo, tocando uma boiada. Antes da partida, participaram de uma grande festa: a inauguração da capelinha que Manuelzão havia construído em homenagem póstuma a sua mãe.
Se a curta temporada na Sirga inspirou um conto, a viagem de 10 dias, iniciada logo depois da festa, iria fornecer subsídios para tudo que Rosa escreveu dali em diante.
Com uma caderneta pendurada no pescoço – imagem que hoje é reproduzida de várias formas – o escritor anotava cada coisa que encontrava pela frente: da Geografia, da Fauna, da Flora, e também dos costumes e do modo de falar nativo. Manuelzão e os outros vaqueiros integrantes da comitiva eram seus intérpretes e suas fontes.
A vivência com eles rendeu descobertas, influências e muita inspiração. A mais visível está no já mencionado conto “Uma Estória de Amor”, que além de transportar Manuelzão da realidade para a Literatura, toma sua festa como tema central.
Na ficção, assim como na realidade, o vaqueiro havia ouvido da mãe que aquele era um lugar ideal para erguer um cemitério. Decidiu, então, enterra-la no local, e em seguida construir uma capela devotada a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro – a santa de devoção da família.
Essa, no entanto, não é a única presença de Manuelzão na Literatura de Rosa. Para alguns críticos e estudiosos, o vaqueiro foi a principal referencia do escritor na construção de Riobaldo – o personagem narrador do romance “Grande Sertão: Veredas”. Isso porque, assim como o ex-jagunço, Manoelzão era um contador de histórias e acredita-se que foi dele que Rosa ouviu grande parte dos ‘causos’ que registrou em sua obra.
O testemunho da filha Maria
“Ele gostava demais de conversar, podia ficar a noite toda”, conta a filha do vaqueiro, Maria Nardi referindo-se ao pai. Embora tivesse apenas 10 anos quando Guimarães Rosa esteve na fazenda Sirga – onde morava sua família – Maria se lembra de muita coisa. Conta, por exemplo, que enquanto esteve na fazenda à espera da saída da boiada, Rosa ajudou os vaqueiros a juntarem o gado: “ele era uma pessoa que quem visse nem pensava o que ele era na vida”.
O período de convivência foi curto, mas a amizade se estendeu pela vida inteira. Mesmo depois de morto, o escritor continuou presente da vida do vaqueiro. “Guimarães mandava umas cartas, depois ele morreu”, conta Maria, lembrando que a partir daí, houve uma grande mudança para Manuelzão
“Quando eles resolveram procurar os vaqueiro, nenhum quiseram, porque tinha que saber quanto é que ele ia ganhar. E pai animou.” conta Maria Nardi., que viu a vida de Manuelzão se transformar daí em diante. “Ele deu pra viajar muito, ia pros lugares, ia pra São Paulo, pro Rio de Janeiro, Belo Horizonte, pra todo lugar. Foi no Jô Soares, descobriu parentes no Rio de Janeiro”.
A história da capelinha e do cemitério
Manuelzão não apenas gostava de conversar, como atesta sua filha Maria, como tinha muita coisa para contar. Somente a história real da capelinha que foi adaptada por Rosa no conto “Uma Estória de Amor”, já era capaz de dar um livro, ou um documentário.
Maria diz que de tanto ouvir o pai contando essa história à família, aos amigos, a jornalistas e historiadores, aprendeu a repetir como se tivesse presenciado.
Tudo começou, segundo Maria, quando o pai e a avó foram a um velório no povoado das Pedras e na volta pararam para descansar numa sombra, justo no lugar onde hoje se encontra a pequena igreja. Na ocasião, a avó teria dito: “aqui dava um cemitério tão bonito, um cemitério com uma capelinha”.
Manuelzão não esqueceu aquilo e quando a mãe faleceu decidiu enterrá-la no exato local onde ela havia indicado. Mas, segundo Maria, a construção da capela demorou um pouco para começar porque “tinha que pedir licença ao padre, acho que de Felixlândia” e esse padre exigiu que Manuelzão doasse à Igreja o terreno onde a capelinha seria erguida. Ocorre que Manuelzão era apenas empregado da fazenda e, como relembra a filha, “não tinha terreno nem pra ele”.
Foi aí que, de acordo com o relato de Maria, Manuelzão decidiu construir a capela mesmo sem consentimento da Igreja e “o povo ajudava com dinheiro”. Quando a obra terminou, ele começou a preparar a festa e conseguiu que o padre de Pirapora – um município um pouco mais distante – concordasse em benzer a capelinha.
Além da mãe, a irmã de Manuelzão também está enterrada lá e com o tempo o cemitério foi usado por outras pessoas da comunidade. Mesmo assim, e apesar de toda essa luta para construir a capela, Manuelzão não está enterrado delas e sim no cemitério de Andrequicé, em um lugar afastado das outras covas (foto), como ele havia pedido antes de morrer
Museu-casa de Manuelzão
Ao longo das décadas e, principalmente depois de sua morte, Manuelzão transformou-se em uma espécie de símbolo de Andrequicé. A história do personagem real e os seus objetos pessoais, assim como a memória do Caminho da Boiada, estão guardados no Museu-Casa de Manuelzão, instalado na entrada da cidade.
A casa onde foi instalado o museu é a antiga moradia do vaqueiro com sua segunda esposa, Dona Didi. O imóvel foi comprado pela Prefeitura de Três Marias e entregue à instituição que administra o museu – a Sociedade dos Amigos do Memorial Manuelzão e de Revitalizaçao de Andrequicé, cuja sigla, Samarra, coincide com o nome dado por Guimarães Rosa à Fazenda Sirga no conto “Festa de Manuelzão”.
Junto com a casa do vaqueiro, foi comprada também a de sua filha e juntos, os dois imóveis compõem um Centro de Cultura local, gerido pela Samarra, que além do museu, coordena também diversos grupos culturais como Bordaderias, Quadrilha, Ciganas, Pastorinhas, Gamba e Folia de Reis.
A Samarra é responsável, ainda, pela Festa de Manuelzão, realizada anualmente, desde 2001, no início de julho, com rodas de leitura, apresentações de dança, música e teatro, desfiles de carros de bois e celebrações religiosas.
Nesse período, o vilarejo tem sua população aumentada, chegando a abrigar mais de 11 mil pessoas entre moradores e visitantes. E talvez esse número fosse ainda maior se houvesse estrutura para receber os viajantes. Atualmente, a única hospedaria formal do lugar – a pensão de Dona Olga – está ocupada por trabalhadores das empresas que atuam na região.
Aqui, é preciso abrir parêntesis para registrar que o antigo imóvel onde funciona hoje essa pensão pode ter sido a referência de Guimarães Rosa ao criar, no conto “Lão, Dalalão”, a casa de Jõe Aguial – uma moradia desocupada onde o personagem Soropita se hospedava quando ia a Andrequicé fazer compras e ouvir rádio.
Caso estivesse aberta ao público, a pensão da Dona Olga seria, portanto, um lugar interessante para se hospedar, mas, na falta dela, quem quer pernoitar na cidade precisa contar com a hospitalidade dos moradores.
O rastro de Rosa em Andrequicé
Embora sem estrutura e habitada por apenas 400 famílias – há divergências sobre o número de habitantes2 – o pequeno distrito de Andrequicé tem hoje – ao completar seu terceiro centenário – uma movimentação cultural que talvez não se encontre nem em sedes de municípios com maior desenvolvimento. E tudo está relacionado, de uma forma ou de outra, à obra de Guimarães Rosa.
As bordadeiras, por exemplo, têm como temas principais de seu artesanato as cenas narradas por Rosa e as paisagens que lhes serviram de cenário. Além disso, a maioria delas faz questão de registrar, em seus bordados, frases extraídas das obras do escritor.
Já a dança cigana, embora seja uma tradição local reminiscente da época em que havia muitas delas em Andrequicé, sustenta-se principalmente em dois fatos: por ter sido uma cigana o primeiro amor de Manuelzão e por elas terem sido citadas por Rosa em várias de suas obras como os contos “Corpo Fechado”, no livro “Sagarana”, “Faraó e a água do rio”, “O outro ou o outro” e “Zingaresca”, no livro “Tutameia”.
Os arredores de Andrequicé
Não bastasse ter sido a última morada do personagem real mais famoso de Guimarães Rosa, Andrequicé está ao lado de lugares que ficaram marcados na vida e na obra do escritor mineiro.
Entre essas paragens está a própria fazenda Sirga, que na ficção recebe o nome de Samarra, e o povoado das Pedras localizado dentro da fazenda, de onde precisamente partiu a Boiada. No mesmo lugar, encontra-se a capelinha e o cemitério, já tão comentados e mostrados anteriormente.
Também no município de Três Marias e perto de Andrequicé, está a Fazenda Santa Catarina, onde Guimarães Rosa pernoitou com Manuelzão e os outros vaqueiros que integravam a comitiva da Boiada. O proprietário, Wilson Mendes, que permanece lá até hoje, relembra com saudade daquela noite e se orgulha de ter hospedado o escritor famoso.
Essa fazenda também seria o lugar onde, na ficção, viveu Otacília, a jovem com quem Riobaldo flertava e que, após a morte de Diadorim, acabou se tornando sua esposa.
Restam, ainda, a enorme Vereda São José (foto), que segundo diversas fontes era a preferida de Rosa, e o porto do de-Janeiro, que na vida real parece ter sido igualzinho ao que foi descrito por Rosa em uma das cenas iniciais do romance – quando é narrado o primeiro encontro entre Riobaldo e Diadorim, o par romântico da história.
Infelizmente para os que se deleitaram com as descrições de Rosa, para os que vivem na região e para todo o país – que acaba recebendo o impacto da destruição ambiental e do patrimônio histórico -, tanto a vereda São José, como a capelinha e o porto do de-Janeiro estão em estado de degradação.
A vereda São José foi assoreada e corre o risco de secar em consequência do desmatamento do cerrado e do avanço da monocultura de eucalipto, que puxa água do solo. A capelinha está cercada de mato por falta de manutenção e o porto do de-Janeiro enfrenta os dois problemas.
A construção onde funcionava o armazém foi completamente abandonada (foto), e encontra-se sem portas, com pintura e reboco desgastados, enquanto o rio está cada vez mais estreito. 3
Notas
- 1 Essa trilogia já teve duas outras configurações, uma delas em volume único
- 2 Os números variam entre 800 e 2.000
- 3 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares relacionados à obra de Guimarães Rosa: Morro da Garça / Corinto / Araçaí / Cordisburgo / Sagarana / Serra das Araras / Paracatu / Morrinhos / Gruta de Maquiné / Caminho do Sertão
Andrequicé – Três Marias – Vale do Médio Rio das Velhas – Minas Gerais – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1,3,4,5,6,7,8,9,10,11,12) Sylvia Leite
- (2) Reprodução revista O Cruzeiro
- (3) Domínio Público
Participação especial
- Neli Defensor Martins
- Rosa Haruco
- Jane Neto Alves
- Marcos Viana
- Maria de Fátima Coelho Castro
Entrevistados
- “José
- José
- “Lidiane
- “Márcia
- “Dalva
Referências
- Instagram de Andrequicé
- Site iPatrimônio
- Site Rede Mineira de Pontos de Cultura
- Facebook Museu Manuelzão
Prazerosa leitura. Andrequicé, através de suas festas, artesanias, atividades culturais e, principalmente, seu povo acolhedor e sempre disposto a uma boa conversa, é um testemunho vibrante do quanto o trabalho de pessoas dedicadas à cultura popular pode gerar sucessos.
Esse é o caso da Samarra e o povo de Andrequicé.
Verdade, Marcos e tudo isso movido pela obra de Guimarães Rosa.
Lembrando aqui do meu pai contando contando esses “causos”
Pois é, Jucelma, seu pai – Criolo – e seu avô – Chico Moreira -, foram testemunhas e até personagens disso tudo, pois além de terem hospedado Guimarães Rosa – na condição de arrendatários da fazenda Sirga – acompanharam parte da Boiada. Deve ter sido uma experiência maravilhosa.
“E Minas, e Minas, …” De Guimarães, de Drummond, do Clube da Esquina e tantas outros. A história precisa ser contata e preservada. Parabéns Sylvia pela matéria, que proporciona uma viagem incrível pelas Veredas de Guimarães
Obrigada, Míriam. O blog tem algumas matérias sobre lugares de Minas relacionados à literatura de Guimarães. E virão outras. Acompanhe e desfrute!!
Muito legal saber essas histórias todas ! ! Nem podia imaginar . Obrigada Syl!
Eu que agradeço, pela leitura e pelo comentário. Volte sempre.
Quantas histórias, Sylvinha…! Muito legal!
Andrequicé é realmente um poço de histórias. Obrigada pelo comentário!