Atualizado em 27/07/2024 por Sylvia Leite
Museus de cultura indígena são comuns pelo mundo afora. Mas o de São Paulo inova ao abrir espaço para que os povos originários ocupem uma posição ativa nas definições de conteúdo e gestão.
Para início de conversa, o Museu das Culturas Indígenas, localizado no bairro de Água Branca, em São Paulo, não foi batizado apenas na língua do colonizador. Os povos ali representados o chamaram de Tava, palavra Guarani que significa Casa de Transformação. O nome não está na denominação oficial – como talvez fosse mais justo – mas aparece em placas, depoimentos e outros materiais do museu, além de denominar o podcast da instituição.
Esta não é a única novidade: as tradições, saberes, histórias, cantares e lutas das diversas etnias são apresentadas principalmente por seus próprios integrantes – sejam artistas individuais ou coletivos artísticos -, a partir de um ponto de vista interno. Tudo isso inaugura uma postura diversa da que se viu historicamente, quando os povos originários não tinham voz direta e tudo que se divulgava a seu respeito era resultado de pesquisas, ou seja, concebido a partir de uma visão externa.
Ao transportar o protagonismo para os próprios povos ali representados, o Museu das Culturas Indígenas se constitui em uma instituição viva, capaz de mostrar não apenas as tradições culturais – incluindo o imaginário e as crenças de cada um desses povos – mas também de repercutir, sem intermediações, o que eles estão fazendo hoje, como enxergam sua relação com outras culturas e como se sentem em relação ao país onde vivem.
Tudo isso fica bem claro nas exposições – permanentes ou não – que foram escolhidas para dar início ao museu inaugurado em junho de 2022. Antes mesmo de entrar no prédio, já nos deparamos com a mostra “Ocupação Decoloniza – São Paulo Terra Indígena”, concebida e realizada coletivamente e em diversas linguagens, com o propósito de desfazer estereótipos e reafirmar a cultura e os direitos de das várias etnias.
A exposição ocupa muros, paredes e grades, com destaque para grafismos Guarani Mbya e imagens de onças. No gradil de entrada, o padrão denominado Ypará Korá ou Ypará Korava’e tem significado de proteção para o museu e acolhimento para os que vem visitá-lo.
Uma viagem pelo universo Huni Kuim
O primeiro espaço que se visita no Museu das Culturas Indígenas é a chamada Sala da Jiboia – um local de acolhimento, leitura e atividades, concebido com intervenções da artista Rita Sales da etnia Huni Kuim, a partir de uma lenda que integra a cosmologia de seu povo. No centro da sala, um enorme puff onde os visitantes podem acomodar-se livremente, remete à história do caçador Yube Inu, que se apaixonou por uma mulher-jiboia Yube Shanu e foi levado por ela para viver em sua aldeia no fundo do lago. Cenas dessa lenda foram registradas por Rita Sales Huni Kuim nas paredes da sala. Rita Sales é autora, também, da pintura do corpo da jibóia gigante.
Mas além de nos proporcionar um mergulho na lenda de Yube Inu, ao mesmo tempo que nos apresenta o trabalho da artista da etnia Huni Kuim, a Sala da Jiboia abriga materiais para serem observados ou usados de forma individual ou nas atividades coletivas. São pincéis, instrumentos musicais e de caça, além de inúmeros livros escritos por autores de diversos povos. A sala é destinada à realização de oficinas, seminários, rodas de conversa e reuniões.
A defesa da floresta no Museu das Culturas Indígenas
Três exposições do Museu das Culturas Indígenas mostram a preocupação dos povos originários com a terra e a preservação ambiental. Em “Mymba’i – pedindo licença aos espíritos, dialogando com a Mata Atlântica”, somos chamados a pensar sobre os impactos das ações humanas destrutivas e a tomar consciência da necessidade de cuidarmos da Natureza e de recuperarmos o que foi destruído. A exposição reúne imagens de animais que trazem a marca desse impacto em seus corpos. São desenhos, pinturas e colagens produzidos em oficina concebida pela artista Tamikuã Txihi.
Não por acaso, a onça é uma das figuras mais presentes na exposição. Segundo uma lenda Pataxó, etnia da artista Tamikuã Txihi, a onça vivia em outro mundo e quando este novo mundo em que vivemos foi criado, ela ficou encarregada de cuidar de todos os seres: a Terra, o Sol, a Lua, as Estrelas. Um dia ela percebeu que a terra estava estremecendo – de tanto ser cortada pelo homem – e resolveu descer para ver o que estava acontecendo. Nunca mais, a onça conseguiu voltar para o mundo de cima e se tornou pajé das matas e líder espiritual.
A exposição “Nhe’e ry – onde os espítritos se banham” nos põe em contato com a atmosfera da Mata Atlântica por meio de experiências sensoriais. O impacto visual de uma grande oca de pau a pique, a audição de cantos e falas de guardiões de várias etnias, a textura e o cheiro de mais de 60 espécies nativas, entre outros estímulos, são usados como uma espécie de convite à compreensão do bioma e de todos os seus elementos. .
Ao fundo da sala, monitores de tv exibem depoimentos de guardiões dos povos Guarani Mbya, Tupi Guarani, Maxakali, Krenak e Pataxó sobre a degradação da Nhe’e ry – palavra Guarani usada para denominar Mata Atlântica – e sobre a luta de seus povos para defendê-la. O propósito da exposição, segundo Sonia Ara Mirim, representante do povo Xucuru-Cariri, é expor a relação de sinergia dos povos indígenas com todos os seres que habitam a mata “e mostrar que essa é a forma mais importante de regeneração´: coexistir em explorar”.
Já a exposição “Igapó: terra firme”, de Denilson Beniwa, nos traz a realidade da Amazônia por meio de produções sonoras e visuais de músicos indígenas projetadas em um telão que se reflete em um espelho d’água. Igapó é o nome de uma região amazônica que permanece alagada mesmo durante a estiagem e por isso foi usada como metáfora da resistência dos povos originários.
Ao apresentar a exposição de Beniwa, o Museu das Culturas Indígenas afirma que “a dança, o canto, o fazer com as mãos e a conexão com a floresta são caminhos para a continuidade da cultura e da vida”, e “mesmo que as árvores caiam, sua matéria orgânica torna viável o nascimento de outras ainda mais fortes”.
Gestão compartilhada e Mestres de Saberes
O que garante essa perspectiva interna das exposições é a gestão compartilhada. Embora o Museu das Culturas Indígenas seja uma instituição do Governo do Estado, sua administração está a cargo não apenas da Secretaria da Cultura, Economia e Induústria Criativas, mas também da ACAM Portinari – responsável pelo Museu Histórico e Pedagógico Índia Vanuíre – e do Instituto Maracá – uma organização não governamental que tem o propósito de proteger e disseminar o patrimônio histórico, ambiental e cultural dos povos indígenas. Além disso, conta com a influente participação do Conselho Indígena Aty Mirim.
Representantes indígenas ocupam grande parte dos cargos do museu, inclusive os de curadoria dos artistas e das obras, que são exercidos por profissionais de diferentes etnias: Tamikuã Txihi (Pataxó), Denilson Baniwa (Baniwa) e Sandra Benites (Guarani). Para completar, foi criado o cargo de Mestre de Saberes – uma espécie de monitor, com a função de guiar os visitantes pelas exposições, elaborar e desenvolver projetos e oficinas, mas com um diferencial: a capacidade de levar para o museu as referências, os valores e as narrativas de suas comunidades e de estabelecer um diálogo entre elas e os visitantes.
A fim de difundir a vivência indígena para fora de seus muros, o Museu das Culturas Indígenas lançou, em abril de 2022, o podcast “Tavas”, com episódios mensais que abordam temas como “O Protagonismo da Mulher Indígena”, “Ancestralidade e Espiritualidade”, “Brincadeiras Indígenas”, entre outros, mas, infelizmente, não se sabe por que razão, sua publicação está interrompida desde agosto.1
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros espaços culturais de São Paulo: Museu das Favelas / Theatro Municipal / Teatro Oficina / Farol Santander /
Museu das Culturas Indígenas – Água Branca – São Paulo – São Paulo- Brasil – América do Sul
Fotos
- Sylvia Leite
Referências
- Site oficial do museu
Partticipação especial
Eu desconhecia a existência dessa preciosidade. Obrigada por trazer sempre assuntos tão interessantes.
Eu também não soube do Museu das Culturas Indígenas logo que inaugurou, Mas assim que soube, quis conhecer.
Muito legal, Sylvia! A matéria e o museu! Quero muito ir.
Qual é o endereço na Água Branca, pf?
O Museu das Culturas Indígenas fica na rua Dona Germaine Burchard, 451, Água Branca, São Paulo.
Excelente ! Mais um lugar que você me incentivar a descobrir. Muito obrigado.
Eu que agradeço pela leitura e pelo comrntário.
Excelente texto Sylvinha!
Nossos povos originários e sua sabedoria milenar precisam ser valorizados e respeitados.
Abraço
Cada vez mais, né, Val? Acho que nunca precisamos tanto do exemplo e da sabedoria dos povos originários como agora. E o Museu das Culturas Indígenas nos aproxima um pouco de tudo isso.
Que demais!!! Gostinho de raiz, cheirinho de verde, olhar de respeito, sons da natureza e sensação de força!! Obrigada Sylvia!! Sempre arrasando…!!
Eu que agradeço pelo comentário generoso. É fácil ‘arrasar’ com lugares especiais como o Museu das Culturas Indígenas. Quem arrasa é o próprio lugar e seus criadores.
Que espetáculo de museu, Sylvinha! Quero conhecer!!!
É um espetáculo mesmo. Vale a pena conhecer o Museu das Culturas Indígenas.