Atualizado em 22/10/2024 por Sylvia Leite
Até pouco tempo atrás, acreditava-se, com base na chamada Teoria de Clovis, que o povoamento da América começou há cerca de 15 mil anos, quando grupos asiáticos teriam saído da Sibéria, na Ásia, e atravessado a Beríngia – hoje coberta pelo Estreito de Bhering – para chegar ao Alaska, na América do Norte e dali se espalhar por todo o continente americano. Mas a partir dos anos 1970, uma equipe de pesquisadores liderados pela arqueóloga Niéde Guidon levantou outra hipótese e é nela que se baseia a história contada pelo Museu do Homem Americano. Segundo esses estudos, a chegada do Homo sapiens à América teria ocorrido milênios antes do que se pensava e o seu ponto de partida teria sido a África. 1
O principal indicador da presença humana no local há mais de 15 mil anos não pode ser mostrado de forma palpável no Museu do Homem Americano pois se trata de resquícios de fogueiras. Mas o acervo do museu é composto, em sua maioria, por vestígios arqueológicos encontrados durante as escavações, que também respaldam as conclusões dos pesquisadores, atuantes na região há cerca de cinco décadas.
Entre as peças mais significativas do Museu do Homem Americano está o conjunto de pedras lascadas com datações de 50 mil anos ou mais, o que indicaria a presença do homem na região pelo menos 35 mil anos antes do que se imaginava. Houve uma grande polêmica em torno dessas pedras, pois alguns cientistas duvidavam que elas tivessem sido cortadas e polidas pelo homem, mas ao longo dos anos, novos estudos parecem ter convencido a maioria dos contestadores.
Uma das comprovações de que os habitantes pré-históricos da Serra da Capivara não vieram pela Sibéria estaria em coprólitos – ou seja, pedaços de cocô humano fossilizado. Nesse material foi constatada a presença de ovos e larvas do parasita Ancylostoma duoedenale – uma espécie que não teria resistido às baixas temperaturas da Sibéria.
Já a indicação de que o homem pré-histórico da Serra da Capivara teria vindo da África estaria no esqueleto Zuzu, datado de 10 mil anos, e com características distintas daquelas encontradas no índio americano vivia aqui quando houve a chegada do colonizador. A principal diferença seria a forma alongada do crânio, que por sua vez se assemelha aos que foram encontrados na África.
Domínio técnico na pré-história
A história do povoamento não é o único tema do Museu do Homem Americano. Boa parte do seu acervo mostra o o conhecimento técnico do homem pré-histórico da Serra da Capivara. Instrumentos, peças utilitárias e adornos – como serras, tornos, mãos de pilão, cachimbos e colares de pedra – revelam o uso de técnicas de corte e polimento pelos grupos que habitaram a região.
Esse domínio fica mais evidente em um dos grandes destaques do Museu do Homem Americano – uma ponta de projétil, do tipo ponta de flecha, datada de oito mil anos, feita em quartzo hialino, que é considerado um material extremamente difícil de cortar. A peça é transparente e tem aparência de vidro.
Na mesma sala, reservada aos líticos, uma sequência de pedras apresenta a linha do tempo do desenvolvimento tecnológico do homem pré-histórico da Serra da Capivara começando com instrumentos produzidos entre 50 e 100 mil anos atrás, passando por um machado polido datado de 9 mil anos e chegando à cerâmica e à louça, esta última em consequência do contato com os europeus.
Os achados históricos
Os grupos que viveram na região tempos depois, já na época histórica – e acabaram dizimados pelos colonizadores – também deixaram um testemunho de suas habilidades, especialmente na produção de objetos de cerâmica, muitos deles destinados aos rituais de enterramento.
As peças mais comuns são as urnas funerárias, expostas na chamada Sala da Morte, instalada no mezanino. Nesse local estão reunidos esqueletos originais e algumas réplicas de diversas datações, entre elas a do esqueleto de Zuzu (citado anteriormente), que nessa sala é mostrado integralmente e em posição fetal, como foi encontrado nas escavações.
Entre as réplicas encontra-se também a do piso de uma gruta onde foi encontrado um enterramento de três corpos: dois adultos e uma criança. O esqueleto da criança foi datado em 980 anos. Já os dos dois adultos não puderam ser datados porque seus ossos não tinham mais matéria orgânica e, por isso, acredita-se que sejam mais antigos.
Chama a atenção, ainda, a réplica do esqueleto de uma mulher que, segundo os estudos, morreu deitada, quando um bloco de aproximadamente cinco toneladas caiu sobre ela. O corpo não foi esmagado porque ficou dentro de um nicho, mas o cérebro explodiu.
Entre as peças originais estão crânios, um maxilar e um esqueleto completo de criança colocado em posição fetal dentro de uma urna. Trata-se de um dos cinco encontrados no mesmo sítio, datados de 840 anos. Os pesquisadores não sabem quando tiveram início nem quando cessaram os enterramentos em urnas funerárias, mas acreditam que essa prática durou pelo menos três séculos.
O cerne do Museu do Homem Americano
Embora tudo no Museu do Homem Americano seja fascinante, o que enche os olhos do visitante são as imagens das pinturas e gravuras rupestres exibidas em um enorme telão. Diferente de outras regiões do Brasil e do mundo, onde predominam os desenhos abstratos, especialmente os geométricos, a arte rupestre da Serra da Capivara é composta principalmente por cenas da vida cotidiana, como caça, luta, sexo, dança e ritos.
Foram essas manifestações artísticas que levaram a arqueóloga franco-brasileira Niéde Guidon a se interessar pela Serra da Capivara e convencer o governo francês a criar primeira missão de pesquisa no local, em meados da década de 1970. Se não existissem as pinturas, Niéde provavelmente não teria descoberto a região e não teria havido nenhuma das escavações que levaram à nova teoria de povoamento da América.
Por causa das pinturas e do trabalho arqueológico da missão franco-brasileira, foi criado, em 1979, o Parque Nacional da Serra da Capivara com o objetivo de preservar não apenas as pinturas e gravuras, mas também a natureza da região – o que é feito pela Fundação Museu do Homem Americano em conjunto com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) Em consequência de tudo isso, a população local foi envolvida em um projeto socioeducativo que formou uma geração e resultou na fábrica artesanal de cerâmica que exporta seus produtos para mais de 30 lojas no Brasil e no mundo.2
Finalmente, foi a enorme concentração de arte rupestre por metro quadrado, em sua maioria composta por desenhos sugestivos de movimento, que levaram à Unesco, em 1991, a tombar a Serra da Capivara como Patrimônio Mundial da Humanidade – o que chamou a atenção do mundo para esse patrimônio cultural e, caso haja apoio governamental, poderá levar a região a um significativo desenvolvimento sustentável por meio do Turismo arqueológico.
Depois de visitar o Museu do Homem Americano, não há como não ter o desejo de ir a campo conhecer a Serra da Capivara. E para os que não podem, por algum motivo, fazer a visita ao vivo, resta a opção de usar os recursos tecnológicos do museu para desbravar a serra de forma virtual. E para os que se interessam por arqueologia, é possível também acompanhar vitualmente as etapas de uma escavação.
Notas
- 1 Esta não é a única hipótese que admite a chegada do homem à América antes do período indicado pela teoria de Clovis, mas o assunto é complexo, extenso e excede o objetivo deste texto.
- 2 Breve teremos matéria sobre a Cerâmica da Serra da Capivara
- 3 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros museu interessantes do Brasil: Museu da Natureza / Museu do Ipiranga / Museu Casa de Portinari / Instituto Ricardo Brennand / Museu da Gente Sergipana / Museu do Amanhã / Instituto Pretos Novos
Museu do Homem Americano – São Raimundo Nonato – Serra da Capivara – Piauí- Brasil – América do Sul
Fotos
- Sylvia Leite
Referências
- Site da Fundação Museu do Homem Americano
- Turismo Arqueológico - Livro escrito por Elizabete Buco e editado pela Fundação Museu do Homem Americano
- Episódio 44 do programa Conhecendo Museus
Que museu fantástico, Sylvinha! Vale super a pena vencer os muitos quilômetros que nos separam para conhecê-lo!
Vale sim. São muitos quilômetros e algumas limitações porque só tem voo pra lá a partir de Recife e apenas duas vezes por semana. Mas o Museu do Homem Americano é lindo, o Museu da Natureza também e a Serra da Capivara nem se fala!
Acabei de chegar de uma fascinante visita ao Parque da Serrra da Capivara e aos seus museus. Mesmo estando com a memória fresquinha, Sylva aprofunda meus conhecimentos e me entrega uma síntese do conjunto.
Bom saber que gostou da matéria, do Museu do Homem Americano e da Serra da Capivara.
Sempre, muito bom ler!
Assim, vamos tomando conhecimento , aprendendo mais , entendendo a caminhada que estamos fazendo , num constante movimentar , ligados aos nossos antepassados….
Gratidão!!
Eu que agradeço, Regina, pelo comentário generoso. Bom saber que é uma leitora assídua.
Vou ali ao Google ver onde fica a Serra da Capivara (delícia de nome) e já volto…
Fica um pouco longe, mas parece-me um lugar muito interessante, daqueles onde me esqueceria das horas. África, sempre a África, a mostrar que somos mais família do que pensamos
Pois é, Ruthia. Somos mais família do que prensamos, por isso não fazem sentido as guerras, e o Museu do Homem Americano tem uma versão brasileira dessa história que antecipa em séculos o deslocamento humano da África para as Américas.