Ribeira: calma, poesia e memória na Baía de Todos os Santos

Tempo de Leitura: 7 minutos

Atualizado em 07/02/2024 por Sylvia Leite

Orla da Ribeira - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA Quer passear em um lugar tranquilo e bucólico, em frente a uma baía de águas calmas com dezenas de barcos ancorados? Vá à Ribeira, na Cidade Baixa, em Salvador. Agora se além de admirar a paisagem você quiser saborear as especificidades do lugar – experimentando ou tentando imaginar o que acontece, ou já aconteceu, em cada calçada, esquina ou banco de praça – antes de ir conheça um pouquinho de sua história.

Para começar, saiba que a sorveteria que lhe ajudará a enfrentar o calor baiano está ali desde 1931, mas no início os sorvetes eram fabricados e servidos dentro de uma pizzaria. O italiano Mario Tosto, dono do negócio, seguia a tradição dos restaurantes de sua terra natal de presentear os clientes com sorvetes feitos na própria casa. Atento aos costumes locais, ele começou a adaptar a receita italiana às frutas tropicais que encontrava nas feiras e o resultado dessa mistura foi tão bem aceito que tomou o lugar da pizza.

Sorveteria da Ribeira - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIANesses mais de 80 anos, a fama do sorvete da Ribeira só fez crescer. A marca ganhou prêmios e seus mais de 60 sabores passaram a fazer parte das lembranças dos turistas que visitam Salvador. O atual proprietário é baiano da Cidade Baixa e resolveu adquirir o negócio para realizar um sonho de criança.

A Ribeira de inúmeras facetas

Embora seja a grande estrela do bairro, o sorvete sempre dividiu espaço com outros atrativos culinários como os pastéis de inúmeros sabores, acarajés e até batidas. Por sua tranquilidade e poesia, a Ribeira também ficou conhecida como o melhor lugar daBarco na Baía de Todos os Santos - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA cidade para namorar. Segundo uma lenda contada por frequentadores antigos, uma árvore é testemunha dessa preferencia, pois de tanto os casais se beijarem apoiados em seu troco, ela ficou levemente inclinada.

A atmosfera poética, os pastéis, as batidas fizeram da Ribeira um bairro boêmio que já foi frequentado por muitos artistas. Seu auge passou, mas o bairro conseguiu manter algumas características como a calmaria, que faz com que seus moradores ainda coloquem cadeiras na calçada para conversar e admirar a paisagem.

Desde o início, a Ribeira teve também uma vocação náutica. Ali nasceram, ainda no século 19, os quatro principais clubes de regata da Bahia: Itapagipe, Vitória, São Salvador e Santa Cruz. Em dia de competição, o bairro ficava lotado e as disputas eram tão ou mais concorridas que os jogos de futebol. As regatas resistem até hoje, embora não mobilizem mais os soteropolitanos como nos velhos tempos.

A impressão que dá, ao revolver suas histórias e lendas, é que a Ribeira já teve de tudo, cada coisa em seu Árvore entortada pelos namorados - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA período, e algumas até simultaneamente. Houve época em que abrigou famílias ricas – como testemunham seus antigos casarões – inclusive a do artista plástico Mário Cravo, que vivia ali quando ele nasceu. Em outro momento, e quem sabe também na mesma época, foi palco de grandes apostas no jogo de Capoeira. Talvez tenha sido isso que inspirou Gilberto Gil a criar o personagem João da canção “Domingo no parque”, que em um certo domingo deixa de ir à Ribeira, onde jogava capoeira, para namorar.

…A semana passada / No fim da semana / João resolveu não brigar / No domingo de tarde / Saiu apressado / E não foi prá Ribeira jogar /Capoeira!
Não foi prá lá /Pra Ribeira, foi namorar…

As próximas estrofes nos informam que, apesar de a Ribeira também já ter sido um dos cenários preferidos pelos namorados, João falta ao jogo de capoeira para ir namorar em um bairro distante, a Boca do Rio.

Baiana fazendo Acarajé - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA A Ribeira foi cantada em prosa, verso e imagens por quase todos os artistas baianos, muitas vezes figurando como sinônimo de Cidade Baixa, como no caso da canção “Qual é, baiana?”, de Caetano Veloso.

Essa menina é só de brincadeira / Só dá bandeira, só dá bandeira / Seja na Amaralina ou na Ribeira / Ela só dá bandeira, /Ela só dá bandeira…

Arredores repletos de história

A Ribeira fica na Enseada dos Tainheiros que é uma espécie de baía dentro da Baía de Todos os Santos. O bairro pertence à Península de Itapagipe – local de identidade tão forte que alguns de seus moradores, especialmente os mais antigos, chegam a não se considerar soteroplitanos – como são todos aqueles que nascem em Salvador – e sim itapagipanos (ou itapagipenses). TalvezObras Sociais Irmã Dulce - Foto Tatiana Azeviche - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA por isso seja tão difícil falar da Ribeira sem lembrar dos seus arredores.

A península é uma antiga ilha que foi se juntando ao continente. Seus primeiros habitantes eram Tubinambás e foi do idioma dessa tribo que veio a palavra Itapé Jype, transformada depois em Itapagipe que significa “o caminho de pedra dentro da água”. Com a chegada dos portugueses, o lugar foi sendo ocupado por pescadores e artesãos.

Ao longo das décadas, a região acumulou muitas histórias. É em Itapagipe, no bairro de Roma, que encontram-se as Obras Sociais Imã Dulce (OSID) criadas pela freira brasileira que ganhou fama mundial por seus trabalhos filantrópicos e acabou sendo chamada de “O anjo bom do Brasil”.

Garrafas de guaraná Fratelli Vita - Foto site Refrigerante.top - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA O trabalho nasceu em 1949 quando Irmã Dulce alojou 70 doentes, que não tinham para onde ir, em um galinheiro situado no convento de Santo Antônio. Hoje, a entidade possui 21 núcleos assistenciais nas áreas de Saúde, Assistência Social, Ensino em Saúde e Pesquisa científica. É um dos maiores complexos de saúde do país vinculados exclusivamente ao SUS e realiza mais de 3,5 milhões de atendimentos por ano.

A mesma região já abrigou um pólo industrial que produzia de chocolates a cristais. Quem tem mais de 50 anos deve lembrar que, na década de 1970, a Brahma passou a ter dois tipos de guaraná: o claro e o escuro. O escuro era produzido com a receita do guaraná Fratelli Vita, cuja fábrica, instalada no bairro de Roma, tinha sido recém adquirida de uma família italiana. Enquanto pertenceu aos Vita, o refrigerante, que na ápoca se chamava ‘gazosa’, era comercializado em vasilhames especiais produzidos na própria empresa, que possuía também uma fábrica de cristais. Eram garrafas tão bonitas que passaram a ser reutilizadas por muitas famílias em funções domésticas como guardar água na geladeira.Mapa da Baía de Todos os Santos - Imagem de André Koehne em Wikimedia - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

O período de florescimento da indústria atraiu trabalhadores de toda parte que vinham em busca de oportunidades nas fábricas e deixou como uma de suas heranças a favela sobre palafitas, hoje saneada, cantada por Herbert Vianna, dos Paralamas do Sucesso, na Música Alagados.

Todo dia,
O sol da manhã vem lhes desafiar
Traz do sonho pro mundo
Quem já não o queria
Palafitas, trapiches, farrapos
Filhos da mesma agonia..

Forte de Nossa Senhora de Mont Serrat - Foto joquerollo - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA Do outro lado da enseada, encontra-se o Subúrbio Ferroviário de Salvador, chamado assim porque seus bairros são atravessados pela linha férrea que transportava os produtos industriais. O trem também levava passageiros e, nos fins de semana, virava programa das famílias de baixa renda que residiam na península.

É também do outro lado que fica um dos primeiros poços de petróleo perfurados no Brasil, antes mesmo da existência da Petrobrás. O poço foi batizado com o nome do escritor Monteiro Lobato e ali nasceu um dos bairros da península, hoje conhecido somente como Lobato.

Cada uma dessas histórias representa apenas um pecinha no quebra-cabeças de Itapagipe. A península tem museus, igrejas e até um forte, o de Nossa Senhora de Monte Serrat, que tornou-se um dos cartões postais da cidade. Tem ainda um hidroporto onde, décadas atrás, pousavam hidroaviões que protegiam a enseada e eram a diversão de muitas famílias nos fins de semana.

Igreja do Bomfim - Foto Matti Blume - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA Mas o vizinho mais famoso é, sem dúvida o que abriga a Igreja do Bonfim e a festa de largo considerada como Patrimônio Imaterial do Brasil. A festa acontece na quinta-feira que antecede o segundo domingo depois do Dia de Reis. No início do dia, centenas de baianas vestidas a caráter saem em cortejo da Igreja da Conceição da Praia em direção à Igreja Nosso Senhor do Bonfim onde 200 delas realizam o ritual de lavagem das escadarias. Depois de encerrado o rito religioso, que é realizado pelos terreiros de candomblé, começa a parte profana das comemorações com música, dança, bebida e comidas típicas. No domingo, é a vez dos católicos fazerem a sua procissão.

A segunda-feira gorda da Ribeira

Depois de quatro dias de festa no Bonfim, é na Ribeira que o ciclo se encerra com adeptos das duas religiões comendo juntos o tradicional cozido da segunda-feira gorda.

Segundo historiadores, a festa começou porque, na segunda depois da festa do Bonfim, sempre havia gente perambulando pelos bairros vizinhos e tentando estender os festejos por mais um dia. Com o tempo, a perambulação passou a se concentrar na Ribeira. Aí vieram os barraqueiros e surgiu a tradição do cozido.

Hoje em dia a Segunda-feira gorda é considerada uma festa de largo e integra o calendário turístico da prefeitura de Salvador.1

Notas

Ribeira – Enseada dos Tainheiros – Península de Itapagipe – Salvador – Bahia – Brasil – América do Sul

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18 Comentários
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Maria Helena
5 anos atrás

Maravilhoso. Muitas recordações e lembranças. Tudo bem formulado e de bom gosto. Compartilhei no facebook. Valeu Sylvia.

Unknown
5 anos atrás

Maravilha de matéria! Completa, super especial! Obrigada!

Mauro Bastos
5 anos atrás

Muito bom. Deu vontade de conhecer.

Unknown
5 anos atrás

Excelente.
Fui em Salvador sem sair de casa.
Fratelli Vita. Lembrei da Grapetti…
Saudade.

Sidney Menezes
5 anos atrás

Ah saudades da Fratelli . Legal Silvinha. É tão pertinho da nossa terrinha.

Anônimo
Anônimo
5 anos atrás

Delicioso texto. Passei muitas horas de minha vida na Ribeira nos últimos anos da década de 70 e início de 80. Saudades do mar, do céu, da magia da Bahia e do Hospital de Irmã Dulce onde fiz o internato do sexto ano de Medicina. Obrigado Sylvia por essa gostosa viagem no tempo. Augusta Leite Campos

Regina Célia de Oliveira
4 anos atrás

Nossa! Que maravilha de história! Obrigada Sylvia!

Cintia Grininger
3 anos atrás

Estive em Salvador há vários anos e tive a chance de passear pela Ribeira, mas sem saber o tanto de história do lugar. Não me lembrava da história do guaraná claro e escuro (ainda não cheguei nos 50 kk) mas achei lindas as garrafas.

normeide de carvalho
normeide de carvalho
3 anos atrás

Claro que eu amei o seu texto sobre a Ribeira, um lugar de calma, poesia e memoria. Aproveitei para fazer um link para um texto meu que fala sobre passeios gratuitos em Salvador. Aproveite para conferir: https://viajecomnorma.com.br/passeios-em-salvador-gratuitos-imperdiveis/