Atualizado em 29/04/2024 por Sylvia Leite
Não importa a religião da pessoa, nem mesmo se ela tem algum tipo de fé: quem vai a Istambul, e se permite admirar suas riquezas arquitetônicas, dificilmente resiste à beleza das mesquitas – muitas delas construídas originalmente como igrejas ortodoxas. E o impacto pode ser ainda mais forte para os que visitam, a poucos quarteirões do centro histórico, uma construção menor que as outras e também muito mais simples, que parece perdida no espaço e no tempo. A Pequena Sofia – ou Küçük Ayasofya Camii – concilia qualidades estéticas com uma atmosfera de calma e tranquilidade que nos convida à introspecção.
Olhando a mesquita de fora, com suas formas retas e paredes austeras, é difícil imaginar a sofisticação que a construção abriga e a sensação de paz e serenidade que reina por lá, tanto nas áreas internas como nas externas.
Deslocada do coração da cidade, onde estão concentradas as construções mais famosas de Istambul, a Pequena Sofia não é muito procurada por turistas até porque não é fácil de ser encontrada. Talvez por isso, ou quem sabe por razões imponderáveis, mantém um silêncio acolhedor que parece subir pelos pilares e ocupar os arcos que sustentam sua cúpula octogonal.
Pequena Santa Sofia: de igreja a mesquita
A atual mesquita nasceu como igreja cristã ortodoxa, na época em que Istambul ainda se chamava Constantinopla. Por ter um projeto semelhante à da famosa Santa Sofia, e ser anterior a ela em alguns anos, acredita-se que tenha sido erguida como uma espécie de ensaio para a construção de sua semelhante maior e mais famosa. Mas isso nunca foi confirmado. Acredita-se, ainda, que os arquitetos da pequena foram os mesmos da grande – Isidoro de Miletus e Antêmio de Trales. A única certeza que se tem é de que as duas obras foram ordenadas pelo imperador bizantino Justiniano I, que governou entre 527 e 565.
A igreja maior, construída para ser a catedral de Constantinopla, foi chamada de Sofia não em homenagem à santa homônima, como pode parecer à primeira vista, mas para exaltar a ciência divina porque Sofia é uma transliteração para o latim da palavra grega sabedoria. Já a menor, passou a chamar-se assim somente quando tornou-se mesquita, pois seu nome original era Igreja de São Sérgio e São Baco.
Essa denominação, que se manteve por mais de nove séculos, homenageia dois oficiais de alta patente do exército romano, santificados pela Igreja. Eles teriam sido torturados e mortos pelos outros soldados quando foi descoberta sua conversão ao Cristianismo1.
Além da enorme popularidade dos dois santos na época da construção da igreja, uma espécie de lenda teria justificado a escolha de Justiniano. Conta-se que, anos antes, ele tinha sido acusado de trair seu tio, o então imperador Justin I, e quase foi morto por isso. Às vésperas de sua execução, no entanto, os dois santos teriam aparecido ao imperador e revelado a inocência do sobrinho. Por causa dessa ajuda, Justiniano teria não apenas sobrevivido, mas herdado o trono tempos depois.2
A transformação da igreja em mesquita ocorreu pelo menos 50 anos depois da “Tomada de Constantinopla pelos Turcos” e cerca de 1000 anos depois de sua construção. A ordem para a reforma teria sido dada por Hüseyin Ağa, que era o Eunuco Chefe do Palácio Topkapı, e consistiu, entre outras coisas, na construção de uma fonte para ablução, ou purificação dos fiéis, e de uma madrassa (ou madraça) – tipo de escola muçulmana presente em praticamente todas as mesquitas mais antigas, dedicada ao ensino do Islamismo e de conhecimentos gerais.
A estrutura do prédio principal permanece a mesma do período bizantino, acrescida de ornamentos como caligrafias religiosas, e dos elementos básicos que não podem faltar a uma mesquita. Entre esses elementos estão um mihrab – nicho de forma semicircular voltado para Meca, assinalando a direção para qual os fiéis devem se posicionar enquanto fazem suas orações – e um mimbar – espécie de pulpito com degraus, aonde o Iman se coloca às sextas-feiras para fazer a leitura do Alcorão. E foi construido também um minarete,que é a torre a partir da qual o muezim chama os fiéis para as cinco orações do dia.
Do lado de fora, há, ainda, um cemitério islâmico, onde está enterrado o responsável pela transformação da igreja em mesquita, Hüseyin Ağa.
A mescla das duas culturas compõe um conjunto visualmente harmônico e integrado, onde nem sempre é fácil identificar o que pertence a uma ou a outra. O que surpreende é encontrar, dentro da mesquita, uma inscrição em grego antigo com louvores ao imperador Justiniano, a sua esposa Theodora, e a São Sérgio – um dos santos a quem a igreja foi devotada.
Paz na antiga madrassa
A calma que experimentamos dentro e fora da mesquita, chega a um espaço lateral, onde está o prédio da madrassa.
Organizadas ao redor de um pátio, as antigas salas de aula funcionam hoje como pequenas oficinas, lojas de artesanato ou livrarias. Ao centro, há ainda uma casa de chá, que é preciso dar sorte para encontrar aberta.
A visita a esse cantinho especial pode durar de 15 minutos, com uma passada rápida pelas varandas, a várias horas, para quem desejar conhecer o lugar em seus detalhes e nuances. Tudo vai depender da disposição de cada um de se entregar às sensações oferecidas pelo local.
O que fazer é que não falta. Seja pela originalidade e variedade dos artigos à venda nas pequenas lojas, incluindo livros de todo tipo, seja pelo espetáculo oferecido por um ou outro artesão que trabalha de portas abertas, permitindo algum contato do visitante com o ambiente, o ritmo de produção, a técnica e os instrumentos.
E quem mergulha nessa atmosfera de paz, também pode ter calma para abrir um livro e se perder em suas páginas ou, simplesmente, usufruir do lugar em estado de contemplação.3
Notas
- 1 Segundo o historiador John Boswell, professor na Universidade de Yale, a relação entre os santos Sérgio e Baco pode ter uma dimensão romântica. Essa hipótese levou à veneração dos dois santos pela comunidade gay cristã e ao uso de sua imagem em eventos LGBT.
- 2 Outra versão conta que Justiniano e seu tio Justin tinham sido acusados de trair o imperador Anastácio I e os dois santos os teriam ajudado a obter o perdão do imperador.
- 3 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares especiais da Turquia: Santa Sofia / Hipódromo de Constantinopla / Konya / Ikonium / Pérgamo / Troia / Éfeso / Capadócia / Cisterna da Basílica / Pamukkale
Pequena Santa Sofia – Istambul – Turquia – Europa
Fotos
- (1 e 3) Bollweevil - CC BY-SA 3.0
- (2, 5, 6 e 7) Dosseman - Trabalho próprio - CC BY-SA 4.0
- (4, 8 e 9) Sylvia Leite
Referências
Fantástico Silvinha.
Valeu, Sidney. bj
Bárbaro Sylvia. Obrigada por nos permitir revisitar na memória este lindo lugar.
Eu que agradeço, mas queria tanto saber quem escreve cada mensagem! rsrs Da próxima vez deixe seu nome, ok?
O dia que for lá vou procurar por ela
Acompanho suas matérias através do jornal digital clicks,continue postando sempre.
Clickus
Que bom, Eduardo. Seja bem-vindo. Toda quinta tem matéria nova no blog. Caso queira, pode se inscrever aqui no blog para receber por e-mail ou nos passar seu número de celular para receber por whatsapp. Nosso e-mail é [email protected]
Valeu!
Faça isso. Não vai se arrepender.
Fiquei encantada com sua descrição desse espaço que convida à contemplação e à paz.
Bjs,
Val Cantanhede
Que bom, Val.É ótimo saber que acompanha o blog semanalmente. bjs
Sylvinha, incrível como Istambul tem surpresas como esta, espalhadas por toda a cidade. Vale voltar algumas vezes, para ver tudo de interessante!
A Pequena Sofia é realmente uma grande surpresa. Eu fui por indicação de uma amiga, mas ainda assim tive dificuldade de encontrar e me surpreendi porque é bem mais interessante do que eu imaginava. Sem contar com a atmosfera do lugar, que não dá mais vontade de ir embora.