Atualizado em 07/07/2024 por Sylvia Leite
A frase do antropólogo Darcy Ribeiro sobre a necessidade de construir mais escolas para que o país precisasse de menos presídios1 parece ecoar nos 240 mil m² do Parque da Juventude – local que antes abrigava um presídio e hoje está ocupado por duas ETECs – escolas técnicas -, uma biblioteca e vários equipamentos de esporte e lazer. A vitória do conhecimento sobre o cárcere nos parece ainda maior por ter sido nessa antiga cadeia que se deu uma sangrenta operação policial com saldo oficial de 111 detentos mortos2: o internacionalmente famoso ‘massacre do Carandiru‘.
Para que surgisse o Parque da Juventude Dom Paulo Evaristo Arns – batizado assim em homenagem ao cardeal defensor dos Direitos Humanos -, foi preciso demolir grande parte das instalações da Casa de Detenção – nome oficial do presídio do Carandiru – inclusive o pavilhão 9, onde ocorreu a chacina. Mas foram preservados os pavilhões 4 e 7 que depois de uma reforma passaram a abrigar as escolas técnicas. Permanecem, ainda, no local, os antigos muros e a passarela de vigia – mantidos como marca histórica -, mas a paisagem está inteiramente ressignificada.
O Parque da Juventude e suas escolas
Os vestígios do antigo presídio só estão aparentes na arquitetura, assim mesmo em uma pequena parte. O que se vê em quase toda a extensão do parque são estudantes, desportistas, leitores ou até pessoas que vão ali apenas para passear, em pleno uso dos respectivos espaços, ou seja: quadras, pistas, trilhas, jardins, biblioteca e escolas.
Uma dessas escolas, é voltada para as artes e oferece nove cursos – incluindo teatro, canto, regência, dança e paisagismo. Nos 13 primeiros anos de atividade, a ETEC das Artes , como é chamada, conseguiu formar mais de sete mil alunos e, em 2018, foi convidada a participar da famosa Virada Cultural de São Paulo com espetáculos e produções de eventos. A outra ETEC leva o nome do parque e oferece cursos de Administração, Biblioteconomia, Enfermagem, Marketing e Museologia.
Os alunos das duas escolas têm um privilégio alcançado por poucos no Brasil: são usuários e vizinhos da premiada Biblioteca de São Paulo (BSB) localizada no mesmo parque, que, entre outras conquistas, foi finalista do prêmio International Excellence Awards 2018, na categoria Melhor Biblioteca do Ano, entregue durante a Feira do Livro de Londres.
Uma biblioteca viva no lugar das celas
“Antes um local de aprisionamento. Hoje um local de liberdade”, diz o texto de apresentação da BSB no site da entidade. A liberdade está na forma e no regulamento. A biblioteca não tem paredes internas: o segundo piso foi estruturado em forma de mezanino. Os livros dividem espaço com outras mídias e, como em muitas bibliotecas contemporâneas, o silêncio não é exigido. Os usuários que precisam de maior concentração, utilizam o andar superior, que é mais protegido.
Em contraste com a prisão que funcionou no local, a biblioteca do Parque da Juventude tem uma proposta de acolhimento e integração, o que começa pela organização do espaço. Ao lado das tradicionais mesas de leitura, há tendas que abrigam eventos temáticos e também servem, no dia a dia, para que os usuários estabeleçam trocas ou simplesmente se acomodem de maneira menos formal e tenham um contato mais confortável com os livros.
Aparentemente distante da leitura, por conter um grande número de computadores, e por não cultivar o silêncio, a Biblioteca de São Paulo instalada no Parque da Juventude mantém três clubes de leitura – um presencial e dois online, além de programas que buscam fazer a ponte entre seus frequentadores e os livros. A BSB é gerida pela Associação Paulista de Bibliotecas e Leitura – SP Leituras.
Educação, Cultura e Circo
A ressignificação do local é reforçada pelas cores e pela alegria de um empreendimento circense composto por três lonas: uma é usada para espetáculos, outra para ensaios, oficinas e encontros, e a terceira abriga uma exposição sobre o imaginário do circo. São doze áreas temáticas que revelam desafios, origem e história das mais diversas artes e modalidades circenses como trapézio, malabarismo, equilibrismo, doma e magia, além de personagens como saltimbancos e bufões – esses últimos depois transformados em palhaços.
Tudo isso contado por meio de bonecos de madeira e papel machê3, movimentados por engrenagens também artesanais, que podem e devem ser manipulados pelo público. Um bom exemplo é o trapézio acionado pelos pedais de uma bicicleta. Pena que só as crianças podem pedalar. Para os adultos resta um botãozinho muito menos lúdico.
O Mundo do Circo é uma realização do Governo do Estado, com gestão e produção da organização cultural Amigos da Arte. Embora não seja uma estrutura permanente no Parque da Juventude, tem um contrato de longa permanência que pode ser repetidamente renovado.
A memória do presídio como exemplo indesejável
Como a intenção de ressignificar o espaço no Parque da Juventude não incluía o apagamento histórico, no prédio de uma das ETECs há um espaço de memória. Nele está guardada tanto a história da instituição prisional – nascida com altos propósitos e só depois transformada em referência de desrespeito aos direitos humanos – como a de seus usuários que, como qualquer um de nós, tinham trajetórias pessoais, sonhos e talentos.
Em uma pequena sala da ETEC das Artes, como uma espécie de embrião de um futuro museu, foi instalada a exposição “Sobre Vivências – os últimos anos do Carandiru”. A mostra reúne desde objetos usados pelos presos em seu dia a dia – como panelas e pratos – até facas apreendidas e artefatos especiais produzidos a partir dos raros recursos de que dispunham. Caso das enormes tranças feitas com retalhos de tecidos, algumas vezes reforçadas por fios metálicos, conhecidas como ‘teresas’3 e usadas nos presídios tanto para transportar objetos entre as celas como para vencer alturas em casos de fuga. Há, ainda, relatos históricos, depoimentos de detentos e também do médico Drausio Varella, que realizou trabalho voluntário no Carandiru.
Ao lermos a resumida história da instituição, descobrimos que suas instalações foram construídas pelo Escritório Técnico Ramos de Azevedo, o mais conceituado da época. Nos surpreendemos ao saber que a Penitenciária do Estado de São Paulo – como foi inicialmente chamada – surgiu com a pretensão de se tornar modelo e atraiu a atenção de profissionais e estudantes do mundo inteiro.
Entre os visitantes mais famosos estavam o antropólogo belga Claude Lévi-Strauss e o escritor austríaco Stefan Zweig que em um de seus livros afirmou ter se impressionado com a higiene do complexo penitenciário. Naqueles tempos, a limpeza era feita pelos próprios presidiários, que assumiam também os trabalhos da cozinha, e até da enfermagem sob orientação de médicos e enfermeiros. Faziam, ainda o seu próprio pão. Nas horas vagas, podiam frequentar a escola formal do presídio, ter aulas de artes plásticas e frequentar a capela. Ainda segundo o texto, havia poucos funcionários em relação à população carcerária e não ocorriam rebeliões.
O que determinou a derrocada desse sistema modelo? A exposição não responde. Para se ter ideia do nível de deterioração, pouco antes do fechamento da instituição, quando já havia em suas instalações mais de nove mil presos, um funcionário teria afirmado que não se podia considerar o Carandiru como um presídio com superpopulação porque lá havia espaço para todos os detentos dormirem deitados, o que não ocorria em outras instituições, onde era preciso fazer revezamento.
Não se sabe se como resquício daquela época áurea, ou se apenas pelo talento pessoal de alguns detentos, o presídio do Carandiru acabou reunindo um razoável acervo de artes plásticas e artesanato que representa boa parte do conteúdo da exposição. São esculturas de madeira representando animais, peças confeccionadas com plástico de garrafas pet e pinturas sobre as portas das celas.
O visitante vai se deparar, ainda, com a reconstituição cênica de alguns ambientes, como celas e banheiros, feitas especialmente para a exposição, com o objetivo de aproximar o visitante do universo do Carandiru em seus últimos anos de funcionamento.
Em uma das paredes, sobre uma superfície preta, estão grafados em branco os nomes dos 111 presos assassinados durante a famosa Chacina do Carandiru. A placa marca a passagem do trigésimo aniversário do massacre, ocorrido em 2 de outubro de 1992. No alto da placa, lê-se a inscrição: “Inventário Carandiru: 30 anos do Massacre – Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”.3
Notas
- 1 Íntegra da frase: Se os governantes não construírem esclas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios
- 2 Segundo presos ouvidos por veículos de imprensa, o número real de mortos seria pelo menos 250
- 3 Acredita-se que o nome 'teresa' venha de Santa Teresa D´'Avila. É que segundo um conto cristão do século 14, Santa Tereza teria ensinado San Juan de la Cruz - que estava preso pela congregação, vítima de intolerância religiosa - a confeccionar esse tipo de corda para escapar do cárcere onde já estava há vários meses e sofria constantes torturas. Segundo essa versão, os presos, antigamente, ao usarem a corda, invocavam o nome da santa, hábito que pode ter se perdido com o tempo
- 4 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares de São Paulo que não se pode deixar de conhecer: Casa de Dona Yayá / Vila Itororó / Museu das Favelas / Museu das Culturas Indígenas / Teatro Oficina
Parque da Liberdade – Santana – São Paulo – São Paulo – Brasil – América do Sul
Fotos
- Sylvia Leite
Participação Especial
- Margareth Amin
Agradecimentos
- Pedro Henrique - educador da exposição Sobre Vivencias
- Tainá Domingues - auxiliar de leitura da Biblioteca de São Paulo
Referências
- Site do Governo de São Paulo
- Site da Biblioteca de São Paulo
Conteúdo interessantíssimo que deveria fazer parte dos passeios escolares!
A frase é perfeita : se os governantes não investirem em educação, faltará dinheiro pra construir presídios!
O modelo de presídios que temos no Brasil não recuperam nem reintegram a população carcerária na sociedade., muito pelo contrário! Por isso a importância da visitação e o conhecimento histórico por crianças e adolescentes!
Parabéns l, ótima matéria!!!
Verdade, Maga, o Parque da Juventude é mesmo um exemplo que deve ser divulgado. Obrigada pelo comentário.
Os nossos governantes ainda não descobriram que a educação é que vai resolver todos os problemas do nosso país e do mundo. A educação é a base de tudo e esse exemplo deve ser repetido e divulgado cada vez mais.
Com certeza, Soninha. Os exemplos estão aí. São inúmeros. O Parque da Juventude é apenas um deles.
Parabéns pelo relato e destacar a importância desse espaço e da educação e arte como forma de transformação cidadã da juventude. A Lritura nos reporta ao espaço e desperta o Interesse em conhecer e torcer para que ocorram outras transformação de projetos que podem ser fortalecidos qdo a prioridade for a educação no país! Parabéns pelo excelente trabalho, Sylvia!
Obrigada, Glicia. O Parque da Juventude é realmente um exemplo.