Casa de Dona Yayá: lugar de memória das questões de gênero e de saúde mental

Tempo de Leitura: 6 minutos

Atualizado em 26/01/2024 por Sylvia Leite

Vista geral da Casa de Dona Yaya - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAAs versões sobre a vida de Sebastiana de Mello Freire –  personagem que empresta seu apelido à Casa de Dona Yayá – são bastante divergentes. Para alguns, ela foi uma moça tímida, caseira e religiosa que, apesar de não ter se casado, vivenciou a maternidade ao criar duas meninas – sua afilhada e a filha de uma amiga. Para outros, era uma mulher à frente de seu tempo: viajou com amigas para a Europa, dedicava-se à fotografia e teria recusado vários pedidos de casamento, o que não condizia com os costumes da época.

Há, no entanto, duas informações que se repetem em todos os relatos: Dona Yayá teve episódios de desequilíbrio mental e viveu, por 40 anos, reclusa em uma espécie de sanatório particular instalado na famosa casa, localizada na região do Bixiga, em São Paulo. Esse isolamento involuntário e as versões que atribuem a ela um comportamento dissonante com a sociedade a que pertencia, fizeram com que o imóvel onde foi enclausurada ganhasse a condição de ‘lugar de memória das questões de gênero e saúde mental’.1

Dona Yayá nasceu no final do século 19 (1887), em uma família aristocrática de Mogi das Cruzes, interior de São Paulo, filha de Janela pela qual Dona Yaya se comunicava - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIA Manuel de Almeida Mello Freire – um rico empresário, fazendeiro e político. Mas apesar dessa condição privilegiada, sua vida foi uma sucessão de tragédias e sofrimentos.

Ainda criança, Sebastiana perdeu duas irmãs – uma afixiada e outra de tétano. Os pais morreram quando ela tinha apenas 14 anos, em um intervalo de poucos dias. O único irmão que restou cometeu suicídio durante uma viagem de navio, quatro anos depois. Nessa época, em cumprimento ao que havia sido determinado pelo pai em testamento, ela vivia sob a tutela de Manoel Joaquim de Albuquerque Lins, um político liberal que presidiu São Paulo entre 1908 e 1912.

Aos 32 anos, Dona Yayá começou a apresentar sinais de desequilíbrio mental e foi internada duas vezes em hospitais psiquiátricos, assistida por um dos mais famosos especialistas da época, Francisco Franco da Rocha. Na segunda internação, permaneceu cerca de um ano até que, por recomendação médica, o tratamento continuou em domicílio. Foi aí que ocorreu a mudança para a casa do Bixiga – na época, uma região de chácaras, afastada do centro da cidade. Nessa nova residência – a antiga era um casarão localizado no centro de São Paulo – ela viveu em companhia de sua madrinha e tutora Nhá Caetana, das duas amigas Elisa Grant e Maria Georgina, das duas meninas que criou e de outros agregados. Solario na Casa de Dona Yaya - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIA

A casa foi adaptada para recebê-la. Dona Yayá era mantida em isolamento, sem poder chegar sequer na varanda. Usava uma pequena janela instalada da parede de seu quarto, para receber comida e se comunicar com as outras moradoras ou com as amigas que a visitavam.

Como a doença persistia, a casa, inicialmente alugada, foi comprada pelos curadores e passou por reformas propostas pelo famoso psiquiatra Juliano Moreira. Entre as mudanças estavam a troca do assoalho de madeira por um piso frio, paredes com cores neutras e cantos arredondados, portas e janelas reforçadas com fechaduras posicionadas do lado de fora.

Numa segunda reforma, já em 1951, a varanda da casa foi fechada para permitir que Dona Yayá circulasse em uma área maior e a construção ganhou um solário em forma de T para que ela fosse estimulada a tomar sol.

Especulações e lendas urbanas

Documentos de interdição e intermação e exemplares do Jornal O Parafuso - Foto de Sylvia Leite- BLOG LUGARES DE MEMORIADona Yayá era herdeira de uma enorme fortuna que incluía desde dinheiro, jóias e ações, até fazendas, terrenos e imóveis de aluguel. Com o surgimento da doença, ela foi interditada e seus bens passaram a ser geridos por curadores, o que causou comoção na sociedade e provocou inúmeras especulações por parte da imprensa.

O jornal O Parafuso, por exemplo, publicou vários artigos questionando a doença e levantando a suspeita de que curadores e pessoas próximas a Dona Yayá tivessem interesse em sua interdição para se apropriar da herança.

Na vizinhança, ela passou a ser conhecida como a ‘Louca do Bixiga’ e até hoje circula na região uma lenda urbana segundo a qual à noite é possível ouvir seus gritos ou vê-la em uma das poucas janelas da casa, por vezes embalando um bebê. Em função dessas crenças, a Casa de Dona Yayá foi incluída em diversos roteiros de lugaraes mal assombrados de São Paulo.

A força da personagem

Boneca gigante que representa Dona Yayá - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAAssim como a casa, que se tornou ‘lugar de memória das questões de gênero e saúde mental’, Yayá também foi associada a esses temas e sua imagem tem sido usada por militantes, artistas e outros admiradores como estandarte de suas lutas e expressões.  Somente entre 2004 e 2016, ela inspirou três peças teatrais, uma performance, um espetáculo de dança e um concerto de voz e piano.

Em todos os espetáculos e manifestações, há referências à opressão das mulheres e/ou à forma como as doenças mentais eram vistas e tratadas no início do século 20.

Mas a homenagem maior vem do coletivo feminista União das Mulheres de São Paulo que, em 1999, criou o Bloco da Dona Yayá e todos os anos, na época do carnaval, faz uma ocupação simbólica do imóvel por meio de um cortejo que termina em sua área externa. Uma boneca gigante, semelhante às de Olinda, encabeça o bloco e representa a homenageada.

A história da Casa de Dona Yayá

Pinturas nas paredes da Casa de Dona Yaya - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIANão se sabe ao certo em que momento a Casa de Dona Yayá foi erguida. Até 1888, o imóvel pertencia a José Maria Tulon, provavelmente a pessoa que mandou construí-la. A partir dessa data teve mais dois proprietários antes de ser comprada pela curadoria de Dona Yayá.

O imóvel é considerado um dos últimos remanescentes da época em que o Bixiga consistia em um cinturão de chácaras em torno da região central de São Paulo. Em sua última reforma antes de ser adquirida pelos tutores de Sebastiana, a Casa de Dona Yayá ganhou um estilo eclético, recebeu pinturas neoclássicas e mudou sua aparência de chalé para a de uma casa típica do século 19 – mudanças que foram conservada pelos proprietários seguintes – os tutores de Sebastiana e a Universidade de São Paulo – e se mantêm até hoje.

Depois da morte de Sebastiana de Mello Freire, a Casa de Dona Yayá, assim como todos os seus bens passaram a ser administrados pelo Estado de São Paulo e, em seguida, pela Universidade de São Paulo que instalou no imóvel o seu Centro dePlaca de identificação em frente à Casa de Dona Yaya - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIA Preservação Cultural.

A memória de Dona Yayá está gravada no nome da instituição, no próprio imóvel – que por si só já revela um pouco de sua história – e em uma exposição permanente que resgata as memórias de sua vida e do imóvel.

A Casa de Dona Yayá é tombada, desde 1998, pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo – Condephat – e desde 2003 pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Abiental da Cdade de São Paulo – Conpresp. O lugar  é aberto à visitação gratuita e o Centro de Preservação Cultural, que funciona em seu interior, oferece uma extensa programação com palestras, exposições, apresentações musicais e visitas guiadas à casa. 2

Notas

 

Casa de Yayá – Bela Vista/Bixiga – São Paulo – São Paulo – Brasil – América do Sul

Texto

Fotos

  • Sylvia Leite

Participação especial

  • Martha Virgínia
  • Airton Castanho

Referências

  • Site oficial do Centro de Preservação Cultural Casa de Dona Yayá
  • Livro A Casa de Dona Yayá, editado pela Edusp
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Sonia Pedrosa
2 meses atrás

Que destino o da dona Yayá…tantas fatalidades….e assim acontecia com várias mulheres.

Marlene
Marlene
2 meses atrás

Bom dia,
Paz e bem!
Este blog sempre nos surpreende com matérias interessantes e assuntos desconhecidos.
Já anotei para conhecer esse espaço

Sonale
Sonale
2 meses atrás

Excelente leitura das realidades da saúde mental do passado,tivemos a reforma psiquiátrica,foi muito bom pontuar essas marcas históricas que nos servem de referências para as pesquisas.Parabéns a equipe!

Marcella
Marcella
1 mês atrás

Que interessante! A vida de Sebastiana de Mello Freire, ou Dona Yayá, é envolta em mistério e diversas interpretações. Sua história parece um enigma, com elementos de rebeldia e reclusão. É fascinante como sua casa se tornou um símbolo de questões tão pertinentes.