Museu Nacional: a memória em cinzas

Tempo de Leitura: 6 minutos

Atualizado em 19/02/2022 por Sylvia Leite

ESPECIAL
Logomarca do Museu Nacional - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAEm protesto contra o descaso e em defesa da preservação da memória, o tema desta semana é o Museu Nacional – a instituição que guardou nossa História Natural e outras importantes coleções por mais de 200 anos e agora precisa tornar-se símbolo de nossa resistência.

O incêndio não pode ser esquecidoO museu em chamas - Mário Cury - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

Se as chamas nos levaram grande parte de um acervo com mais de 20 milhões de peças, se já não temos o crânio de Luzia, nem as múmias, nem os dinossauros; se perdemos a Biblioteca Francisca Keller (de Antropologia) construída ao longo de 50 anos e a maior coleção de Egito Antigo da América Latina, precisamos não apenas resgatar a memória do que ardeu nas chamas do descaso, mas manter acesa a memória das próprias chamas, para que não se repitam.

Este é o terceiro museu consumido pelo fogo em menos de uma década no Brasil e ainda temos por aqui cerca deAérea do Museu - Foto de divulgação - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA 3.700 outros que não podem ter a mesma sina.

O Museu Nacional

O Museu Nacional é a mais antiga instituição científica do País. Foi criado por Dom João VI em 1818 e, desde 1946, está incorporado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, que antes se chamava Universidade do Brasil. O prédio incendiado em 2018 fica na quinta da Boa Vista, bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro.

Talvez nos console saber que a Ciência e a Cultura já tiveram outro tratamento por parte dos governantes. Muito do que restou, e também do que se perdeu, foi parar ali por intermédio de Dom Pedro II, último imperador do Brasil, que era considerado um patrono da Ciência e da Educação.

O Meteorito de Bendegó é exemplo disso. A pedra tinha sido achada cerca de cem anos antes em Campo Santo, no sertão da Bahia.O imperador tomou conhecimento de sua existência ao visitar a Academia de Ciências de Paris e criou uma comissão de especialistas para levar o meteorito até o Rio de Janeiro onde acabou se tornando a obra de boas-vindas do museu.Torá do Museu Nacional - Foto de divulgação - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

O prédio do Museu Nacional, como muita gente sabe, era residência da família real até a proclamação da República. Enquanto morou ali, Dom Pedro II constituiu um museu particular que ocupava quatro salas e ficou conhecido como Museu do Imperador ou Gabinete de Curiosidades do Monarca. Os convidados do palácio tinham oportunidade de conhecer as peças guiados pelo próprio imperador.

O acervo teve início com a junção de diferentes coleções herdadas de sua mãe, a Imperatriz Leopoldina: um herbário e os gabinetes de Mineralogia e Numismática.

Paça do Museu Nacional - Foto de divulgação - BLOG LUGARES DE MEMÓRIACom o tempo, foram acrescentadas peças recebidas de visitantes ou trazidas de viagens, entre as quais encontra-se uma Torá tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e considerada um dos dez documentos mais antigos do Judaísmo. O manuscrito hebraico, conhecido como Pergaminhos Ivriim, é composto por nove rolos e deve ter sido escrito entre os séculos 11 e 17.

Também fazia parte do Museu do Imperador, a múmia da cantora Egípcia Sha-Amun-Em-Su, da XII dinastia, que viveu em cerca de 750 a.C. e a cabeça mumificada de um guerreiro da tribo Jívaro, da região do Equador, de tamanho comparável a de um recém-nascido, que teria ficado assim em consequência de uma cerimônia que consistia em reduzir a cabeça do inimigo.

Do Brasil, a coleção incluía, entre outras raridades, um conjunto de três múmias indígenas – um adulto de 25 anos e duas crianças – descobertos em Rio Novo, Minas Gerais.

Peça do Museu Nacional - Foto de divulgação - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAAlém da importância em si, as peças do monarca teriam motivado a construção de uma via férrea para transportá-las, quando veio a República, do Palácio (onde morava Dom Pedro II e onde se localiza hoje o museu incendiado) até o Campo de Santana (primeiro endereço do Museu Nacional). Mas a obra demorou e, quando ficou pronta, houve uma inversão. O Museu Nacional é que foi levado do Campo de Santana para São Cristóvão e se apropriou tanto do Palácio como das peças do Museu do Imperador.

A contribuição de Dom Pedro não se resumiu ao transporte do meteorito e à herança de seu acervo particular possibilitadas pelo fim do Império. Durante seu reinado, o Museu Nacional tornou-se o maior centro de História Natural da América do Sul graças às peças que ele trazia de suas viagens e à modernização que promoveu, com investimentos nas áreas de Antropologia, Paleontologia e Arqueologia.

Porta de vidro do Museu Nacional - Foto de divulgação - BLOG LUGARES DE MEMÓRIADom Pedro II era considerado um patrono das Artes e das Ciências. Tornou-se o primeiro fotógrafo brasileiro ao adquirir, em 1840, uma câmera de daquerrótipo. Foi o criador das bolsas de estudos para brasileiros no exterior. Criou o Instituto Histórico e Geográfico e o Colégio Pedro II e a Imperial Academia de Música e Ópera Nacional . Segundo registros históricos, teria feito, certa vez, a seguinte declaração: “Se não fosse imperador, gostaria de ser um professor. Não conheço tarefa mais nobre do que direcionar as jovens mentes e preparar os homens de amanhã”.

O que fica

Das cinzas, nasce uma consciência nacional de que temos história, temos ciência, temos universidades e de que tudo isso precisa ser preservado.

Aos poucos, surgem notícias mais otimistas. Pelo menos uma parte das coleções científicas que constituem base de pesquisa para os seis programas de pós-graduação foi poupada porque não estava no prédio principal. Alguns laboratórios também escaparam pela mesma razão e outros, que foram atingidos, tiveram vários equipamentos resgatados. Um professor do Departamento de Vertebrados conseguiu retirar do prédio, com o incêndio já iniciado, exemplares de moluscos considerados insubstituíveis. Por tudo isso, os alunos de mestrado e doutorado provavelmente não terão seus trabalhos interrompidos.

A Biblioteca Central, que reúne cerca de 500 mil títulos, entre os quais estão quase 2 mil obras raras, está intacta e, diante da massiva divulgação do incêndio, tornou-se muito mais conhecida. De agora em diante, provavelmente será mais visitada e protegida. Seu endereço é o Horto Botânico.
A Torá de Dom pedro II também escapou das chamas. Tinha sido retirada do prédio antes do incêndio para restauração e, segundo informações divulgadas esta semana, encontra-se na seção de Obras Raras da Biblioteca Central.

Restaram ainda o Meteorito de Bendegó, de quatro bilhões e meio de anos e mais de cinco toneladas, o de Santa Luzia, que pesa quase duas toneladas – ambos compostos em grande parte por ferro e outros menores resgatados por funcionários e pesquisadores. Os dois maiores estavam no centro do fogo e nada sofreram.

Bendegó, coincidentemente, foi achado na região de Canudos, terra símbolo da resistência.1

Notas

Museu Nacional – Quinta da Boa Vista – São Cristóvão – Rio de Janeiro – Brasil – América do Sul

Texto

Fotos

  • (1) Logomarca do museu
  • Mário Cury
  • (3,4,5, 6,7,8 e 9) Divulgação
Compartilhe »
Increva-se
Notificar quando
guest
16 Comentários
Avaliações misturadas ao texto
Ver todos os comentários
Virginia Finzetto
5 anos atrás

Nada fere mais o propósito da cultura de um povo quando ele é aviltado em sua memória, quando esta é tratada com descaso. Que mais essa tragédia nos una em defesa de nossa história e de nossas raízes. Parabéns pela postagem.

Brigitte.oliveira@ yahoo.fr
Brigitte.oliveira@ yahoo.fr
5 anos atrás

Obrigada Silvia por essa grande lição de história sobre o museu,a grandeza de Dom Pedro II e seu valioso legado para o país! Tragédia acarretada pelo descaso que nos deixa com indignação , mágoa e profunda tristeza!

hilda
5 anos atrás

Repetindo…de arrepiar seu texto. Qual político do famigerado Centrao tem um décimo da envergadura de um D.Pedro II?

Anônimo
Anônimo
5 anos atrás

Sylvia a história foi muito bem contada com suas palavras e Dom Pedro II parece-me sempre um governante além de seu tempo e também do nosso tempo. Dificil não sentir admiração e carinho por esse homem que foi destituido do poder e cuja memória foi ameacada de ser destruida pelo fogo, mas que paradoxalmente surge mais forte e mais inesquecivel. Augusta Leite Campos

Maria Helena
5 anos atrás

Que pena que o descaso dos nossos governantes tenha colaborado para esse triste acontecimento. Vi que conseguiram juntar os fragmentos do crânio de Luzia e vão tentar reconstruir. O Meteorito de Bendegó e mais algumas coisas. Muoto boa sua reportagem. Parabéns.

Letícia Carlos Giacomin
Letícia Carlos Giacomin
3 anos atrás

Realmente o que aconteceu com o Museu Nacional é algo que ficará gravado em nossa história para sempre! E, de certa forma, não deve ser esquecido mesmo para ficar de exemplo! Eu tive a chance de conhecê-lo. Obrigada pelo post! Muito explicativo!

regina kalman
3 anos atrás

Uma memória que se apagou.

Sonia Maria Pedrosa Silva Cury
1 ano atrás

O que a gente precisa é de políticos como D. Pedro II, mas nem tenho essa esperança. O que a gente vê é um monte de sanguessugas, todos querendo fazer um pé-de-meia, interessados no próprio umbigo. O objetivo deles é o poder, o dinheiro, acumular riqueza para as próprias gerações. E a nossa história, a nossa cultura indo pelo ralo…o povo, nem se fala… totalmente abandonado. Somos órfãos e não temos a quem apelar. Deus proteja o nosso país.