Atualizado em 29/04/2024 por Sylvia Leite
ESPECIAL
Em protesto contra o descaso e em defesa da preservação da memória, o tema desta semana é o Museu Nacional – a instituição que guardou nossa História Natural e outras importantes coleções por mais de 200 anos e agora precisa tornar-se símbolo de nossa resistência.
O incêndio não pode ser esquecido
Se as chamas nos levaram grande parte de um acervo com mais de 20 milhões de peças, se já não temos o crânio de Luzia, nem as múmias, nem os dinossauros; se perdemos a Biblioteca Francisca Keller (de Antropologia) construída ao longo de 50 anos e a maior coleção de Egito Antigo da América Latina, precisamos não apenas resgatar a memória do que ardeu nas chamas do descaso, mas manter acesa a memória das próprias chamas, para que não se repitam.
Este é o terceiro museu consumido pelo fogo em menos de uma década no Brasil e ainda temos por aqui cerca de 3.700 outros que não podem ter a mesma sina.
O Museu Nacional
O Museu Nacional é a mais antiga instituição científica do País. Foi criado por Dom João VI em 1818 e, desde 1946, está incorporado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, que antes se chamava Universidade do Brasil. O prédio incendiado em 2018 fica na quinta da Boa Vista, bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro.
Talvez nos console saber que a Ciência e a Cultura já tiveram outro tratamento por parte dos governantes. Muito do que restou, e também do que se perdeu, foi parar ali por intermédio de Dom Pedro II, último imperador do Brasil, que era considerado um patrono da Ciência e da Educação.
O Meteorito de Bendegó é exemplo disso. A pedra tinha sido achada cerca de cem anos antes em Campo Santo, no sertão da Bahia.O imperador tomou conhecimento de sua existência ao visitar a Academia de Ciências de Paris e criou uma comissão de especialistas para levar o meteorito até o Rio de Janeiro onde acabou se tornando a obra de boas-vindas do museu.
O prédio do Museu Nacional, como muita gente sabe, era residência da família real até a proclamação da República. Enquanto morou ali, Dom Pedro II constituiu um museu particular que ocupava quatro salas e ficou conhecido como Museu do Imperador ou Gabinete de Curiosidades do Monarca. Os convidados do palácio tinham oportunidade de conhecer as peças guiados pelo próprio imperador.
O acervo teve início com a junção de diferentes coleções herdadas de sua mãe, a Imperatriz Leopoldina: um herbário e os gabinetes de Mineralogia e Numismática.
Com o tempo, foram acrescentadas peças recebidas de visitantes ou trazidas de viagens, entre as quais encontra-se uma Torá tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e considerada um dos dez documentos mais antigos do Judaísmo. O manuscrito hebraico, conhecido como Pergaminhos Ivriim, é composto por nove rolos e deve ter sido escrito entre os séculos 11 e 17.
Também fazia parte do Museu do Imperador, a múmia da cantora Egípcia Sha-Amun-Em-Su, da XII dinastia, que viveu em cerca de 750 a.C. e a cabeça mumificada de um guerreiro da tribo Jívaro, da região do Equador, de tamanho comparável a de um recém-nascido, que teria ficado assim em consequência de uma cerimônia que consistia em reduzir a cabeça do inimigo.
Do Brasil, a coleção incluía, entre outras raridades, um conjunto de três múmias indígenas – um adulto de 25 anos e duas crianças – descobertos em Rio Novo, Minas Gerais.
Além da importância em si, as peças do monarca teriam motivado a construção de uma via férrea para transportá-las, quando veio a República, do Palácio (onde morava Dom Pedro II e onde se localiza hoje o museu incendiado) até o Campo de Santana (primeiro endereço do Museu Nacional). Mas a obra demorou e, quando ficou pronta, houve uma inversão. O Museu Nacional é que foi levado do Campo de Santana para São Cristóvão e se apropriou tanto do Palácio como das peças do Museu do Imperador.
A contribuição de Dom Pedro não se resumiu ao transporte do meteorito e à herança de seu acervo particular possibilitadas pelo fim do Império. Durante seu reinado, o Museu Nacional tornou-se o maior centro de História Natural da América do Sul graças às peças que ele trazia de suas viagens e à modernização que promoveu, com investimentos nas áreas de Antropologia, Paleontologia e Arqueologia.
Dom Pedro II era considerado um patrono das Artes e das Ciências. Tornou-se o primeiro fotógrafo brasileiro ao adquirir, em 1840, uma câmera de daquerrótipo. Foi o criador das bolsas de estudos para brasileiros no exterior. Criou o Instituto Histórico e Geográfico e o Colégio Pedro II e a Imperial Academia de Música e Ópera Nacional . Segundo registros históricos, teria feito, certa vez, a seguinte declaração: “Se não fosse imperador, gostaria de ser um professor. Não conheço tarefa mais nobre do que direcionar as jovens mentes e preparar os homens de amanhã”.
O que fica
Das cinzas, nasce uma consciência nacional de que temos história, temos ciência, temos universidades e de que tudo isso precisa ser preservado.
Aos poucos, surgem notícias mais otimistas. Pelo menos uma parte das coleções científicas que constituem base de pesquisa para os seis programas de pós-graduação foi poupada porque não estava no prédio principal. Alguns laboratórios também escaparam pela mesma razão e outros, que foram atingidos, tiveram vários equipamentos resgatados. Um professor do Departamento de Vertebrados conseguiu retirar do prédio, com o incêndio já iniciado, exemplares de moluscos considerados insubstituíveis. Por tudo isso, os alunos de mestrado e doutorado provavelmente não terão seus trabalhos interrompidos.
A Biblioteca Central, que reúne cerca de 500 mil títulos, entre os quais estão quase 2 mil obras raras, está intacta e, diante da massiva divulgação do incêndio, tornou-se muito mais conhecida. De agora em diante, provavelmente será mais visitada e protegida. Seu endereço é o Horto Botânico.
A Torá de Dom pedro II também escapou das chamas. Tinha sido retirada do prédio antes do incêndio para restauração e, segundo informações divulgadas esta semana, encontra-se na seção de Obras Raras da Biblioteca Central.
Restaram ainda o Meteorito de Bendegó, de quatro bilhões e meio de anos e mais de cinco toneladas, o de Santa Luzia, que pesa quase duas toneladas – ambos compostos em grande parte por ferro e outros menores resgatados por funcionários e pesquisadores. Os dois maiores estavam no centro do fogo e nada sofreram.
Bendegó, coincidentemente, foi achado na região de Canudos, terra símbolo da resistência.1
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros museus brasileiros: Casa de Portinari, Casa do Rio Vermelho, Museu de Xingó, Museu de Imagens do Inconsciente
Museu Nacional – Quinta da Boa Vista – São Cristóvão – Rio de Janeiro – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1) Logomarca do museu
- Mário Cury
- (3,4,5, 6,7,8 e 9) Divulgação
Nada fere mais o propósito da cultura de um povo quando ele é aviltado em sua memória, quando esta é tratada com descaso. Que mais essa tragédia nos una em defesa de nossa história e de nossas raízes. Parabéns pela postagem.
Obrigada, Vi. bjs
Obrigada Silvia por essa grande lição de história sobre o museu,a grandeza de Dom Pedro II e seu valioso legado para o país! Tragédia acarretada pelo descaso que nos deixa com indignação , mágoa e profunda tristeza!
Repetindo…de arrepiar seu texto. Qual político do famigerado Centrao tem um décimo da envergadura de um D.Pedro II?
Sylvia a história foi muito bem contada com suas palavras e Dom Pedro II parece-me sempre um governante além de seu tempo e também do nosso tempo. Dificil não sentir admiração e carinho por esse homem que foi destituido do poder e cuja memória foi ameacada de ser destruida pelo fogo, mas que paradoxalmente surge mais forte e mais inesquecivel. Augusta Leite Campos
Você tem razão, Gusta. Como dizem os antigos da nossa família, ele era formidável!!
Nenhum
Sim, e o pior é que querem tirar o museu da UFRJ, ou seja, acabar com a pesquisa.
Que pena que o descaso dos nossos governantes tenha colaborado para esse triste acontecimento. Vi que conseguiram juntar os fragmentos do crânio de Luzia e vão tentar reconstruir. O Meteorito de Bendegó e mais algumas coisas. Muoto boa sua reportagem. Parabéns.
Realmente o que aconteceu com o Museu Nacional é algo que ficará gravado em nossa história para sempre! E, de certa forma, não deve ser esquecido mesmo para ficar de exemplo! Eu tive a chance de conhecê-lo. Obrigada pelo post! Muito explicativo!
Pois é! Muito triste.
Obrigada, Maria Helena. Volte sempre. Todo quinta tem matéria nova no blog.
Uma memória que se apagou.
Isso mesmo, Regina. Que sirva de lição!
O que a gente precisa é de políticos como D. Pedro II, mas nem tenho essa esperança. O que a gente vê é um monte de sanguessugas, todos querendo fazer um pé-de-meia, interessados no próprio umbigo. O objetivo deles é o poder, o dinheiro, acumular riqueza para as próprias gerações. E a nossa história, a nossa cultura indo pelo ralo…o povo, nem se fala… totalmente abandonado. Somos órfãos e não temos a quem apelar. Deus proteja o nosso país.
Verdade, Soninha! Dom Pedro II foi um exemplo que deveria ser seguido por todos os governantes. E O Museu Nacional é uma das provas disso.