Atualizado em 22/02/2025 por Sylvia Leite
Um dos palácios localizados no Pátio do Colégio – que foram usados, por décadas pela Secretaria da Justiça de São Paulo – abriga hoje o Museu das Favelas. A ideia, segundo um manifesto publicado no site da instituição, é abrir caminhos para que cada pessoa que participou da construção do prédio entre nele pela porta da frente e conte suas histórias.
O manifesto refere-se aos atuais moradores das periferias, em sua maioria negros, cujos ancestrais serviram como mão obra barata – ou gratuita – para a construção dos prédios históricos da cidade, sem nunca ter usufruído de sua beleza e conforto.
A proposta de reconhecimento e valorização dos trabalhadores que ergueram a cidade com as próprias mãos, está na gênese do Museu das Favelas e para entender isso é preciso conhecer um pouco de sua história.
O início nos Campos Elísios
A primeira sede do museu foi o Palácio dos Campos Elíseos – uma das construções mais icônicas da elite cafeicultora de São Paulo. E a conexão que o museu tenta fazer entre essas duas realidades politicamente opostas – palácios luxuosos e sua mão de obra – pode ser resumida, segundo seus organizadores, por um símbolo africano, denominado Sankofa – palavra que, livremente traduzida para o Português, significa ‘volte e pegue’, ou, mais precisamente, “retorne ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”.
No caso do bairro paulistano de Campos Elísios, onde o museu foi inicialmente instalado, ressignificar o presente implicava em dar visibilidade à participação desses trabalhadores não apenas na construção do prédio, mas também na formação do bairro, seja por terem composto a força de trabalho escravizado que construiu a riqueza e os palácios dos barões do café, seja por terem habitado inicialmente o local – sendo depois empurrados para as periferias pela especulação imobiliária.
No que se refere especificamente aos trabalhadores afrodescendentes, o mergulho no passado nos mostra, ainda, sua contribuição cultural para toda a cidade de São Paulo. Um dos elementos que apontam para essa influência é o próprio Sankofa – o símbolo já mencionado, que traz a mensagem de resgate do passado para ressignificar o presente.
A representação visual do Adinkra Sankofa é a de um pássaro mítico que voa voltando a cabeça para trás e carregando no bico um diamante ou um ovo – imagens que nesse contexto cultural significam o futuro. Já sua estilização, assemelha-se a um coração e foi usada em grades tanto do palácio Campos Elísios, como em outras construções da época.
Sankofa é apenas um entre os cerca de quatrocentos ideogramas que constituem um conjunto de símbolos denominado Adinkra, trazido para o Brasil por negros escravizados da África Ocidental e apropriados – conscientemente ou não – por arquitetos e construtores locais.
São imagens que carregam conceitos, provérbios ou ideias filosóficas. Sua origem está entre as tribos de idioma Akan, encontradas em Gana, Toga e Costa do Marfim. Adinkra significa Adeus e seus símbolos foram grafados originalmente em tecidos usados especialmente em funerais ou por pessoas em luto, mas também em outros tipos de cerimônia.
A imagem visual do Sankofa não está está fisicamente representada nas grades do antigo Palácio da Justiça, onde se encontra hoje o Museu das Favelas – como ocorria com o Palácio dos Campos Elísios -, mas há uma imagem bem próxima em um dos vitrais e, além disso, seu significado segue norteando os passos da instituição que se expressa pelos contrastes.
Contrastes e impactos
A simples instalação de um Museu das Favelas em um palacete já é algo no mínimo curioso, que ajuda a ressignificar o presente, mas o contraste não reside apenas entre a pobreza de um e o luxo do outro. Os endereços do museu – tanto o antigo como o atual – em pleno Centro da cidade, opõe-se à localização das favelas que, no caso de São Paulo, encontram-se principalmente nas periferias e são assim consideradas mesmo quando não é esta a sua situação geográfica.
Mas talvez seja nas expressões visuais que essa diferença aparece com maior força. A obra “Tetas que deram de mamar ao mundo” (foto), por exemplo, criada especialmente para a primeira exposição temporária do museu, anunciava, logo na entrada, as contraposições que iríamos encontrar ao longo da visita.
A instalação – que agora faz parte do acervo do museu – apresenta cores fortes, em oposição às tonalidades discretas de materiais como mármore e ferro que decoram o palacete. É composta por retalhos de tecidos, com formas irregulares e feitio artesanal, frente a materiais lisos e industrialmente processados.
Aliada à imagem visual, está o processo de criação proposto pelo museu e adotado por sua autora, Lídia Lisboa, inteiramente contrário ao modo convencional de construção e decoração do imóvel. Lídia trabalhou de forma comunitária com dois grupos que estão presentes hoje na região dos Campos Elísios: Mulheres Empreendedoras Sin Fronteras, que é formado por costureiras bolivianas, e o Coletivo Tem Sentimento, que atua com foco em geração de renda e redução de danos na Cracolândia – área do Centro de São Paulo onde se reúnem pessoas viciadas em craque.
Fazia parte, ainda, da exposição inaugural do Museu das Favelas, uma representação da Feira Preta – evento criado coletivamente com o fim de projetar empreendedores negros. Com mais de duas décadas de existência, a Feira Preta já é considerada o maior festival de cultura e empreendedorismo negros da América Latina.
A presença da favela no Palácio dos Campos Elisios ganhou uma enorme dimensão em pelo menos mais duas obras, dentro da exposição temporária criada especialmente para a inauguração do museu: uma delas foi a instalação que reúne imagens de favelas produzidas, em sua maioria, pelos próprios moradoras, projetando sua crua realidade sobre as formas refinadas do imóvel (foto).
Outra, não menos impactante, é uma imagem gigantesca da historiadora negra Maria Beatriz do Nascimento, criada pelo artista mineiro Paulo Nazareth – o mesmo que fez a estátua gigante de Marielle Franco – , posicionada no jardim ao lado e em contraposição ao pequeno busto do cafeicultor e político Elias Antonio Pacheco e Chaves, o primeiro proprietário e morador do imóvel.
O atual Museu das Favelas
No novo prédio não há jardim, como o Palácio dos Campos Elíseos, mas o museu ganhou uma biblioteca que reúne livros sobre favelas e periferias, além de obras de escritores periféricos como Maria Carolina de Jesus, autora de “Quarto de Despejo”, Itamar Vieira Júnior, autor de “Torto Arado” e Reginaldo Ferreira da Silva (Ferréz), autor de “Capão Pecado”.
Na verdade, trata-se de um Centro de Referência, Pesquisa e Biblioteca (CRIA), que além de manter o acervo de livros, e oferecer orientação aos leitores, promove encontros entre pesquisadores e líderes comunitários para compartilhamento de saberes e experiências.
A reinauguração do Museu das Favelas foi marcada por quatro mostras, incluindo uma exposição temporária sobre os Racionais MC’s – influente grupo de rap e hip hop, conhecido por denunciar o racismo e a exclusão social que atingem os jovens negros e pobres das periferias brasileiras. A mostra ocupa o andar superior e apresenta desde a carreira musical do grupo, até os hobbies e afetos de cada um de seus integrantes..
A exposição principal – intitulada Sobre Vivências – aborda as múltiplas dimensões das favelas brasileiras e é composta por cinco módulos: Ser, Existir, Morar, Celebrar e Sonhar. A proposta é promover uma imersão na realidade interna das favelas, confrontando a visão oficial com “mapas afetivos” criados pelos moradores.
Já a exposição “Marvel – O Poder é Nosso” faz releituras de personagens negros da empresa de entretenimento Marvel, criadas por artistas pretos, indígenas e LGBTQIAPN+. A mostra é resultado do projeto Afrolab que capacitou e financiou 60 jovens de comunidades sub-representadas. Há, ainda, a exposição itinerante “Favela em Fluxo” que reúne trabalhos artísticos e interativos de 22 artistas moradores de favelas e já foi apresentada e Recife, Salvador e Rio de Janeiro.
Assim como no prédio anterior, chama a atenção o contraste entre o conservadorismo da construção e a expressiva manifestação de seus atuais ocupantes, seja por meio dos textos espalhados pelo casarão, seja pela ousadia de algumas letras de algumas músicas: caso do clipe “Linguadinha na XXT”, do MC Mano Feu, que horroriza os mais conservadores.
Outra novidade do novo endereço do Museu das Favelas é que em breve terá como vizinho o Museu das Culturas Indígenas – atualmente localizado no bairro da Água Branca.
Notas
Museu das Favelas – Campos Elíseos – São Paulo – São Paulo – Brasil – América do Sul
Fotos
- Sylvia Leite
Participação especial
- Margareth Amin
Referências
- Site oficial do museu
- Site da Feira Preta
- Site do Grupo Mulheres do Brasil
Nascida em São paulo, assim como muitas pessoas, não conhecemos quase nada, do que existe na nossa cidade.Muito trabalho, estudos e afins, nos impede sobre.
Como exemplo, cito esta importante informação que recebi, através do meu e-mail.
Bora lá conhecer esse Museu , que ainda não conheço!
Gratidão
Bom saber que te ajudei a conhecer um pouco da sua cidade. Você vai gostar, o Museu das Favelas é muito interessante. Se puder, antes e ir faça o agendamento online e ao chegar na recepção solicite a visita guiada.
Adorei! faz tempo que quero conhecer esse museu!
Você vai adorar o Museu das Favelas.
Estou na Capital e, moro SJC, gostaria de aproveitar tempo, visitando o Museu das Favelas, posso ir direto ate recepçao? Nao é sempre , a oportunidade?
Olá, Josmar, você pode ir diretamente ao Museu das Favelas, mas corre o risco de estar lotado. Se puder agendar pelo site, é mais garantido. Tem o link no fim da matéria, na parte das referências.
Muito legal, Sylvinha! Preciso conhecer esse museu. Será na próxima vez que for a São Paulo!
Você vai adorar o Museu das Favelas, Soninha!
Fui e gostei muito desse Museu, além do Palacete que é lindo!
Que bom que gostou, Nathalia. Volte sempre, temos mais de 200 matérias atualizadas.
Muito interessante o contraste entre o Museu das Favelas e o palacete que o abriga. Tem tudo a ver a ligação entre a cafeicultura, a exploração da mão de obra escrava e a consequente falta de recursos que acabou recaindo sobre esses trabalhadores. Parabéns pelo post!
Obrigada, Alexandra. Que bom que você gostou de saber um pouco sobre o Museu das Favelas.
Muito legal Sylvinha, qdo for a Sampa quero conhecer esse museu!!!
Você vai gostar! O Museu das Favelas é muito interessante. E perto dele tem outros museus, além do próprio Pátio do Colégio que também vale a pena conhecer.
Maravilhoso Sylvia conhecer esse Museu. Você coloca tudo com tanta clareza, que parece que estamos vendo ao vivo. Parabéns. Muito bom.
Feliz de te ver de novo por aquí. Vamos marcar uma vinda sua a São Paulo pra você conhecer o Museu das Favelas e muitas outras coisas.
Narrativa tão boa que me levou a visita ao museu lendo o texto. Anotado pra visitar no meu retorno a São Paulo. Parabéns pelo texto e tema escolhido, @silvyaleite!
Você não vai se arrepender. Obrigada pelo comentário generoso.
Sensacional. Que projeto bacana.
Sim, Fátima, o Museu das Favelas é muito bacana. Aliás, o pessoal que mexe com Cultura em São Paulo é muito bom. Tem projetos excelentes.