Museu das Favelas: o passado ressignificando o presente

Tempo de Leitura: 7 minutos

Atualizado em 22/02/2025 por Sylvia Leite

Interior_do_Museu_das_ Favelas -Foto_Sylvia_Leite-BLOG_LUGARES_DE_MEMORIAUm dos palácios localizados no Pátio do Colégio – que foram usados, por décadas pela Secretaria da Justiça de São Paulo – abriga hoje o Museu das Favelas. A ideia, segundo um manifesto publicado no site da instituição, é abrir caminhos para que cada pessoa que participou da construção do prédio entre nele pela porta da frente e conte suas histórias.

O manifesto refere-se aos atuais moradores das periferias, em sua maioria negros, cujos ancestrais serviram como mão obra barata – ou gratuita – para a construção dos prédios históricos da cidade, sem nunca ter usufruído de sua beleza e conforto.

A proposta de reconhecimento e valorização dos trabalhadores que ergueram a cidade com as próprias mãos, está na gênese do Museu das Favelas e para entender isso é preciso conhecer um pouco de sua história.

O início nos Campos Elísios

Fachada do Museu das Favelas - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIA A primeira sede do museu foi o Palácio dos Campos Elíseos – uma das construções mais icônicas da elite cafeicultora de São Paulo. E a conexão que o museu tenta fazer entre essas duas realidades politicamente opostas – palácios luxuosos e sua mão de obra  – pode ser resumida, segundo seus organizadores, por um símbolo africano, denominado Sankofa – palavra que, livremente traduzida para o Português, significa ‘volte e pegue’, ou, mais precisamente, “retorne ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”.

No caso do bairro paulistano de Campos Elísios, onde o museu foi inicialmente instalado, ressignificar o presente implicava em dar visibilidade à participação desses trabalhadores não apenas na construção do prédio, mas também na formação do bairro, seja por terem composto a força de trabalho escravizado que construiu a riqueza e Sankofa, passaro e simbolo - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAos palácios dos barões do café, seja por terem habitado inicialmente o local – sendo depois empurrados para as periferias pela especulação imobiliária.

No que se refere especificamente aos trabalhadores afrodescendentes, o mergulho no passado nos mostra, ainda, sua contribuição cultural para toda a cidade de São Paulo. Um dos elementos que apontam para essa influência é o próprio Sankofa – o símbolo já mencionado, que traz a mensagem de resgate do passado para ressignificar o presente.

A representação visual do Adinkra Sankofa é a de um pássaro mítico que voa voltando a cabeça para trás e carregando no bico um diamante ou um ovo – imagens que nesse contexto cultural significam o futuro. Já sua estilização, assemelha-se a um coração e foi usada em grades tanto do palácio Campos Elísios, como em outras construções da época.

Sankofa é apenas um entre os cerca de quatrocentos ideogramas que constituem um conjunto de símbolos Simbolos Sankofa em grade de porta - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAdenominado Adinkra, trazido para o Brasil por negros escravizados da África Ocidental e apropriados – conscientemente ou não –  por arquitetos e construtores locais.

São imagens que carregam conceitos, provérbios ou ideias filosóficas. Sua origem está entre as tribos de idioma Akan, encontradas em Gana, Toga e Costa do Marfim. Adinkra significa Adeus e seus símbolos foram grafados originalmente em tecidos usados especialmente em funerais ou por pessoas em luto, mas também em outros tipos de cerimônia.

A imagem visual do Sankofa não está está fisicamente representada nas grades do antigo Palácio da Justiça, onde se encontra hoje o Museu das Favelas – como ocorria com o Palácio dos Campos Elísios -, mas há uma imagem bem próxima em um dos vitrais e, além disso, seu significado segue norteando os passos da instituição que se expressa pelos contrastes.

Contrastes e impactos

Obra Tetas que deram de mamar ao mundo - Foto de Syvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAA simples instalação de um Museu das Favelas em um palacete já é algo no mínimo curioso, que ajuda a ressignificar o presente, mas o contraste não reside apenas entre a pobreza de um e o luxo do outro. Os endereços do museu – tanto o antigo como o atual – em pleno Centro da cidade, opõe-se à  localização das favelas que, no caso de São Paulo, encontram-se principalmente nas periferias e são assim consideradas mesmo quando não é esta a sua situação geográfica.

Mas talvez seja nas expressões visuais que essa diferença aparece com maior força. A obra “Tetas que deram de mamar ao mundo” (foto), por exemplo, criada especialmente para a primeira exposição temporária do museu, anunciava, logo na entrada, as contraposições que iríamos encontrar ao longo da visita.

A instalação – que agora faz parte do acervo do museu – apresenta cores fortes, em oposição às tonalidades Feira_Preta_Museu_das_Favelas- Foto_Sylvia_leite-BLOG_LUGARES_DE_MEMORIAdiscretas de materiais como mármore e ferro que decoram o palacete. É composta por retalhos de tecidos, com formas irregulares e feitio artesanal, frente a materiais lisos e industrialmente processados.

Aliada à imagem visual, está o processo de criação proposto pelo museu e adotado por sua autora, Lídia Lisboa, inteiramente contrário ao modo convencional de construção e decoração do imóvel. Lídia trabalhou de forma comunitária com dois grupos que estão presentes hoje na região dos Campos Elísios: Mulheres Empreendedoras Sin Fronteras, que é formado por costureiras bolivianas, e o Coletivo Tem Sentimento, que atua com foco em geração de renda e redução de danos na Cracolândia – área do Centro de São Paulo onde se reúnem pessoas viciadas em craque.

Fazia parte, ainda, da exposição inaugural do Museu das Favelas, uma representação da Feira Preta – evento criado coletivamente com o fim de projetar empreendedores negros. Com mais de duas décadas de existência, a Feira Preta já é considerada o maior festival de cultura e empreendedorismo negros da América Latina.

Imagem de favela projetada em parede de palácio - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAA presença da favela no Palácio dos Campos Elisios ganhou uma enorme dimensão em pelo menos mais duas obras, dentro da exposição temporária criada especialmente para a inauguração do museu: uma delas foi a instalação que reúne imagens de favelas produzidas, em sua maioria, pelos próprios moradoras, projetando sua crua realidade sobre as formas refinadas do imóvel (foto).

Outra, não menos impactante, é uma imagem gigantesca da historiadora negra Maria Beatriz do Nascimento, criada pelo artista mineiro Paulo Nazareth – o mesmo que fez a estátua gigante de Marielle Franco – , posicionada no jardim ao lado e em contraposição ao pequeno busto do cafeicultor e político Elias Antonio Pacheco e Chaves, o primeiro proprietário e morador do imóvel.

O atual Museu das Favelas

Biblioteca_das_Favelas-Foto_Sylvia_Leite-BLOG_LUGARES_DE_MEMORIANo novo prédio não há jardim, como o Palácio dos Campos Elíseos, mas o museu ganhou uma biblioteca que reúne livros sobre favelas e periferias, além de obras de escritores periféricos como Maria Carolina de Jesus, autora de “Quarto de Despejo”, Itamar Vieira Júnior, autor de “Torto Arado” e Reginaldo Ferreira da Silva (Ferréz), autor de “Capão Pecado”.

Na verdade, trata-se de um Centro de Referência, Pesquisa e Biblioteca (CRIA), que além de manter o acervo de livros, e oferecer orientação aos leitores, promove encontros entre pesquisadores e líderes comunitários para compartilhamento de saberes e experiências.

A reinauguração do Museu das Favelas foi marcada por quatro mostras, incluindo uma exposição temporária sobre os Racionais MC’s – influente grupo de rap e hip hop, conhecido por denunciar o racismo e a exclusão social que Exposição_Sobre_Vivências-Foto_Sylvia_Leite-BLOG_LUGARES_DE_MEMORIAatingem os jovens negros e pobres das periferias brasileiras. A mostra ocupa o andar superior e apresenta desde a carreira musical do grupo, até os hobbies e afetos de cada um de seus integrantes..

A exposição principal – intitulada Sobre Vivências – aborda as múltiplas dimensões das favelas brasileiras e é composta por cinco módulos: Ser, Existir, Morar, Celebrar e Sonhar.  A proposta é promover uma imersão na realidade interna das favelas, confrontando a visão oficial com “mapas afetivos” criados pelos moradores.

Já a exposição “Marvel – O Poder é Nosso” faz releituras de personagens negros da empresa de entretenimento Marvel, criadas por artistas pretos, indígenas e LGBTQIAPN+. A mostra é resultado do projeto Afrolab que capacitou e financiou 60 jovens de comunidades sub-representadas. Há, ainda, a exposição itinerante “Favela em Interior_Museu_das_ Favela -Foto_Sylvia_Leite-BLOG_LUGARES_DE_MEMORIAFluxo” que reúne trabalhos artísticos e interativos de 22 artistas moradores de favelas e já foi apresentada e Recife, Salvador e Rio de Janeiro.

Assim como no prédio anterior, chama a atenção o contraste entre o conservadorismo da construção e a expressiva manifestação de seus atuais ocupantes, seja por meio dos textos espalhados pelo casarão, seja pela ousadia de algumas letras de algumas músicas: caso do clipe “Linguadinha na XXT”, do MC Mano Feu, que horroriza os mais conservadores.

Outra novidade do novo endereço do Museu das Favelas é que em breve terá como vizinho o Museu das Culturas Indígenas – atualmente localizado no bairro da Água Branca.

Notas

    Museu das Favelas – Campos Elíseos – São Paulo – São Paulo – Brasil – América do Sul

    Texto

    Fotos

    • Sylvia Leite

    Participação especial

    • Margareth Amin

    Referências

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    Maria Clarice
    Maria Clarice
    2 anos atrás

    Nascida em São paulo, assim como muitas pessoas, não conhecemos quase nada, do que existe na nossa cidade.Muito trabalho, estudos e afins, nos impede sobre.
    Como exemplo, cito esta importante informação que recebi, através do meu e-mail.
    Bora lá conhecer esse Museu , que ainda não conheço!

    Gratidão

    Ana Maria Araujo
    Ana Maria Araujo
    2 anos atrás

    Adorei! faz tempo que quero conhecer esse museu!

    Josmar Tadeu Inacio
    Josmar Tadeu Inacio
    2 anos atrás

    Estou na Capital e, moro SJC, gostaria de aproveitar tempo, visitando o Museu das Favelas, posso ir direto ate recepçao? Nao é sempre , a oportunidade?

    Sonia Pedrosa
    2 anos atrás

    Muito legal, Sylvinha! Preciso conhecer esse museu. Será na próxima vez que for a São Paulo!

    Nathalya Coutinho
    1 ano atrás

    Fui e gostei muito desse Museu, além do Palacete que é lindo!

    ALEXANDRA MORCOS
    ALEXANDRA MORCOS
    1 ano atrás

    Muito interessante o contraste entre o Museu das Favelas e o palacete que o abriga. Tem tudo a ver a ligação entre a cafeicultura, a exploração da mão de obra escrava e a consequente falta de recursos que acabou recaindo sobre esses trabalhadores. Parabéns pelo post!

    Elizabete
    Elizabete
    1 mês atrás

    Muito legal Sylvinha, qdo for a Sampa quero conhecer esse museu!!!

    Maria Helena Rodrigues
    Maria Helena Rodrigues
    1 mês atrás

    Maravilhoso Sylvia conhecer esse Museu. Você coloca tudo com tanta clareza, que parece que estamos vendo ao vivo. Parabéns. Muito bom.

    Glicia
    Glicia
    1 mês atrás

    Narrativa tão boa que me levou a visita ao museu lendo o texto. Anotado pra visitar no meu retorno a São Paulo. Parabéns pelo texto e tema escolhido, @silvyaleite!

    Fátima Lopes da silva
    Fátima Lopes da silva
    1 mês atrás

    Sensacional. Que projeto bacana.