Atualizado em 07/07/2024 por Sylvia Leite
Imagine um museu dedicado aos moradores das periferias, e batizado como Museu das Favelas, dentro do Palácio dos Campos Elíseos – uma das construções mais icônicas da elite cafeicultora de São Paulo. A conexão entre essas duas realidades politicamente opostas pode ser resumida, segundo os organizadores do museu, por um símbolo africano, denominado Sankofa – palavra que, livremente traduzida para o Português, significa ‘volte e pegue’, ou, mais precisamente, “retorne ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”.
No caso do bairro paulistano de Campos Elísios, onde fica o palácio hoje ocupado pelo museu, ressignificar o presente implica em reconhecer que os primeiros habitantes urbanos da região foram trabalhadores, em sua maioria negros, muitos dos quais tiveram que deixar o local e foram parar em favelas. Implica, ainda, em dar visibilidade à participação desses trabalhadores na formação do bairro, seja por terem habitado inicialmente o local, seja por terem composto a força de trabalho escravizado que construiu a riqueza dos barões do café. Mais que isso: por terem sido a mão de obra usada na construção e na manutenção do próprio Palácio dos Campos Elíseos e de outros imóveis que resistem até hoje na região, sem nunca terem podido usufruir deles.
No que se refere especificamente aos trabalhadores afrodescendentes, o mergulho no passado nos mostra, ainda, sua contribuição cultural na construção do bairro. Um dos elementos que apontam para essa influência é o próprio Sankofa – símbolo que traz a mensagem de resgate do passado para ressignificar o presente.
A representação visual do Adinkra Sankofa é um pássaro mítico que voa voltando a cabeça para trás e carregando no bico um diamante ou um ovo – imagens que nesse contexto cultural significam o futuro. Já sua estilização, assemelha-se a um coração e, curiosamente, foi usado pelos idealizadores do palácio em algumas de suas grades, provavelmente sem consciência da simbologia que carregam..
Sankofa é apenas um entre os cerca de quatrocentos ideogramas que constituem um conjunto de símbolos denominado Adinkra, trazido para o Brasil por negros escravizados da África Ocidental e apropriados por arquitetos e construtores locais.
São imagens que carregam conceitos, provérbios ou ideias filosóficas. Sua origem está entre as tribos de idioma Akan, encontradas em Gana, Toga e Costa do Marfim. Adinkra significa Adeus e seus símbolos foram grafados originalmente em tecidos usados especialmente em funerais ou por pessoas em luto, mas também em outros tipos de cerimônia.
O endereço do Museu das Favelas
A simples instalação de um Museu das Favelas em um palacete já é algo no mínimo curioso, mas o contraste não reside apenas entre a pobreza de um e o luxo do outro. O endereço do palacete, em pleno Centro da cidade, opõe-se à localização das favelas que no caso de São Paulo encontram-se principalmente nas periferias e são assim consideradas mesmo quando não é esta a sua situação geográfica. Mas talvez seja no campo visual que essa diferença aparece com maior força.
A obra “Tetas que deram de mamar ao mundo”, criada especialmente para a primeira exposição temporária do museu, anuncia, logo na entrada, as contraposições que vamos encontrar ao longo da visita. A instalação apresenta cores fortes, em oposição às tonalidades discretas de materiais como mármore e ferro que decoram o palacete. É composta por retalhos de tecidos, com formas irregulares e feitio artesanal, frente a materiais lisos e industrialmente processados.
Aliada à imagem visual, está o processo de criação proposto pelo museu e adotado por sua autora, Lídia Lisboa, inteiramente contrário ao modo convencional de construção e decoração do imóvel. Lídia trabalhou de forma comunitária com dois grupos que estão presentes hoje na região: Mulheres Empreendedoras Sin Fronteras, que é formado por costureiras bolivianas, e o Coletivo Tem Sentimento, que atua com foco em geração de renda e redução de danos na Cracolândia – área do Centro de São Paulo onde se reúnem pessoas viciadas em craque.
Faz parte, ainda, da exposição inaugural do Museu das Favelas, uma representação da Feira Preta – evento criado coletivamente com o fim de projetar empreendedores negros. Com mais de duas décadas de existência, a Feira Preta já é considerada o maior festival de cultura e empreendedorismo negros da América Latina.
A presença da favela no Palácio dos Campos Elisios ganha uma enorme dimensão em pelo menos mais duas obras, dentro da exposição temporária criada especialmente para a inauguração do museu: uma delas é a instalação que reúne imagens de favelas produzidas, em sua maioria, pelos próprios moradoras, projetando sua crua realidade sobre as formas refinadas do imóvel.
Outra, não menos impactante, é uma imagem gigantesca da historiadora negra Maria Beatriz do Nascimento, criada pelo artista mineiro Paulo Nazareth – o mesmo que fez a estátua gigante de Marielle Franco – , posicionada ao lado e em contraposição ao pequeno busto do cafeicultor e político Elias Antonio Pacheco e Chaves, o primeiro proprietário e morador do imóvel.
Museu das Favelas: o presente ressignificado
O Palácio dos Campos Elíseos era conhecido antigamente como palacete Elias Chaves em referência a esse cafeicultor e político que mandou construí-lo para servir como residência de sua família na capital. O prédio foi projetado pelo arquiteto alemão Matheus Häusler e inspirado no castelo da comuna francesa de Écouen, do século 16, que hoje abriga o Museu do Renascimento.
A mudança de nome ocorreu quando o imóvel foi comprado pelo Governo de São Paulo e tornou-se, por trinta anos, a residência oficial dos governadores. Depois da inauguração do Palácio dos Bandeirantes, no Morumbi, o Palácio Campos Elísios passou a abrigar secretarias de estado e, em seguida, o Centro de Referência e Inovação do Sebrae. Quando foi escolhido para abrigar o Museu das Favelas, constava entre os imóveis desocupados do Governo de São Paulo.
O Palácio dos Campos Elíseos tem cerca de quatro mil metros quadrados de área construída distribuídos em quatro andares. Por enquanto, o Museu das Favelas ocupa apenas a área externa e o antar térreo com uma exposição temporária criada para sua inauguração no final de 2022. Breve, no entanto, serão ocupados os andares superiores com uma exposição de longa duração que já está sendo preparada pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, responsável pela instituição.1
Notas
Museu das Favelas – Campos Elíseos – São Paulo – São Paulo – Brasil – América do Sul
Fotos
- Sylvia Leite
Participação especial
- Margareth Amin
Referências
- Site oficial do museu
- Site da Feira Preta
- Site do Grupo Mulheres do Brasil
Nascida em São paulo, assim como muitas pessoas, não conhecemos quase nada, do que existe na nossa cidade.Muito trabalho, estudos e afins, nos impede sobre.
Como exemplo, cito esta importante informação que recebi, através do meu e-mail.
Bora lá conhecer esse Museu , que ainda não conheço!
Gratidão
Bom saber que te ajudei a conhecer um pouco da sua cidade. Você vai gostar, o Museu das Favelas é muito interessante. Se puder, antes e ir faça o agendamento online e ao chegar na recepção solicite a visita guiada.
Adorei! faz tempo que quero conhecer esse museu!
Você vai adorar o Museu das Favelas.
Estou na Capital e, moro SJC, gostaria de aproveitar tempo, visitando o Museu das Favelas, posso ir direto ate recepçao? Nao é sempre , a oportunidade?
Olá, Josmar, você pode ir diretamente ao Museu das Favelas, mas corre o risco de estar lotado. Se puder agendar pelo site, é mais garantido. Tem o link no fim da matéria, na parte das referências.
Muito legal, Sylvinha! Preciso conhecer esse museu. Será na próxima vez que for a São Paulo!
Você vai adorar o Museu das Favelas, Soninha!
Fui e gostei muito desse Museu, além do Palacete que é lindo!
Que bom que gostou, Nathalia. Volte sempre, temos mais de 200 matérias atualizadas.
Muito interessante o contraste entre o Museu das Favelas e o palacete que o abriga. Tem tudo a ver a ligação entre a cafeicultura, a exploração da mão de obra escrava e a consequente falta de recursos que acabou recaindo sobre esses trabalhadores. Parabéns pelo post!
Obrigada, Alexandra. Que bom que você gostou de saber um pouco sobre o Museu das Favelas.