Mucuripe: a vila de pescadores que inspirou importantes artistas

Tempo de Leitura: 8 minutos

Atualizado em 29/04/2024 por Sylvia Leite

Foto Márcia Alves - Matéria Mucuripe - BLOG LUGARES DE MEMÓRIADo lado de dentro do continente, pouco restou da centenária Mucuripe – a vila de pescadores de Fortaleza- CE que foi capaz de atrair boêmios e inspirar músicos como Belchior e Fagner, escritores como José de Alencar, ou cineastas como Orson Welles. Mas na areia, e no mar, permanecem os velhos barcos, redes e outros instrumentos de pesca. Para completar, existe um mercado onde se pode tanto comprar o resultado das pescarias para cozinhar em casa, como pedir que preparem ali mesmo os peixes ou mariscos fresquinhos para serem saboreados à beira mar. Tudo isso, com a bênção de São Pedro dos Pescadores, cuja imagem parece estar de prontidão, na porta da igreja, para impedir que a verticalização do bairro acabe de vez com a sua poesia.

A capela resiste, apertada entre prédios e asfalto, não apenas como lugar de devoção religiosa, mas também como testemunha da história da vila de Mucuripe. O próprio prédio tem muito o que contar: foi erguido em 1852, pelos moradores, para substituir o anterior queFoto Márcia Alves - Matéria Mucuripe - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA tinha sido soterrado pelas dunas.

Tanto o prédio anterior como o atual foram dedicados a Nossa Senhora da Saúde, em agradecimento pela extinção de um surto de peste bubônica que atingiu a vila de pescadores.

Essa crença foi disseminada depois que uma mulher do Rio de Janeiro levou ao local uma imagem de Nossa Senhora da Saúde e rezou com os moradores pela cura dos doentes, prometendo construir uma igreja caso a epidemia fosse controlada.

Em 1932, o prédio foi fechado, provavelmente por desentendimentos entre a população e os representantes da Igreja, e só reabriu sete anos depois como Capela de São Pedro dos Pescadores. A a Paróquia de Nossa Senhora da Saúde foi transferida para outro prédio e tornou-se a matriz.

Festa de São Pedro dos Pescadores - Foto divulgação - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAPor pouco, a Capela de São Pedro dos Pescadores escapou de ser demolida em 2007, quando a Arquidiocese decidiu entregar seu prédio à União como pagamento de uma dívida de R$ 250 mil. Após manifestações e vigílias por parte dos pescadores e de antigos moradores do bairro, a Secretaria de Cultura de Fortaleza iniciou o processo de tombamento que só foi concluído cerca de quatro anos depois. Agora, tanto a igreja como a Festa de São Pedro dos Pescadores são considerados Patrimônio Cultural de Fortaleza.

A igrejinha foi também testemunha e, ao mesmo tempo, personagem, do filme que Orson Welles rodou em Mucuripe. O enredo era inspirado em um texto publicado em 1941, pela Revista Time,  intitulado “Four Men on a Rafft” (Quatro homens em uma jangada).Foto Márcia Alves - Matéria Mucuripe - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

A história dos jangadeiros

O artigo da Time contava a aventura de quatro pescadores do Mucuripe que viajaram em uma jangada até o Rio de Janeiro, na época capital do país, para chamar a atenção do governo federal sobre as condições de miséria em que viviam cerca de 35 mil pescadores cearenses.

Manoel Olímpio Meira (Jacaré), Raimundo Correia Lima (Tatá), Manuel Pereira da Silva (Mané Preto) e Jerônimo André de Souza (Mestre Jerônimo) navegaram 2.381 km sem qualquer instrumento náutico e conseguiram desembarcar na Baía de Guanabara. Foto Márcia Alves - Matéria Mucuripe - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

Ao tomar conhecimento dessa história, Welles teria enxergado nela um bom tema para um dos episódios do filme It’s All True (É tudo verdade), encomendado a ele pelo presidente Roosevelt como parte da política de boa vizinhança com os países latino-americanos para manter o controle pacífico sobre eles.1

Em Fortaleza, especialmente em Mucuripe, conta-se que  Welles passou seis semanas entre os pescadores, dormindo em uma cabana e comendo arroz com feijão e peixe, mas outra versão diz que ele se hospedou no Hotel Excelsior, o primeiro arranha-céus da cidade. Welles teria filmado tudo que quis, em parceria com o fotografo cearense Chico Albuquerque mas, por causa da censura, o filme ficou inacabado e teve uma montagem póstuma que só chegou ao Brasil na década de 1980. Outra ‘ferida’ no projeto de Welles teria sido a morte de Jacaré durante filmagens que recriavam a chegada dos jangadeiros na Baía de Guanabara.
Foto Márcia Alves - Matéria Mucuripe - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

A poesia de Mucuripe

Se o encantamento de Orson Welles com Mucuripe se deu pela coragem dos quatro jangadeiros, o de Belchior veio da poesia de suas dunas como ele revela no livro “No tom da canção cearense – Do rádio, e TV, dos lares e bares na era dos festivais (1963-1979)”, do historiador cearense Wagner Castro. A canção “Mucuripe“, como conhecemos hoje, tem apenas a letra por Belchior, embora ele tenha composto também uma música. É que Fagner se encantou com o tema e quis compartilhar a  autoria compondo uma nova versão musical que, junto com aletra de Belchior, venceu o festival do Centro de Ensino Unificado de Brasília – CEUB.
No romance Iracema, de José de Alencar, Mucuripe designava um morro de areia à beira da enseada de mesmo nome. A origem da palavra estaria na junção do vocábulo ‘corib’, que significa alegria, com ‘mo’ que é uma partícula ou abreviatura do verbo monhang, que significa fazer, compondo o nome Mocoripe, com o significado de dar alegria, como revela o seguinte diálogo entre os personagens personagem Martim (português) e Poti (indígena):  Foto divulgação - site Prefeitura de Fortaleza - Matéria Mucuripe - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA
– Por que chamas tu Mocoripe ao grande morro das areias?
– O pescador da praia, que vai na jangada, lá onde voa a ati, fica triste longe da terra e de sua cabana, onde dormem os filhos de seu sangue. Quando ele torna e que seus olhos primeiro avistam o morro das areias, o prazer volta ao seu coração. Por isso ele diz que o morro das areias dá alegria.
Iracema foi mais que título e personagem principal de uma das obras de José de Alencar.  A “virgem dos lábios de mel” tornou-se um dos símbolos de Fortaleza e tem duas estátuas na orla de Fortaleza. uma delas em Mucuripe. O enredo do livro, que narra o romance entre o português Martim e a índia Tabajara Iracema, é uma metáfora da colonização, tendo como resultado o nascimento de Moacir, que representa o mestiço povo brasileiro.

Praia de Mucuripe com prédios ao fundo -Foto Márcia Alves - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA Além das histórias, a história

A história de Mucuripe começa antes de Pedro Alvares Cabral. Na verdade, isso acontece com praticamente toda a costa brasileira, pois os índios já estão por aqui há cerca de 60 mil anos2, mas alguns historiadores acreditam que, nessa praia, o contato com os colonizadores pode ter precedido a chegada oficial dos portugueses. O navegador espanhol Vicente Yáñez Pinzón teria desembarcado ali no início de 1500, batizando o ponto culminante da praia – hoje Ponta do Mucuripe – como Cabo de Santa Maria de La Consolación***.

Mucuripe também foi porta de entrada para uma expedição comandada por André Gonçalves e Gonçalo Coelho, com Américo Vespúcio na tripulação, e para os holandeses que chegaram ao Ceará em 1640. A fim de proteger a enseada, foram construídas cinco ou seis fortificações. O local foi escolhido para abrigar o Porto de Fortaleza e recebeu um farol que virou ícone da cidade.Faróis de Mucuripe - Fotos do site da Marinha - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

Os faróis do Mucuripe

O primeiro farol do Mucuripe é uma das mais antigos monumentos arquitetônicos de Fortaleza. Foi construído por escravos, em alvenaria, madeira e ferro, na primeira metade do século 19, e funcionou por mais de cem anos. Nesse período, ficou conhecido como “os olhos do mar’.

Em 1957, foi substituído por um novo, mais moderno e adequado às novas necessidades dos navegadores e, depois de alguns anos fechado, passou a abrigar o Museu do Jangadeiro.Com o fechamento do museu, em 2007, o prédio ficou abandonado e começou a se deteriorar , o que provocou protestos, principalmente de artistas locais. Durante um Festival de Arte Urbana, em 2013, suas paredes foram grafitadas a fim de chamar a atenção para necessidade de restauração do prédio histórico, o que gerou polêmica pelo fato do farol ser tombado pelo Iphan, mas até agora não foi feito nenhum reparo.

O substituto do farol histórico também ficou obsoleto e precisou ser trocado, em 2017, por outro três vezes maior. O novo farol é o mais alto das Américas e o sexto do mundo, com 71 metros e 10 cm de altura. Tem 20 andares, elevador, e está totalmente automatizado, com equipamentos de última geração. Mas apesar da modernidade tecnológica, parece não querer se desvincular dos anteriores: além de ter uma aparência externa semelhante à do seu antecessor, utiliza um aparelho lenticular centenário, que vem sendo usado nos sucessivos faróis de Mucuripe desde a primeira construção que foi da época de Dom Pedro I. 3

Notas

Para saber mais

  • Quer saber qual é a melhor época para conhecer a capital do Ceará? Leia matéria do blog Pé na Estada sobre Quando ir a Fortaleza
  • E no blog Vamos por aí, você vai encontrar um texto sobre O que fazer em Fortaleza com um roteiro completo para sua visita

Mucuripe – Fortaleza – Ceará – Brasil – América do Sul

Texto

Fotos

  • (1,2,3,4,5,6,7) Márcia Alves
  • (8) Divulgação- Site Prefeitura de Fortaleza
  • (9) Dominique - Greusar (Site da Marinha)
  • (10) Frame de vídeo da Marinha- Site da Marinha

Referências

    Artigo

    • Orson Welles faz história em Fortaleza - Portal GGN

    Música

    • Mucuripe, Belchior

    Livros

    • Iracema, José de Alencar
    • Do rádio, e TV, dos lares e bares na era dos festivais (1963-1979), de Wagner Castro
    • Orson Welles no Ceará, de Firmino Holanda
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    8 Comentários
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    Val Cantanhede
    4 anos atrás

    Quantas histórias interessantes de Mucuripe! Adorei conhecer!
    Abraços,
    Val Cantanhede

    sonia pedrosa cury
    4 anos atrás

    Mucuripe é uma inspiração, a começar pelo nome. Adorei saber um pouco da história, Sylvinha! Beijo!

    normeide neto de carvalho
    normeide neto de carvalho
    4 anos atrás

    Que história mais linda essa da Vila de Pescadores Mucuripe. Obrigada por trazer essas memórias tão pouco valorizadas e esquecidas no nosso país. Parabéns.

    Luiza
    Luiza
    1 ano atrás

    Gostei do seu poste, existe muitos artigos em seu blog relacionado a este que acebei de ler gostei de seu blog.