Tamandaré: a terra do dilúvio nordestino

Tempo de Leitura: 6 minutos

Atualizado em 14/02/2023 por Sylvia Leite

Farol de Tamandaré - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIADiz uma lenda dos povos Caetés, muito conhecida entre moradores de Tamandaré, no litoral Sul de Pernambuco, e transmitida nas escolas locais, que tempos atrás ocorreu um dilúvio provocado por Tupã, o deus dos trovões. Da mesma forma que no dilúvio bíblico 1, apenas um homem foi alertado sobre o desastre. Isso permitiu que ele construísse uma grande embarcação para abrigar-se até o final da tempestade e pudesse, depois, repovoar a terra. O homem escolhido era um pajé, conhecido pelas gerações futuras como ‘tamoindaré’ (do Tupi tab-moi-inda-ré) – que significaria o repovoador2. Essa lenda é considerada a principal explicação para o nome da localidade, chamada assim muito antes da chegada dos primeiros colonizadores, no século 16.
Igrejinha de Carneiros - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA
Há ainda outras duas versões para o batismo da localidade como Tamandaré. Uma delas, igualmente mitológica, também fala em inundação, mas o desastre teria sido provocado pelo próprio pajé, ao cavar uma fonte que transbordou e alagou toda a região. Para sobreviver, ele teria subido em uma palmeira junto com sua mulher e permanecido no alto até as águas baixarem. A outra versão é levantada por léxicógrafos a atribui a origem da palavra Tamandaré ao vocábulo tupi ‘tamandûaré’ que significa ‘tamanduá diferente’ (tamanduá + é).

Mesmo não havendo consenso sobre o surgimento do nome, as três versões apontam para uma origem indígena e isso põe por terra uma versão divulgada em outras regiões do Brasil segundo a qual a localidade de Tamandaré teria recebido esse nome depois da visita de Joaquim Marques Lisboa – considerado o Patrono da Marinha Brasileira – cujo nome de guerra era Almirante Tamandaré.

Tamandaré e o Almirante

Forte Santo Inácio de Loyola - Foto do Acervo de forte - Matéria Tamandaré - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA
Para entender a relação do lugar com o almirante, é preciso relembrarmos o movimento republicano  denominado Confederação do Equador, ocorrido em Pernambuco na primeira metade do século 19 (1824). Entre os revoltosos, estava o irmão do militar, Manoel Marques Lisboa, que foi morto, em Tamandaré, pelas tropas enviadas por Dom Pedro I para reprimir o movimento. Na época, Joaquim já estava na Marinha e, portanto, encontrava-se do lado oposto ao irmão.
Trinta e cinco anos depois, em 1859, Joaquim foi a Pernambuco como comandante da esquadra da família real, que estava em visita às capitanias do Nordeste, na época identificadas como capitanias do Norte. Ao passar pelo litoral pernambucano, ele Forte Santo Inácio de Loyola - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAFoto Sylvia Leite - Matéria Tamandaré - BLOG LUGARES DE MEMÓRIApediu ao imperador Dom Pedro II que lhe permitisse  resgatar os restos mortais de seu irmão em Tamandaré para levá-los ao túmulo da família, no Rio de Janeiro.

Por causa desse gesto, o imperador atrelou Joaquim Marques Lisboa ao então povoado de Tamandaré e, ao conceder-lhe títulos de nobreza, usou sempre esse nome. Foi assim que Joaquim tornou-se Barão, Visconde, Conde e depois Marquês de Tamandaré. E quando conquistou o titulo de almirante, que é o posto maior da Marinha, seu nome de guerra passou a ser Almirante Tamandaré.

A disputa com os holandeses

A Confederação do Equador não foi o único conflito pernambucanoCanhóes do Forte Santo Inácio de Loyola - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA que chegou, de alguma maneira, a essas terras. Séculos antes, houve as disputas entre Portugueses e Holandeses pelos portos e pelas terras de massapê – próprias para o cultivo da cana de açúcar – em todo o litoral da capitania.

Dois fortes foram construídos pelos portugueses na região: um deles, batizado como Forte da Santa Cruz de Tamandaré, foi erguido durante o período da segunda invasão holandesa, entre 1630 e 1654. Era um forte do tipo trincheira, feito de barro e madeira, e foi destruído pelos invasores.

O outro, batizado como Forte de Tamandaré, é posterior à retirada dos holandeses e foi feito para proteger a costa de novos invasores ou de um eventual retorno dos próprios holandeses. Esse forte permanece até hoje, agora sob o comando da Marinha do Brasil e rebatizado como Forte Santo Inácio de Loyola, segundo os historiadores em decorrência da devoção dos tamandareenses a Santo Inácio. Nele ainda podem ser vistos canhões originais voltados para a baía de Tamandaré, a fonte no meio do pátio, um farol construído posteriormente e a Capela de Santo Inácio – a mais antiga do município, construída no século 18 – onde são rezadas missas semanais.

A saga de Tamandaré

Embora tenha sido batizada muito antes da chegada dos portugueses, Tamandaré passou por muitos estágios até tornar-se Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAuma cidade independente, no final do século 20. Antes do ano 1.000, era habitada por índios de idioma macro-jê que foram expulsos pelos Caetés, vindos da Amazônia. No início da colonização, tornou-se uma grande propriedade rural que adotou o nome indígena do lugar e, pouco a pouco, uma vila de pescadores foi se formando à beira-mar. Em 1905, a povoação foi elevada a distrito de Rio Formoso e somente em 1995 é que tornou-se um município.

Com sua antiga sede, Tamandaré compartilha a história de luta entre portugueses e holandeses. Quem passeia de barco pelo estuário que banha os dois municípios, avista uma grande cruz no alto de um morro localizado em Rio Formoso. É o monumento à Batalha do Reduto – episódio em que os holandeses destruíram um forte de campanha e mataram um batalhão inteiro, deixando escapar apenas o comandante, que é homenageado, anualmente, no dia 7 de fevereiro.

Museu Quilombola - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAOs dois municípios podem dividir, também, a atenção dos visitantes que se interessam por igrejas. Em Tamandaré, além da Capela de Santo Inácio, localizada dentro do forte, destaca-se ainda a Capela de São Benedito, em sua famosa Praia dos Carneiros, que virou cartão postal do município. Já em Rio Formoso, o foco está distribuído entre três igrejas: a de São José, que fo construída no século 17, dentro de uma propriedade rural, e tornou-se a igreja matriz da cidade; a de São Benedito, destinada aos escravos; e uma terceira dedicada a Nossa Senhora do Livramento – um dos títulos dado à mãe de Jesus em alusão à sua capacidade de interceder pelos pecadores.

Rio Formoso abriga, ainda, a Comunidade Quilombola do Engenho Siqueira – reconhecida pela Fundação Palmares – que reúne 150 famílias remanescentes de escravos vindos de mais de 20 engenhos da região depois da decretação da Lei Áurea. Entre as particularidades da comunidade está um museu, ainda em formação, que reúne ferramentas de trabalho, utensílios domésticos e outras peças utilitárias dos quilombolas, em um quartinho que fica grudado à casa de seu organizador – o funcionário público e artesão Moacir Correa de Santana.

A Tamandaré das águas

Talvez por afinidade com o mito do dilúvio, que deu nome ao lugar, Tamandaré tem uma história marcada pelas águas. Era pelo mar que, no século 16, chegavam os invasores. Foi através do mar que se propagou até ali a turbulência provocada pelo terremoto de Lisboa, em 1755, matando dois moradores. E é por causa de suas águas calmas e transparentes que a pequena cidade tem sua população triplicada no verão por turistas que procuram a paradisíaca Praia dos Carneiros e outras menos conhecidas, ao longo dos 16 km de orla.3

Notas

  • 1 A lenda do dilúvio, com pequenas variações, é conhecida por várias povos inclusive outras tribos indígenas do Brasil
  • 2 No Dicionário de Tupi-Guarani da Funai não consta esse vocábulo nem qualquer de suas variações

Tamandaré – Pernambuco – Brasil – América do Sul

Texto

Fotos

  • (1, 2, 4, 5, 6, 7, 8 e 9) Sylvia Leite
  • (3) Acervo do Forte Santo Inácio de Loyola

Referências

  • Livro: Tamandaré, A história de um município, de Maria do Carmo Ferrão Santos

Consultoria:

  • Maria do Carmo Ferrão Santos, bióloga e estudiosa da história de Tamandaré
  • Manoel Pedrosa, secretário de Meio Ambiente de Tamandaré
Obs: Todos os vídeos são do canal Historiando Tamandaré de Maria do Carmo Ferrão Santos

Apoio:

  • Busy e João Luís

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sonia pedrosa cury
4 anos atrás

Sylvinha, muito legal, conhecer essa história! Adorei!
Um beijo grande,
sonia pedrosa

Val Cantanhede
4 anos atrás

Que delícia de matéria, Sylvinha!
Da próxima vez que viajar à Pernambuco irei conhecer Tamandaré.
Abraços
Val Cantanhede

Unknown
4 anos atrás

Lugar lindo, mas não sabia destas histórias e lendas.

Unknown
3 anos atrás

Conheço Tamandaré, sou de Pernambuco e duas vezes ao ano visito a cidade! Quem vier visitar ficará maravilhado, venham pois! Vc falou tudo, foi muito feliz nas declarações. Um abração!

Mairim serafini
3 anos atrás

Já fui a Tamandaré a passeio e nunca soube da história da cidade. obrigada por ter compartilhado de um modo tão didático e interessante. 🙂

Lucimeri Luz
Lucimeri Luz
1 ano atrás

Obrigada por compartlhar nossa história, sou Marinheira e fiquei feliz com a menção ao nosso Patrono.