Atualizado em 30/04/2024 por Sylvia Leite
Quando foi construído, em 1971, e batizado com o antigo nome, do ex-presidente Costa e Silva, o elevado conhecido como Minhocão, e hoje denominado João Goulart, era mal visto por grande parte da população de São Paulo, especialmente por aqueles que viviam na região central, onde está localizado. Ao longo dos anos, o Minhocão foi sinônimo de barulho, poluição e risco de acidentes, o que fez muita gente reivindicar sua demolição. Mas enquanto a polêmica se desenrolava, artistas de rua foram ocupando o espaço e fazendo dele uma galeria de arte a céu aberto. Pouco a pouco, outras manifestações artísticas e políticas foram tomando conta do lugar e a via maldita ganhou status de corredor cultural.
Os grafites estão por toda parte. Alguns encobrem as pilastras do próprio viaduto e podem ser vistos por quem circula por baixo. Outros estão nos prédios localizados em suas margens e para admirá-los é preciso passar por cima do elevado. Isso sem falar nos jardins verticais que surgiram na região e em outras manifestações artísticas, como desenhos no chão ou painéis com bordados e outras técnicas.
Minhocão: uma ocupação crescente
O uso do minhocão como suporte para arte de rua ganhou impulso em 1989, quando passou a ser fechado aos domingos para trânsito de veículos. A partir daí, o espaço começou a ser frequentado por moradores do centro e também de outras regiões e tornou-se uma área de lazer, onde se faz caminhadas, passeios de bicicleta e diversas outras atividades, inclusive manifestações culturais e políticas. Daí para sua consolidação como corredor cultural foi um processo natural.
O Minhocão atraiu também, o pessoal das artes cênicas. A peça de teatro ‘Esparrama pela Janela’, por exemplo, teve como palco a sala de um apartamento localizado à margem do MInhocão. As cenas eram feitas da janela para um público que se acomodava na o chão do elevado. O espetáculo foi montado pelo Grupo Esparrama, voltado para a pesquisa de interação entre teatro, infâncias, cidade e educação.
Além de se tornar suporte ou mirante para arte de rua, de servir como espaço de lazer e de acolher todo tipo de manifestação, o Minhocão, a partir de certo momento, passou a ser personagem e cenário de produções artísticas. Exemplo disso é o livro ‘Um viaduto chamado Minhocão’, escrito por Gil Veloso e ilustrado por Paulo Von Poser. Nele, o elevado se reveza nos papéis de personagem e cenário, criando uma plasticidade que traduz a própria versatilidade atual do lugar.
Minhocão: um estorvo no Centro
Para quem não sabe, o Minhocão é um viaduto de 3,4 km de extensão que liga as vias de acesso às zonas Leste e Oeste de São Paulo, atravessando o centro da cidade por cima de ruas, praças e avenidas, entre a quais se encontra a famosa Avenida São João, que Caetano Veloso imortalizou em sua música Sampa. Foi construído com o objetivo de solucionar os graves problemas de trânsito do centro de São Paulo, mas, segundo seus críticos, sem levar em conta os transtornos que traria para os moradores da região.
As duas pistas que compõem o elevado estão localizadas a apenas cinco metros das janelas dos prédios residenciais que se encontram em suas margens, impactando os moradores com poluição sonora e visual. Os problemas previstos pelos especialistas, já foram claramente expostos no dia da inauguração, quando houve o seu primeiro e inesquecível congestionamento.
Solução ou problema?
O Minhocão foi idealizado por Luiz Carlos Gomes Cardim Sangirdadi, na época arquiteto do Departamento de Urbanismo da Prefeitura de São Paulo e sua proposta seguia uma tendência mundial do século 20: a tentativa de solucionar problemas de tráfego urbano com a construção de elevados. Aqui mesmo, no Brasil, havia sido inaugurado cerca de uma década antes, no Rio de Janeiro, o Elevado da Perimetral que acabou se transformando em uma das principais vias da cidade. A proposta era ligar os principais entroncamentos rodoviários e possibilitar o acesso direto ao Aeroporto Santos Dumont e à Ponte Rio-Niterói, mas além dos problemas comuns a esse tipo de obra, sempre foi acusado de comprometer a estética do histórico bairro da Gamboa e de bloquear a visão da cidade para quem vinha do mar e do mar para quem estava na cidade.
Se, por um lado, gestores de várias partes do mundo optaram por esse tipo de solução, por outro, na época em que surgiu o projeto do Minhocão já havia uma reação contrária a esse tipo de projeto. Na década anterior, por exemplo, ativistas liderados pela jornalista Jane Jacobs mobilizaram a população de Nova Iorque e conseguiram impedir a construção do Lower Manhattan Expressway – uma via expressa que cortaria a cidade provocando a demolição de bairros inteiros.
O projeto do Minhocão não previa tantas demolições quanto as do similar norte-americano, nem teve uma oposição popular significativa enquanto ainda estava no papel – talvez por falta de canais para divulgação das críticas – mas sempre enfrentou a oposição quase unânime de engenheiros e arquitetos, além de ter sido recusado pelo prefeito da época, o Brigadeiro José Vicente de Faria Lima. Foi o polêmico Paulo Maluf que, em sua gestão, resgatou o projeto engavetado pelo seu antecessor.
Na direção oposta
Mas se nas décadas de 60 e 70, havia uma corrente que defendia a construção desses elevados como solução para os problemas de trânsito, hoje há uma outra corrente que defende o aproveitamento de obras indesejáveis, ou que caíam em desuso, transformando-as em espaços culturais ou de lazer, na maioria das vezes tendo em vista a questão ambiental e a necessidade de se aumentar as áreas verdes nas grandes cidades.
Um dos exemplos mais conhecidos dessa tendência é o Highline Park, de Nova Iorque, construído sobre uma linha férrea desativada e que acabou se tornando quase tão conhecido quanto o Central Park. Em comum com o Minhocão, a antiga linha férrea de Manhatan tem pelo menos depois pontos: o primeiro é o fato de ser é uma via elevada que já trouxe muitos problemas aos moradores da área onde está localizado. O segundo é o fato de dividir opiniões. Assim como o elevado de São Paulo, o Highline era defendido por alguns grupos e rejeitado por outros que reivindicavam sua demolição.
Se em Nova Iorque, venceram os defensores do parque, no Rio de Janeiro, o Elevado da Perimetral foi totalmente implodido entre 2013 e 2014, embora também existissem defensores de outras soluções como jardins suspensos ou linhas de trens silenciosos. Para viabilizar a escolha, o Rio precisou receber novas vias. Como consequência das implosões, a cidade recuperou a vista do mar e liberou espaço para a implantação do Porto Maravilha – um polêmico projeto de revitalização do Porto do Rio de Janeiro, que tinha como principal objetivo criar uma área turística para receber atletas e público da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016.
O Minhocão e seu destino incerto
Em São Paulo, ainda não há nada definido, embora, em 2018, tenha sido aprovado na Câmara Municipal, o projeto de Lei que cria o Parque do Minhocão e no ano anterior o urbanista Jaime Lerner tenha doado à Prefeitura de São Paulo um projeto arquitetônico para a construção do parque1. Há, ainda, uma organização criada com o objetivo de fazer a transformação do elevado: a Associação Parque Minhocão. Ocorre que a aprovação do projeto de Lei deu início a uma guerra de liminares que embargam e liberam o andamento do processo, prolongando, ainda mais, uma discussão que já dura algumas décadas.
Uma pesquisa realizada pelo Datafolha em setembro de 2020 mostra que mais da metade dos paulistanos preferem manter o Minhocão com o funcionamento atual: via expressa em horário comercial e área de lazer durante as noites e fins de semana. A construção do parque é apoiada por 30 por cento dos moradores e a demolição por apenas 7 por cento.
Outras propostas, como a criação de um corredor de lojas na parte de baixo, já foram levantadas, algumas delas por professores e estudantes universitários envolvidos em projetos voltados, especialmente, à busca de alternativas para o Minhocão, mas nada parece encontrar uma direção definitiva. Prova das incertezas foi a convocação de um plebiscito para 2022, que também não é aceito por todos.
Enquanto espera uma definição sobre o futuro do elevado, a população usufrui do local e vai moldando naturalmente o seu uso. No segundo semestre de 2021, por exemplo, o Minhocão passou a viver uma nova fase, ao receber bancos móveis, colocados pela Prefeitura de São Paulo, que lhe conferem uma feição de parque nos fins de semana. Agora, além de atrair caminhantes, artistas e manifestantes, está pronto para receber, também, aqueles que apenas querem sentar-se ao ar livre para conversar ou tomar sol. E oferece mais conforto aos que, depois da caminhada, só tinham os batentes do elevado ou o próprio chão para descansar.2
Notas
- 1 Na verdade existem vários projetos e houve inclusive concurso com grande número de competidores
- 2 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares especiais de São Paulo: Galeria do Rock, Bixiga / Viaduto do Chá / Vila Itororó / Liberdade / Theatro Municipal / Pavilhão da Bienal / Parque Augusta
Minhocão – Centro – São Paulo – São Paulo – Brasil – América do Sul
Fotos
Referências
Saio sempre muito mais bem informado, por uma leitura tua.
Excelente texto.
Muito obrigado.
Obrigada, Joaquim. Que bom que gostou. Volte sempre.
SAMPA. Cada canto, uma história que mostra a evolução da cidade e o seu progresso contínuo.
Verdade, Sidney. É uma cidade vibrante.
Que texto bacana! Parabéns . Adorei saber mais sobre o MInhocão de viaduto a maldito corredor cultural. Eu só estive ai uma vez, quero voltar e vê como ficou agora.
Você vai gostar, Hebe. Está cada vez mais acolhedor.
Eu passava sempre por ali e ficava imaginando como aquelas pessoas aguentava viver com aquele barulho ensurdecedor dos carros. No fim de semana e à noite, é verdade, a coisa melhorava, mas quem tinha que passar o dia em casa… meu Deus…e esses projetos que demoram a sair do papel. Vamos torcer.
É, e enquanto não se concretiza nenhuma ação definitiva, a comunidade vai ocupando o local.