Atualizado em 01/05/2024 por Sylvia Leite
Tempos atrás, na região do Baixo São Francisco, mais precisamente nos arredores do município alagoano de Pão de Açúcar, alguém decidiu que o corpo de uma ‘menina inocente’ de 13 anos, morta de uma doença rara, não poderia ser levado para o mesmo lugar onde estavam enterrados ‘os adultos pecadores’.
A partir daí, toda criança que morria na região era enterrada em uma ilhota localizada entre a Ilha do Ferro (município de Pão de Açúcar) na margem alagoana do rio, e ao povoado de Bonsucesso (município de Poço Redondo), na margem sergipana. E foi assim que o lugar, batizado oficialmente como Ilha de Belmonte ou Ilha de Belo Monte, passou a ser conhecido como Ilha dos Anjos.
As surpresas da Ilha dos Anjos
Quem chega na festejada Ilha do Ferro, recebe logo a indicação de atravessar o São Francisco de canoa e aproveitar o banho de rio nessa ilhota, onde a água é cristalina e, segundo qualquer morador consultado, livre de qualquer risco de ataque de piranhas. Mas é preciso mostrar alguma curiosidade para que os nativos revelem este e outros segredos do lugar.
O cemitério da Ilha dos Anjos fica escondido atrás da vegetação, de modo que um visitante desavisado dificilmente o descobrirá. Mas quem sabe de sua existência, ou quem vai até lá na companhia de um nativo, não tem dificuldade de acessá-lo. Basta subir uma duna bastante visível a partir da praia e, em poucos metros, surge a trilha ao longo da qual as covas eram abertas.
A área do cemitério não tem seus limites demarcados e não se consegue mais identificar a maioria das covas – muitas delas já bastante antigas e aparentemente abandonadas. Mas, segundo o barqueiro Israel Sandes, conhecido como Dão, que nos conduziu ao local, até hoje ainda há um ou outro enterro na Ilha dos Anjos, embora já faça muito tempo que as crianças passaram a ser enterradas no mesmos cemitérios que os adultos.
A surpresa maior da Ilha dos Anjos talvez seja descobrir que, para proteger espiritualmente as crianças enterradas no local, os ribeirinhos construíram uma capela devotada a São Francisco, santo protetor dos animais e padroeiro do rio onde está localizada a ilha. A capela abriga atualmente duas imagens: uma do próprio São Francisco e outra de Padre Cícero – religioso que viveu no Cariri Cearense e, embora não tenha sido canonizado, tornou-se uma importantíssima referência de fé.
Segundo Dão, a capelinha da Ilha dos Anjos já abrigou, também, pelo menos mais uma imagem: a de Nossa Senhora do Perpétuo do Socorro, que teria sido retirada por um morador de Bonsucesso por causa do estado de destruição em que se encontrava a capela. Depois que a pequena construção foi restaurada, em 2021, por iniciativa dos próprios ribeirinhos, moradores de Bonsucesso tentaram resgatar a imagem, mas não conseguiram descobrir seu paradeiro.
Nossa Senhora do Perpétuo Socorro é uma das mais populares santas de devoção na região do Baixo São Francisco, para quem os moradores da região costumam fazer uma procissão de barcos no dia 11 de janeiro. Há procissões, também, no dia 4 de outubro, em devoção a São Francisco, ou quando algum fiel resolve pagar uma promessa. Caso de um morador da margem sergipana, chamado Valdir, que, segundo se comenta em Bonsucesso, já comprou uma imagem de São Sebastião e está organizando uma procissão para levá-la até a capelinha da Ilha dos Anjos.
A história que ninguém esquece
Do alto da duna onde fica a Capela de São Francisco, mais algumas surpresas. A primeira é uma linda vista do Velho Chico e da Ilha do Ferro. Mais impressionante, no entanto, são os vestígios de um naufrágio ocorrido em 10 de janeiro de 1917, que também podem ser avistados do topo da duna.
O veículo afundado foi o Moxotó1 – uma embarcação do tipo Chata, que fazia a linha de Piranhas a Penedo.
Há mais de uma versão sobre esse naufrágio. A mais comum afirma que o rio estava agitado, cheio de ondas e que o barqueiro foi aconselhado a não sair no meio da tempestade, mas não deu importância aos avisos e acabou afundando ao lado da Ilha dos Anjos.
Mas a artesã Noemi Lima Silva, da Ilha do Ferro, tem uma narrativa diferente. Ela conta que o bispo de Propriá teria pedido ao barqueiro que esperasse para ‘bordejar’ com Bom Jesus dos Navegantes, mas ele respondeu que tinha o barco para carregar pessoas e não pedaços de pau. Então um frade teria dito que ele ia, mas não voltava. Segundo Noemi, a praga pegou e o barco afundou.
Não se sabe ao certo quantas pessoas havia na embarcação, mas pelo que se conta na Ilha do ferro, podem ter morrido cerca de 15 pessoas. Segundo alguns relatos, apenas uma velha escapou indo parar em Bonsucesso, do lado de Sergipe. Outros acreditam que seis pessoas conseguiram escapar.
Apesar da imprecisão dos dados, que variam de narrador para narrador, o acidente continua vivo na memória dos moradores da Ilha do Ferro, de Bonsucesso e de outros povoados da região. Tem até quem lembre de uma cantiguinha que alude ao naufrágio:
Dia 10 de janeiro/ grande anafrago se deu/no morro do Belo Monte/ a Moxotó se perdeu. / Pedimos todos a Deus/ com o joelho no chão/ afundou-se a Moxotó/ com toda a tripulação.2
Notas
- 1 O nome Moxotó alude a uma raça de caprinos comum no Nordeste
- 2 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares especiais à margem do Velho Chico: Ilha do Ferro /Piranhas / Penedo / Grota de Angico / Museu de Xingó / Fazenda Mundo Novo / Museu do Sertão / Parque dos Falcões / Horto de Caípe Velho
Pão de Açúcar – Margem do Rio São Francisco – Alagoas – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1,2,3,5 ) Sylvia Leite
- (4) Israel Sandes Teixeira (Dão), barqueiro e artesão (79 -99960-4313)
- (6) Abílio Coutinho, Domínio Público
Referências
- livro Um Jeito de Olhar, de Fernando Rodrigues Santos
- Texto O destino de Moxotó, de Etevaldo Amorim, no site Expressão Sergipana
Participação especial
- Joana Wanderley, da Miúda
- Bia Wanderley
- Moacir Wanderley
- Helena Wanderley
- Israel
- Noemi Lima Silva
Agradecimentos
- Israel Sandes Teixeira (Dão)
- De Lourdes
- Noemi
Amei conhecer essa história! Deu vontade de ir lá!
Pois então vá. Você não vai se arrepender. Você vai à Ilha do Ferro e faz o passeio para a Ilha dos Anjos.
Muito bom! Curiosidade e interesse despertados. Parabéns!
Obrigada,Vânia. Não é difícil despertar a curiosidade e o interesse por um lugar como a Ilha do Ferro. só fiz contar o que existe por lá.
Não tinha conhecimento sobre o cemitério. São tantas histórias que ainda não sabemos. Parabéns pela matéria. Sobre o Moxotó tive conhecimento com as lavadeiras do São Francisco anos atrás.
Valeu, Cassandra. São realmente muitas histórias e essa do cemitério não é contada em cada esquina. Como disse no texto, a ILha dos Anjos é divulgada pelos nativos da região como um bom lugar para banho. Eles ainda não e deram conta da poesia que tem esse lugar.
Eu também nunca tinha ouvido falar na ilha dos Anjos. Descobri quando cheguei na Ilha do Ferro.
Que história linda sobre a Ilha dos Anjos. Acredito também que foi de uma sabedoria terapêutica a idéia de sepultar crianças em um local especial. Parabéns Sylvia pela sensibilidade poética.
Obrigada, Gusta. A ILha dos Anjos é realmente encantadora.
Que interessante, Sylvinha, nunca tinha ouvido falar nessa ilha e nem nesse cemitério. Quanta coisa a gente precisa conhecer, viu?!
A história da Ilha dos Anjos ou Ilha Belmonte é totalmente diferente do povo de BONSUCESSO. Bonsucesso é a comunidade em frente à Ilha do Ferro. A história religiosa/cultural do povo Bonsucessense com a Ilha dos anjos é de total respeito, até porque até hoje as crianças que morrem sem o batismo são chamadas de anjos e assim são enterradas no cemitério que está localizado na Ilha Belmonte. Até hoje, não tem história de crianças de outras comunidades veladas no cemitério dos anjos.
Outra história cultural/religiosa dos ribeirinhos são as festa de Bom Jesus dos Navegantes em maioria das cidades que estão às margens do Rio São Francisco. Nossa Senhora de Perpétuo Socorro é a imagem ao qual os religiosos faziam preces, e não a São Francisco. A imagem de São Francisco de Assis foi levada para a ilha em comemoração ao seu dia na data de 04 de outubro.
Obrigada por sua contribuição, João Santos.