Cordisburgo: um mergulho no Grande Sertão de Rosa

Tempo de Leitura: 9 minutos

Atualizado em 12/09/2024 por Sylvia Leite

Portal_em_Cordisburgo-Foto_de_Sylvia_Leite-BLOG_LUGARES_DE_MEMORIAO seguinte dizer do personagem Riobaldo, no romance “Grande Sertão: Veredas“, parece reverberar na pequena Cordisburgo, localizada a 120 km de Belo Horizonte:

o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.

Pois ali é bem assim: os moradores, as histórias e até as impressões que vamos construindo do lugar transformam-se a cada instante, sob a influência da magia e das ambiguidades do sertão.

Cordisburgo é a terra natal de Guimarães Rosa e, apesar dele ter passado grande parte de sua vida em outras paragens, sua obra está presente em cada canto da cidade. As referências estão nas lojas, banquinhas de artesanato, restaurantes e se materializam em vários suportes: desde lembrancinhas para turistas até cartazes que Retaurante_Sarapalha_em_Cordisburgo-Foto_de_Sylvia_Leite-BLOG_LUGARES_DE_MEMORIAexibem trechos de contos ou romances.

Algumas vezes a menção está no nome do próprio estabelecimento. Caso do restaurante Sarapalha, que além de ser batizado com o título de um conto do livro Sagarana1, tem decoração temática que inclui uma escultura do escritor e quadros ou painéis com textos informativos sobre a obra.

A homenagem mais expressiva talvez seja a ‘loja’ de José Osvaldo dos Santos, conhecido como Brasinha. O lugar já foi uma loja de verdade, que vendia de tudo, mas hoje é uma espécie de armazém entupido de cacarecos e nenhum deles está à venda. Misturados aos objetos, estão inúmeras placas com frases dos personagens de Rosa.

Antiga_loja-museu_Ave_Palavra-Foto_de_Sylvia_Leite-BLOG_LUGARES_DE_MEMORIADe início, a loja de mentira, que mais parece um museu, foi apropriadamente batizada com o nome “Ave Palavra” – título de um livro póstumo do escritor – uma coletânea de vários tipos de textos que ele próprio havia definido como uma miscelânea.

Mas como em Cordisburdo – e na própria vida – as pessoas e as coisas ” ainda não foram terminadas”, a ‘loja’ de Brasinha cresceu, mudou de lugar e agora se chama Recordança. As peças maiores, que nem cabiam na loja anterior, agora enfeitam o jardim da nova casa.

Brasinha dá vida ao lugar contando a história de cada peça, relatando causos da região e citando trechos das obras de Rosa. Ao ouvi-lo, temos a sensação de que andando pela cidade iremos nos deparar com os personagens de algum daqueles livros.

a_loja-Foto_de_Sylvia_leite-BLOG_LUGARES_DE_MEMORIAInfelizmente, ali não vive mais nenhum deles. Todos já se encantaram, como dizia o próprio Rosa. Então o jeito é encompridar a conversa e conhecê-los pelos relatos de Brasinha e de outros contadores.

O comerciante Geraldo de Cunha Castro, por exemplo, conta que conheceu Juca Bananeira e Manuelzão. O primeiro foi amigo de infância de Guimarães Rosa e ganhou esse apelido porque veio de Bananal, um vilarejo perto de Curvelo. Já Manuelzão, era de Dom Silvério, e só conheceu o escritor quando ele voltou à região, em 1952, para fazer a pesquisa que fundamentaria as obras Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile, lançadas quatro anos depois.

Geraldo conta que, nessa época, Manuelzão trabalhava para um primo de Rosa, Chico Moreira, e foi um dos companheiros do escritor na famosa viagem realizada, que ficou conhecida como “A Boiada”.

Geraldo_Castro_em_sua_loja-Foto_de_Sylvia_Leite-BLOG_LUGARES_DE_MEMORIAAntes de partirem, Rosa teria passado uns dias na fazenda onde Manuelzão vivia com a família e um de seus filhos, ainda criança, teria se impressionado “com aquele homem bobo que andava com uma caderneta pendurada no pescoço anotando tudo o que via”.

Tanto Geraldo como Brasinha conheceram todos os vaqueiros que tocaram aquela boiada, sem ter a menor ideia da dimensão histórica do que estavam vivendo. Segundo Brasinha, tempos depois da viagem, o vaqueiro Zito, já velho, teria feito a seguinte confissão: “Esse homem, o João Rosa, nos ensinou a ver a beleza das coisas”.

A viagem, é claro, rendeu muitas histórias, mas contar isso aqui agora exigiria outras tantas postagens. E Cordisburgo tem ainda muitos aspectos a serem explorados.

O Museu Casa de Rosa

A memória fragmentada das ruas faz contraponto com a morada oficial das recordações: o museu Casa de Guimarães Rosa, montado na casa em que o escritor nasceu e passou seus primeiros nove anos. Nele estão Museu-Casa_de_Guimarães_Rosa-Foto_de_Sylvia_Leite-BLOG_LUGARES_DE_MEMÓRIAconcentrados os poucos objetos que restaram, como a máquina de escrever, as gravatas borboletas e alguns móveis do armazém de secos e molhados de seu Florduardo, pai de Rosa, em meio a reconstituições cenográficas.

O museu também guarda a memória das obras, com painéis que reproduzem trechos de contos e romances e apresentam capas das principais edições. Isso sem falar na estante especial que reúne as edições mais importantes de cada obra.

Logo na entrada da casa, uma surpresa: quem nos guiará pelos vários cômodos do museu é uma menina de apenas 10 anos. O texto parece decorado, mas quando começamos a fazer perguntas, descobrimos que a jovem guia sabe do que está falando e responde tudo sem pestanejar. Ao final da visita, oferece um presente: a narração do episódio da morte do Dito, no conto Campo Geral da obra Corpo de Baile.

O Grupo Miguilin de Cordisburgo

a_guia_mirim_do_Museu-Foto_de_Sylvia_Leite-BLOG_LUGARES_DE_MEMORIALuana Mattana Rezende é apenas uma das várias crianças e adolescentes que fazem esse trabalho voluntário no Grupo Miguilin – batizado assim em alusão ao personagem central do conto Campo Geral, que alguns dizem ser autobiográfico. Para chegar a essa condição, ela cumpriu alguns requisitos: tinha que estar na escola, ter boas notas e precisou se preparar durante quase três anos.

O treinamento é feito pelas diretoras do grupo e também contadoras Dôra Guimarães e Elisa Almeida. Elas herdaram a função de Calina Guimarães que, anos atrás, recuperou o museu de um estado de abandono e, com a ajuda das duas, deu início ao grupo.

O primeiro passo é explicar aos meninos a obra a ser trabalhada porque, como lembra Dôra, “quando você não entende o que está falando, as pessoas que ouvem também não vão entender”. Depois vêm as leituras, que vão se repetindo até os meninos conseguirem atingir uma dramaticidade natural. “A narração só fica boa quando já está Grupo_Miguilin_narrando_textos_de_Rosa-Foto_de_Sylvia_Leite-BLOG_LUGARES_DE_MEMORIAinternalizada a ponto de você não se preocupar mais com o texto”, esclarece Dôra.

As vozes suaves e a discreta interpretação desses meninos nos ajudam a digerir com maior facilidade obras festejadas pela originalidade e pela riqueza de linguagem, mas que causam uma estranheza capaz de dificultar a compreensão e fazer até mesmo os ‘bons leitores’ as abandonarem nas primeiras páginas.

Com suas narrações, os Miguilins vão fazendo as pessoas internalizarem a linguagem e se acostumarem com ela, de modo que a leitura, antes árida, torna-se uma viagem poética.

A obra máxima

“Grande Sertão:Veredas”, como muitos sabem, incorpora elementos de várias culturas e fala de questões universais como a origem e o destino do homem; o bem e o mal; Deus e o diabo; tendo como fio condutor uma história de amor – um amor que se mostra proibido do começo ao fim do livro, embora o alegado motivo daCapa_do_romance_Grande_Sertão_Veredas-Foto_divulgação-BLOG_LUGARES_DE_MEMORIA proibição de fato não existisse.

Riobaldo, um ex-jagunço que se tornou proprietário de terras, relata um período de sua vida localizado entre a infância e o momento em que abandonou essa experiência paramilitar.

Toda a história é costurada por sua relação com um colega “diferente”, iniciada quando ainda eram crianças:

O menino tinha me dado a mão para descer o barranco. Era uma mão bonita, macia e quente, agora eu estava vergonhoso, perturbado.

Daquela época até a idade adulta, Diadorin foi a razão de sua alegria e de seu sofrimento, de sua satisfação e de suas dúvidas:

Diadorim e eu, nós dois. A gente dava passeios. Com assim, a gente se diferenciava dos outros – porque jagunço não é muito de conversa continuada nem de amizades estreitas.

Guia_mirim_mostra_maquina_de_Rosa-Foto_de_Sylvia_Leite-BLOG_LUGARES_DE_MEMORIAAté o dia em que a morte traz a revelação:

Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita… Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa.

A história é contada com sotaque sertanejo, ora existente, ora inventado, mas tudo dentro da lógica da paisagem e do povo do lugar. Tanto que para os nativos de Cordisburso e das cidades vizinhas, pelo menos para os que gostam de ler, nunca foi difícil chegar até a última página.

Para os que olham de fora, “Grande Sertão:Veredas” é um livro escrito em linguagem original e inovadora, que consegue fundir elementos da primeira fase do Modernismo – marcada pelo experimentalismo linguístico – com traços da segunda fase, que traz à tona os temas regionalistas. Foi o único livro brasileiro incluído na lista dos 100 melhores de todos os tempos elaborada pelo Clube do Livro da Noruega, que congrega editores daquele país. É a obra principal de Rosa, mas não é a única. E o povo de Cordisburgo sabe disso, tanto que as referências espalhadas pela cidade remetem a várias obras.

A trajetória de Rosa

João Guimarães Rosa, como muitos escritores, teve mais de uma profissão. A escrita veio cedo, antes mesmo de entrar para a faculdade. Ele formou-se médico em Belo Horizonte e começou a trabalhar perto de casa, em Guimarães_Rosa-Foto_divulgação-BLOG_LUGARES_DE_MEMORIAItaguara, então município de Itaúna. Consta que foi lá onde ele estabeleceu contato com os elementos do sertão que mais tarde inspirariam grande parte de sua obra.

Ainda como médico, trabalhou também para a Força Pública, atual polícia Militar, e morou em outros dois municípios mineiros: Passa Quatro e Barbacena. Poucos anos depois foi aprovado em um concurso do Itamaraty, indo servir como diplomata em Hamburgo, na Alemanha, e em seguida em Bogotá e Paris. Como escritor, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras e indicado ao prêmio Nobel de Literatura.

Conta-se que além das pesquisas que fez diretamente, Rosa teve a colaboração de diversas pessoas, a quem pedia informações do sertão por meio de cartas. Entre os colaboradores estava seu próprio pai.

Rosa era um grande estudioso de línguas. Falava umas seis ou sete, lia em três ou quatro e conhecia a gramática de outras dez ou onze. Talvez por isso, tenha inventado com tanta facilidade a linguagem do “Grande Sertão:Veredas” e sentido tanta necessidade de variar:

Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente.

Calendário rosiano de Cordisburgo

Leitura_coletiva_ duranre_ a_Semana_ Roseana-FOoto_de_Sylvia_leite-BLOG_LUGARES_DE_MEMORIAPor causa de Rosa, a pequena Cordisburgo tem uma constante atividade cultural. Além do museu, que se torna vivo pela atuação dos Miguilins, há também os contadores adultos e o grupo de bordados, iniciado na cidade e espalhado por outros cantos como, por exemplo, São Paulo.

Uma vez por ano, é celebrada a Semana Rosiana, com diversas atividades que incluem oficinas, palestras, cursos, exposições, apresentações e caminhadas literárias. O encontro é realizado há 30 anos e reúne um público fiel, que se aprofunda a cada ano no estudo da obra de Rosa, com rodas de leitura, narrações e saraus.

E como aqui se sabe que as pessoas não estão terminadas, acaba de ser anunciado o tombamento de uma casa antiga, ao lado do museu, para que artistas e pesquisadores possam fazer residência literária e estudar ainda mais a obra de Rosa. Nessa nova parte funcionará também a sede dos Miguilins, afinal,

…no sertão, o que uma pessoa pode fazer do seu tempo livre a não ser contar estórias?2

Notas

Para saber mais

Cordisburgo – Minas Gerais – Brasil – América do Sul

Texto

Fotos

  • (1,2,3,4,5,6,7,8,10,12) Sylvia Leite
  • (9) Capa de livro
  • (11) Foto de domínio público
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40 Comentários
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Virginia Finzetto
6 anos atrás

Parabéns,querida… Fiquei ainda mais próxima do Rosa, um ser tão veredas! bj

Maria Helena
6 anos atrás

Gostei muito. E sempre que leio sobre um escritor, fico pensando como Hugo iria curtir.Estou aprendendo e conhecendo muitos lugares. Obrigada por me propocionar essa oportunidade.

Unknown
6 anos atrás

Da a maior vontade de sertanear… Ainda oassarei oir ai!!!

Márcia Mattana
Márcia Mattana
6 anos atrás

Muito legal a reportagem.
Obrigada por essa visão linda de Cordisburgo.
Já dizia Guimarães: "Cordisburgo quase um lugar, tão de repente bonito"
Luana Mattana Rezende se sentiu prestigiada por aparecer na reportagem. E eu fiquei ainda mais orgulhosa.

Unknown
6 anos atrás

Parabéns pela escrita tao bem retratada da nossa pequena gigatesca cordis

Unknown
6 anos atrás

Parabéns pela escrita tao bem retratada da nossa pequena gigatesca cordis

Margareth
6 anos atrás

Gente, que lugar incrível! Histórias vivas, respiram cultura por todos os lados ��

Maria Thereza Rocha
Maria Thereza Rocha
6 anos atrás

Terra da minha família, meu pai Pedro Rocha, meu avô Alfredo Rocha,meu m muitos tios. Terra da minha infância, do primeiro namorado, da minha vida adulta. Terra do meu coração.

hilda
6 anos atrás

Yesss…sempre uma delícia! Gracias

Laura Alves
6 anos atrás

Muito bom, Sylvinha! Da próxima vez me avise com antecedência que eu quero ir também!

Restaurante Sarapalha
6 anos atrás

Que texto maravilhoso. Muito detalhado e rico em detalhes.

Moises
6 anos atrás

Que beleza, Sylvia. Tem-se a impressão de que você captou todo o espírito do sertão de Rosa. E, claro, das pessoas que continuam a viver nos moldes dos personagens de sua obra. Foi uma alegria estar com você nesses dias todos. Gostei muito de sua escrita. Apenas duas pequenas observações: 1. o nome da pessoa que teve a ideia que deu origem ao grupo miguilim é Calina e não Calima como apareceu no texto [erro de digitação, quiçá, que passou batido]; e 2. a grafia de adjetivos derivados de nomes próprios, de acordo com a nova ortografia, determina que se utilize o "i", e não o "e", conforme se usava anteriormente. Assim, em lugar de "roseana/o", o correto, já corrigido inclusive pelos organizadores da semana é "Semana Rosiana", apesar da gritaria geral dos apegados à tradição. Parabéns. Grande beijo.

Unknown
6 anos atrás

Oi Sylvia!
Delicia de texto! Pra quem está, ainda, tirando a poeira do sertão atiça as lembranças e já chama a saudade . E acredito que conta lindamente como é a "cidade do coração" para quem não a conhece. Muito bom ter conhecido você !
Beijos e até a próxima aventura ( quem sabe em África? ) …..

Unknown
5 anos atrás

Linda matéria, adorei ver a foto do meu amigo Brasinha homem muito.

luizcorreiasantos
4 anos atrás

por favor ! rsrsrs não é uma crítica, mas só achei estranho nenhuma menção a fantástica gruta de Maquiné, descoberta pelo naturalista dinamarquês Peter Willen Lund

Regina Célia de Oliveira
4 anos atrás

Que beleza Sylvia! Que bom saber sobre esse trabalho de Memórias de Guimarães e sua gente.

sonia pedrosa cury
3 anos atrás

Deve ter sido uma bela experiência conhecer o cenário de "Grande Sertão: Veredas". Fiquei muito curiosa, com muita vontade de conhecer essa cidade. Preciso providenciar uma viagem a Minas, pra ver essas preciosidades de perto – se bem que seu texto já me transportou pra lá. Parabéns, Sylvinha!

Luana Lopo
3 anos atrás

Que lindo texto sobre Cordisburgo!!! Grande Sertão: Veredas é um livro incrível, que experiência fantástica!!

normeide neto de carvalho
normeide neto de carvalho
3 anos atrás

Seu texto está incrível, como sempre. Não sabia nada sobre Cordisburgo, a cidade de Guimarães Rosa e do Grande Sertão Veredas. Quanta história e boas informações. Obrigada por isso.

MOISESMBC
3 anos atrás

Obrigado por compartilhar este conteúdo sobre Cordisburgo e divulgar nossa querida Minas Gerais. Aqui para nós essa cidade não é tão considerada para viajar, mas adoramos ela, pois sabemos da importância histórica e do gentílico mais famoso de lá. Abraços