Atualizado em 03/10/2023 por Sylvia Leite
Todos os dias, ao amanhecer, milhares de mulheres do Sul da Índia têm um compromisso inadiável: desenhar uma figura geométrica, ou Kolam, na soleira casa, para que a deusa Lakshmi, da prosperidade, proteja os moradores e seus visitantes. Com o passar das horas, o vento, a chuva e o vai-e-vem das pessoas apagam quase tudo, mas no dia seguinte outros desenhos são traçados, compondo uma nova oração visual.
O Kolam – nome dado aos diagramas em sua região de origem – é tradicionalmente desenhado com pó de arroz sobre a terra batida com a qual se mistura esterco de vaca. Antes de começar o trabalho, o terreno é varrido, alisado e umedecido para aumentar a fixação. A maioria dos desenhos é feita com linhas brancas, mas em algumas ocasiões usa-se também um pó de terracota para tornar os traçados bicolores.
Cada material tem sua função ou significado. A terra, que serve de suporte aos diagramas, representa a si mesma, como mãe e nutridora. Já a proteção, em seu sentido material, seria fornecida pelo esterco de vaca – animal sagrado dos hindus – que segundo uma crença local tem funções antissépticas. O pó de arroz, além de simbolizar o alimento humano, é capaz de atrair formigas, pássaros e outros pequenos animais, proporcionando uma convivência harmoniosa logo na entrada da casa.
Nas aldeias menores, mantém-se o suporte de terra com esterco e pó de arroz puro, já nas cidades ou localidades maiores há quem desenhe sobre pisos de quartzo e até de cimento, com o pó de arroz misturado a pó de pedra branca, uma forma de ganhar praticidade e adaptar a tradição aos novos tempos. Mas seja na forma autêntica ou na modernizada, as mulheres costumam aderir em massa a essa tradição, não importando qual a sua idade, classe social ou nível de instrução, especialmente no estado de Tâmil Nadu, o local de origem do ritual, que fica mais a Sudeste.
Cultura milenar
Os habitantes de Tâmil Nadu são denominados tâmeis. Eles têm origem dravídica e foram provavelmente os primeiros a habitar a Índia de forma contínua, há cerca de 2.500 anos. Nesse estado, o Kolam é tratado como um importante elemento na educação das meninas, e deve ser repassado oralmente de geração a geração. Quem assume a responsabilidade da transmissão são as mulheres mais velhas da família que ensinam às mais novas tudo o que é preciso saber para executar os desenhos: desde a variedade de formas e as ocasiões em que cada uma delas pode ser usada, até o passo a passo de como traçá-las. Mas antes disso, as meninas são treinadas para desenvolver destreza, disciplina mental e capacidade de concentração.
Os Kolams são compostos por curvas riscadas ao redor de pontos, formando uma espécie de renda, que não se sabe onde começa nem onde termina. Há também um segundo tipo que une os pontos, ao invés de contorná-los. Cada um deles possui seus próprios segredos e significados, mas uma regra é comum a todos: as linhas devem descrever ciclos fechados porque, segundo a crença local, isso impede que os maus espíritos tenham acesso ao interior das formas, da casa e das pessoas que ali transitam. Os ciclos simbolizam, ainda, a trajetória da vida que repete infinitamente as etapas e nascimento, crescimento e morte. Os Kolams podem ser riscados não apenas nas soleiras, mas também em pátios e altares.
Em várias partes da Ásia é possível encontrar traçados geométricos comparáveis ao Kolam, mas que se diferenciam tanto pelas formas e cores como pelos materiais, significados e procedimentos, além de serem conhecidos por nomes variados como Rangole, Aripan, Mugu e Alpana. Como houve emigração de tâmeis para várias partes da Índia e também para outros países, como o Sri Lanka, é possível que essas práticas tenham uma origem comum.
Kolam: da tradição à informática
Tâmil Nadu abriga harmoniosamente realidades que poderiam ser consideradas contraditórias. Por uma lado, conserva praticamente intacta a cultura milenar de seus ancestrais, incluindo o idioma Tâmil que é o mais falado no local. Por outro, é um dos estados mais industrializados da Índia e tem como prioridade o desenvolvimento da indústria de tecnologia da informação.
Com o Kolam, também ocorre uma espécie de polaridade. Elementos matemáticos presentes em sua estrutura, como simetria, repetição de motivos e formação de redes, conseguem servir simultaneamente a dois propósitos aparentemente opostos: do ponto de vista da tradição, simbolizam proporções ou modelos cósmicos, usados para criar harmonia, equilíbrio, prosperidade, e outros benefícios, baseados em conceitos mágicos, filosóficos ou religiosos. Quando olhadas por estudiosos de informática, como a equipe de Gift Siromoney, do Colégio Cristão de Madras, em Tâmil Nadu, constituem linguagens gráficas e têm contribuído para a relização de trabalhos nas complexas áreas dos algoritmos e das gramáticas de redes.1
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, outras matérias sobre a Índia: Goa, Raj Ghat, Gurudwara Bangla Sahib, Tilonia, Taj Mahal, Jantar Mantar
Kolam – Tamil Nadu – Índia – Ásia
Fotos
- (1,2 e 3) Sylvia Leite
- (4) Logga Wigler/Pixabay
- (5) Marisa Portela
- (6) Foto de passo a passo
Maravilhoso Sylvia! Obrigada por mais uma viagem inusitada!
Bjs, Laura
Impressionante esse conhecimento milenar e sua conexão com as ferramentas atuais da informática. |Parabéns, Sylvia, beijos
Obrigada, Vi. Esse assunto é mesmo fascinante. Compartilhei lá na nossa página dos padrões geométricos por que sei que as pessoas vão gostar.
Obrigada, Laura! Todo quinta tem postagem nova, Volte sempre. beijos
Valeu, Valtinho, beijo.
Parabéns Sylvia
Seu trabalho está impecável
Pablo
Obrigada, Pablo. Beijos
Que riquissima e bela tradição o Kolam. Temos falado tanto no Brasil sobre o Combate à violencia. Precisamos aprender com a India e sua cultura milenar. Desde criança as meninas aprendem com o Kolam a terem disciplina mental e a se harmonizarem com a natureza. Esses sao dois grandes pilares para a Paz.
Augusta Leite Campos
É verdade, Gusta, os costumes dessas sociedades tradicionais sempre têm uma consequência prática muito positiva, além de serem lúdicos e lindos. Já pensou que delícia ter esses desenhos na entrada de casa todos os dias? Não tem depressão que sobreviva.
Bem interessante, lugar de meninas, mulheres, habilidosas e inteligentes. Grande sabedoria. Gostei do comentário sobre a internet. Bem colocado. Parabéns, você é uma mulher como elas, cada dia procura nos passar conhecimentos maravilhosos.
Obrigada, Maria Helena. Bom saber que voltou a acompanhar o blog. Gosto muito dos seus comentários.
Impressionada com seu post sobre Kolam, eu, na minha ignorância, não conhecida nada do assunto. Muito bom saber mais sobre culturas tão ricas e sábias. Obrigada por trazer esse tema e torná-lo mais conhecido.
Eu que agradeço. Pela leitura e pelo comentário. Pena que não deixou seu nome.Da próxima vez não esqueça de se identificar, ok?
A Índia é um país fascinante! Adorei ler sobre Kolam. Não conhecia essa forma de oração visual! Muito interessante
Pois é. As diferenças culturais são mesmo fascinantes. Por isso é tão bom viajar.
Que texto interessante! Sou tatuadora, ando estudando sobre a tatuagem no sul da Índia e acabei parando aqui, obrigada por compartilhar!
Pena que não deixou seu nome. Adorei saber como você encontrou a matéria e o blog. Se puder, compartilhe com seus amigos.
Você sempre trazendo aspectos ricos e curiosos de outras culturas. Adorei saber sobre as kolams e achei interessantíssimo o fato delas estarem sendo estudadas pela informática.
É interessante mesmo e muito bonito. Tive a oportunidade de assistir algumas mulheres fazendo os desenhos. Dá vontade de fazer também.
Adorei ler sobre Kolam não sabia nada sobre o assunto. Você sempre arrasa nas informações, saiop daqui um pouco mais culta
Legal saber que gosta e encontra tempo para ler. Volte sempre. Toda semana tem novidade.
Que interessante, Sylvinha. Adoro essas tradições passadas de mãe para filha, século após século… nossa… incrível… lindo demais.
É lindo mesmo, tanto o ritual como os desenhos. Na pousada que eu fiquei, as mulheres faziam todo dia. Mas isso é pra encantar os turistas, né ? bonito mesmo é a dona da casa fazendo em sua própria soleira rsrsr
Muito interessante saber mais sobre os Kolams. Vi muitos desenhos geométricos nas soleiras das casas na Índia, mas não sei se eram efetivamente Kolams se tinham outros nomes.
Provavelmente são Kolans. Os desenhos variam conforme a região.
Que interessante! Não conhecia o Kolam. Estou viajando pelo Norte de Índia e por aqui nunca vi (ou se vi, foi no meio de todo o caos indiano e eu não reparei). Quando for ao Sul vou prestar atenção 🙂
Eu também não vi Kolam no Norte da Índia. Só vi no Sul. Mas não custa procurar e perguntar. Pode ter sido levada para alguma cidade ou bairro por famílias do Sul.