Kolam: uma oração visual estudada pela Informática

Tempo de Leitura: 4 minutos

Atualizado em 03/10/2023 por Sylvia Leite

Mulher desenha kolam na soleira da porta - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIATodos os dias, ao amanhecer, milhares de mulheres do Sul da Índia têm um compromisso inadiável: desenhar uma figura geométrica, ou Kolam, na soleira casa, para que a deusa Lakshmi, da prosperidade, proteja os moradores e seus visitantes. Com o passar das horas, o vento, a chuva e o vai-e-vem das pessoas apagam quase tudo, mas no dia seguinte outros desenhos são traçados, compondo uma nova oração visual.

O Kolam – nome dado aos diagramas em sua região de origem – é tradicionalmente desenhado com pó de arroz sobre a terra batida com a qual se mistura esterco de vaca. Antes de começar o trabalho, o terreno é varrido, alisado e umedecido para aumentar a fixação. A maioria dos desenhos é feita com Mulher desenha kolam com pó de arroz - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAlinhas brancas, mas em algumas ocasiões usa-se também um pó de terracota para tornar os traçados bicolores.

Cada material tem sua função ou significado. A terra, que serve de suporte aos diagramas, representa a si mesma, como mãe e nutridora. Já a proteção, em seu sentido material, seria fornecida pelo esterco de vaca – animal sagrado dos hindus – que segundo uma crença local tem funções antissépticas. O pó de arroz, além de simbolizar o alimento humano, é capaz de atrair formigas, pássaros e outros pequenos animais, proporcionando uma convivência harmoniosa logo na entrada da casa.

Nas aldeias menores, mantém-se o suporte de terra com esterco e pó de arroz puro, já nas cidades ou localidadesDesenho em pátio de escola - Foto Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA maiores há quem desenhe sobre pisos de quartzo e até de cimento, com o pó de arroz misturado a pó de pedra branca, uma forma de ganhar praticidade e adaptar a tradição aos novos tempos. Mas seja na forma autêntica ou na modernizada, as mulheres costumam aderir em massa a essa tradição, não importando qual a sua idade, classe social ou nível de instrução, especialmente no estado de Tâmil Nadu, o local de origem do ritual, que fica mais a Sudeste.

Cultura milenar

Os habitantes de Tâmil Nadu são denominados tâmeis. Eles têm origem dravídica e foram provavelmente os primeiros a habitar a Índia de forma contínua, há cerca de 2.500 anos. Nesse estado, o Kolam é tratado como um Menina aprende a fazer Kolam - Foto Logga Wigler em Pixabay - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAimportante elemento na educação das meninas, e deve ser repassado oralmente de geração a geração. Quem assume a responsabilidade da transmissão são as mulheres mais velhas da família que ensinam às mais novas tudo o que é preciso saber para executar os desenhos: desde a variedade de formas e as ocasiões em que cada uma delas pode ser usada, até o passo a passo de como traçá-las. Mas antes disso, as meninas são treinadas para desenvolver destreza, disciplina mental e capacidade de concentração.

Os Kolams são compostos por curvas riscadas ao redor de pontos, formando uma espécie de renda, que não se sabe onde começa nem onde termina. Há também um segundo tipoO desenho em um altar ao pé da árvore - Foto Marisa Portela - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA que une os pontos, ao invés de contorná-los. Cada um deles possui seus próprios segredos e significados, mas uma regra é comum a todos: as linhas devem descrever ciclos fechados porque, segundo a crença local, isso impede que os maus espíritos tenham acesso ao interior das formas, da casa e das pessoas que ali transitam. Os ciclos simbolizam, ainda, a trajetória da vida que repete infinitamente as etapas e nascimento, crescimento e morte. Os Kolams podem ser riscados não apenas nas soleiras, mas também em pátios e altares.

Em várias partes da Ásia é possível encontrar traçados geométricos comparáveis ao Kolam, mas que se diferenciam tanto pelas formas e cores como pelos materiais, significados e procedimentos, além de serem conhecidos por nomes variados como Rangole, Aripan, Mugu e Alpana. Como houve emigração de tâmeis para várias partes da Índia e também para outros países, como o Sri Lanka, é possível que essas práticas tenham uma origem comum.

Kolam: da tradição à informática

Passos para desenhar um kolam - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

Tâmil Nadu abriga harmoniosamente realidades que poderiam ser consideradas contraditórias. Por uma lado, conserva praticamente intacta a cultura milenar de seus ancestrais, incluindo o idioma Tâmil que é o mais falado no local. Por outro, é um dos estados mais industrializados da Índia e tem como prioridade o desenvolvimento da indústria de tecnologia da informação.

Com o Kolam, também ocorre uma espécie de polaridade. Elementos matemáticos presentes em sua estrutura, como simetria, repetição de motivos e formação de redes, conseguem servir simultaneamente a dois propósitos aparentemente opostos: do ponto de vista da tradição, simbolizam proporções ou modelos cósmicos, usados para criar harmonia, equilíbrio, prosperidade, e outros benefícios, baseados em conceitos mágicos, filosóficos ou religiosos. Quando olhadas por estudiosos de informática, como a equipe de Gift Siromoney, do Colégio Cristão de Madras, em Tâmil Nadu, constituem linguagens gráficas e têm contribuído para a relização de trabalhos nas complexas áreas dos algoritmos e das gramáticas de redes.1

Notas

Kolam – Tamil Nadu – Índia – Ásia

Texto

Fotos

  • (1,2 e 3) Sylvia Leite
  • (4) Logga Wigler/Pixabay
  • (5) Marisa Portela
  • (6) Foto de passo a passo
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Anônimo
Anônimo
5 anos atrás

Maravilhoso Sylvia! Obrigada por mais uma viagem inusitada!
Bjs, Laura

Virginia Finzetto
5 anos atrás

Impressionante esse conhecimento milenar e sua conexão com as ferramentas atuais da informática. |Parabéns, Sylvia, beijos

Anônimo
Anônimo
5 anos atrás

Parabéns Sylvia
Seu trabalho está impecável
Pablo

Anônimo
Anônimo
5 anos atrás

Que riquissima e bela tradição o Kolam. Temos falado tanto no Brasil sobre o Combate à violencia. Precisamos aprender com a India e sua cultura milenar. Desde criança as meninas aprendem com o Kolam a terem disciplina mental e a se harmonizarem com a natureza. Esses sao dois grandes pilares para a Paz.
Augusta Leite Campos

Maria Helena
5 anos atrás

Bem interessante, lugar de meninas, mulheres, habilidosas e inteligentes. Grande sabedoria. Gostei do comentário sobre a internet. Bem colocado. Parabéns, você é uma mulher como elas, cada dia procura nos passar conhecimentos maravilhosos.

Unknown
3 anos atrás

Impressionada com seu post sobre Kolam, eu, na minha ignorância, não conhecida nada do assunto. Muito bom saber mais sobre culturas tão ricas e sábias. Obrigada por trazer esse tema e torná-lo mais conhecido.

Angela Beatriz Camara Martins
3 anos atrás

A Índia é um país fascinante! Adorei ler sobre Kolam. Não conhecia essa forma de oração visual! Muito interessante

Unknown
3 anos atrás

Que texto interessante! Sou tatuadora, ando estudando sobre a tatuagem no sul da Índia e acabei parando aqui, obrigada por compartilhar!

Sabrina Albuquerque de Araújo Costa
Sabrina Albuquerque de Araújo Costa
2 anos atrás

Você sempre trazendo aspectos ricos e curiosos de outras culturas. Adorei saber sobre as kolams e achei interessantíssimo o fato delas estarem sendo estudadas pela informática.

hebe
hebe
2 anos atrás

Adorei ler sobre Kolam não sabia nada sobre o assunto. Você sempre arrasa nas informações, saiop daqui um pouco mais culta

Sonia Pedrosa
1 ano atrás

Que interessante, Sylvinha. Adoro essas tradições passadas de mãe para filha, século após século… nossa… incrível… lindo demais.

ALEXANDRA MORCOS
ALEXANDRA MORCOS
1 ano atrás

Muito interessante saber mais sobre os Kolams. Vi muitos desenhos geométricos nas soleiras das casas na Índia, mas não sei se eram efetivamente Kolams se tinham outros nomes.

Marcella
Marcella
1 ano atrás

Que interessante! Não conhecia o Kolam. Estou viajando pelo Norte de Índia e por aqui nunca vi (ou se vi, foi no meio de todo o caos indiano e eu não reparei). Quando for ao Sul vou prestar atenção 🙂