Atualizado em 02/05/2024 por Sylvia Leite
Muita gente já ouviu falar em Mangue Seco, na Bahia, e conhece sua fama de lugar paradisíaco, mas quem nunca foi até lá dificilmente imagina o quanto essa pequena vila de pescadores ainda consegue manter um ritmo próprio, apesar das mudanças provocadas pelo turismo.
Mangue Seco tornou-se famosa quando a rede Globo resolveu transformar em novela o romance Tieta do Agreste, de Jorge Amado, inspirado em suas dunas. Depois disso, muita coisa mudou. Vem gente de toda parte, foi criado o passeio de bugre pelas praias e, recentemente, a vila ganhou até uma orla com calçadão. Mas, graças à dificuldade de acesso, sua estrutura continua praticamente intacta: chão de areia, ruas sem nome – só com apelidos, casas sem número, árvores e arbustos no meio da passagem, moradias singelas com redes e cadeiras na varanda. E, o principal: nenhum carro, porque os bugres circulam apenas pelas dunas.
A vila fica em frente ao Rio Real – que separa a Bahia de Sergipe – e o Oceano Atlântico passa do seu lado direito. Oficialmente, ou melhor, geograficamente, pertence à Bahia, mas na prática é mais ligada a Sergipe – entre outras razões por estar mais próxima de Aracaju do que de Salvador e por ter sido, ao longo de sua história, mais frequentada por sergipanos do que por baianos. Soma-se a isso o fato do acesso à vila se dar, preferencialmente, pelo município sergipano de Estância.
Para chegar a Mangue Seco por Sergipe, basta atravessar o Rio Real a partir do Porto do Mato, localizado na Praia do Saco. A travessia é feita em pequenas lanchas e dura menos de meia hora. Já o acesso pela Bahia é feito de carro a partir de Jandaíra, mas a partir de certo ponto a estrada acaba e é preciso seguir pela areia da praia, o que só é recomendável fazer se o veículo tiver tração nas quatro rodas e observando a tabela das marés.
Mangue Seco: a vila nascida de um naufrágio
Conta-se que a vila nasceu em 1549, quando jesuítas – não se sabe exatamente quantos – chegaram ao local ao salvarem-se de um naufrágio.
Há poucos detalhes sobre a fundação e os primeiros tempos da vila, mas sabe-se que foi batizada pelos padres com o nome de Santa Cruz da Bela Vista e que, por sua localização estratégica, margeando rio e mar, acabou tendo uma participação importante no comércio da região, baseado especialmente no coco em seus derivados.
Mas o avanço da maré, com sua instabilidade comum nos encontros entre rios e mares, fez desaparecer, na década de 1930, uma avenida inteira onde estavam localizados os armazéns e algumas mansões de comerciantes. A partir daí a vila teria perdido sua importância comercial e se transformado, aos poucos, em moradia de pescadores e local de veraneio.
O poeta sergipano Chico Pires, que nasceu e viveu seus primeiros anos em Estância, lembra com nostalgia das férias de verão que passava em Mangue Seco na década de 1960. Para chegar até a vila era preciso atravessar o rio com duas canoas: uma para as pessoas e outra para a bagagem. Ao desembarcar, ainda tinham que percorrer 6 km a cavalo.
Não havia luz elétrica nem água encanada. Os alimentos eram conservados em uma pequena geladeira alimentada a gás. E todo mundo usava água de cacimba: alguns tinham tanques particulares no quintal de casa, mas a maioria pegava água na praça, em um poço perto da igreja.
A pedagoga Ana Soares, também sergipana e filha de um dos fazendeiros de coco da época, conta como era a brincadeira da criançada: primeiro escorregar nas dunas – que eram chamadas de morros de areia – e depois tomar refrigerante quente, muitas vezes com a tampa enferrujada, porque a bodega – nome usado para bar – não tinha geladeira e nem movimento fora das férias. Outra diversão era colher caju. O mais doce, segundo Ana, era o de um enorme cajueiro que ficava dentro do cemitério.
A fama no rastro de Tieta
A experiência de Jorge Amado em Mangue Seco foi na década de 1930. Ele era baiano, mas conheceu as dunas da vila a partir de Estância, para onde se mudou temporariamente – em companhia da primeira mulher Matilde Garcia Rosa e da Filha Eulália Dalila. Estava fugindo de perseguições constantes por parte da polícia de Getúlio Vargas, por sua posição política assumidamente comunista.
A cidade de exílio foi escolhida por razões familiares. Além de seu pai ter nascido em Estância, ainda havia alguns parentes na cidade. Talvez por isso, Jorge Amado teve uma rápida adaptação e, segundo antigos moradores, movimentou a cidade com eventos culturais.
Mangue Seco e outras praias da região, como Pontal, Terra Caída e Saco do Rio Real, o inspiraram na criação de cenários e personagens de muitas de suas obras, mas foi com Tieta do Agreste que Mangue Seco ficou eternizada.
O livro foi lançado em 1977 e, já nessa época, atraiu alguma atenção para a vila. Em 1989, o interesse por Mangue Seco explodiu depois que a vila virou cenário de uma telenovela da Globo inspirada no livro e estrelada por Betty Faria e Cláudia Ohana (como Tieta jovem). Em 1996, o lugar e a história de Tieta chegaram ao cinema pelas mãos de Cacá Diegues, com Sônia Braga no papel principal.
O Recanto de Dona Sula
Entre as mudanças provocadas pela fama está o Recanto de Dona Sula que passou de casa de veraneio a uma mistura de lanchonete e ponto de venda de guloseimas e artesanato locais. Dona Sula Amado era prima do escritor e, mesmo antes de sua chegada a Estância, já havia se consagrado como a professora mais importante da cidade.
Depois de aposentada, ela resolveu mudar-se para Mangue Seco e, da janela de sua casa, vendia aos veranistas e outros moradores seus doces de araçá e licores de jenipapo. Quando o turismo começou, a produção foi se diversificando: primeiro aumentou a variedade de sabores, depois a família decidiu transformar a casa em uma lojinha aberta ao público. Hoje, o Recanto de Dona Sula tem placa na porta e mesinha do lado de fora. É o ponto mais característico da cidade, indispensável a qualquer visita.
Dona Sula já faleceu e o recanto é hoje administrado por seus descendentes. Mangue Seco agora tem luz elétrica e água encanada. Tem até shopping – com estilo próprio, mas tem. As crianças não tomam mais refrigerante quente e a brincadeira no morro de areia ganhou outro nome: ‘esqui bunda nas dunas’. Mas tudo que ficou para trás ainda pode ser vislumbrado no chão de areia da vila, nas canoas dos pescadores, nas trilhas de areia e nas praias do oceano que continuam praticamente desertas.1
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, sobre a Casa do Rio Vermelho, de Jorge Amado, e outras matérias que nos remetem à vida e à obra de escritores: Cordisburgo / Ilumiara Jaúna / Cartagena / Havana / Dublin
Mangue Seco/ Santa Cruz da Bela Vista – Jandaíra – Bahia – Brasil
Fotos
- ( 1, 2, 3 ) Sylvia Leite
- (4) Travessia na década de 1960 - Acervo da família Pires, cedida por Chico Pires
- (5 capa do livro e cartaz) Divulgação
Referências
- Livro Tieta do Agreste
- Filme Tieta do Agreste
Silvia, vc desperta tanto interesse em conhecer esses lugares que vc posta!Esse é um deles!
Fiquei maravilhada com a narrativa histórica e paisagística do lugar. Um paraíso! Não é a toa que encantou tanto Jorge Amado.
Parabéns Sylvia
Conheci Mangue Seco em 1980, antes da novela Tieta do Agreste. Um lugar mágico, ainda sem energia elétrica, pousadas ou restaurantes, com gente simples e muito hospitaleira.
Retornei depois da novela, quando o turismo já estava à toda, e me surpreendi com a rapidez das mudanças, muitas pousadas e restaurantes.
Mas a magia de Mangue Seco persiste.
Parabéns por mais um registro perfeito, Sylvinha!
Abraços
Val Cantanhede
Registro maravilhoso, Silvinha!!! Mais uma vez, parabéns!!!!! Beijo!
Sylvia
Seu trabalho é grandioso
Parabéns e muita energia e forças, para continuar a divulgar o que é bom.
Certamente vou guardar em arquivo, para mostrar a meus netos.
Abraços
Ronald Donald – Aracaju/SE
Muito obrigada pelo comentário, Ronald. Fico feliz que queira mostrar a seus netos. Toda quinta tem matéria nova no blog. Acompanhe!Abraços
Obrigada, Soninha! beijos
Obrigada, Val. Bom te ver por aqui, abraços!
Obrigada pelo comentário. Pena que não deixou seu nome. Da p´róxima vez não esqueça, ok? Abraços
Obrigada pelo comentário, Ana, e também por ser leitora assídua como parece que é. Abraços.
Obrigada Sylvia, por mais está visgem
Uma delícia mesmo é ler você. Põe uma intensidade et mistério em cousas bem simples.
Obrigado moça.
.
Eu que agradeço. Abraço!
Eu que agradeço pelo comentário. Faltou dizer seu nome. Abraço!
Já fui lá umas 4x. Adoro. Que bom que agora sei a história
Legal! Obrigada pelo comentário. Da próxima vez deixe seu nome, ok? Abraço!
Estive lá em 2018, fiquei maravilhada com o local. Desde criança quando assistia a novela, tinha vontade de conhecer e escorregar nas dunas.Vale a pena conhecer.Lugar lindo!
Amei conhecer Mangue Seco, é um espetáculo da natureza, espero um dia poder retornar, é lindo demais
É lindo mesmo. Pena que você não se identificou. Gstaria de saber seu nome.
Estive lá em janeiro de 2018 e superou as expectativas. Lugar mágico. Levei meus filhos, que são crianças, e adoram também. Vontade de não ir embora. Parabéns pelo site.
Aquele chão de areia, aquele jeito de antigamente, é tudo muito bom. Obrgada pelo comentário.
Conheci Mangue Seco quando tinha vinte e poucos anos. É um lugar dede natureza exuberante e ainda não era famoso. Adorei saber todos os detalhes da história do lugar e quero muito voltar a visitar e saber como estão as coisas por lá atualmente.
As fotos da matéria são recentes. Devem ter no máximo um ano e tudo continua desse jeito, com chão de areia e muita simplicidade dentro da vila. Só a orla é que mudou muito nos utlimos anos.
Obrigada Caio e Marisa. As dunas de Mangue Seco realmente fazem a gente esquecer de tudo rsrsr. Voltem sempre. Toda quinta tem matéria nova aqui no blog.
Lugar maravilhoso, só não entendi a parte que dona Sula morreu, estive lá e a senhora que lá vivia se chamava Sula e era prima de Jorge Amado.
Você deve ter conhecido a filha dela.
Colocando de lado o lado poeta, nostalgico que idilico do lugar e do livro do Jorge Amado, hoje a realidade é outra.
Fui a Mangue Seco recentemente e o que encontrei é lamentavel, um bando de carros pelas ruas, especificamente pickups e Jeeps, e se não bastasse, tranformaram as dunas em parque de diversão, destruindo tudo como se fossem porcos na lama, coisa tipica desse tipo de gente “offroad” nome bonito pra designar um bando de gente mediocre sem educacao. Lamentavelmente o lugar se tornou insuportavel, a noite o som alto das pickups torna o lugar uma favela. Controle ambiente e fiscalisacão nao existe.
Portanto, se quisaer perder seu tempo e dinheiro, va pra Mangue Seco, um verdadeiro programa de indio.