Atualizado em 12/10/2024 por Sylvia Leite
Todos os anos, no mês de julho, cerca de setenta caminhantes peregrinam pelo noroeste de Minas Gerais, passando por lugares que, de uma forma ou de outra, estão relacionados à obra de Guimarães Rosa. É o “Caminho do Sertão”. O roteiro começa em Sagarana – distrito do município de Arinos, batizado com o nome do primeiro livro em prosa do escritor – e termina no município de Chapada Gaúcha, dentro do Parque do Grande Sertão: Veredas – chamado assim em homenagem ao seu único romance.
São 192 km sertão adentro, cruzando veredas e acampando em terrenos e quintais. Ao longo da caminhada, os andarilhos conhecem a geografia da região, inserida no bioma do Cerrado, testemunham sua degradação, provocada em grande parte pela monocultura de soja e descobrem as alegrias e as tristezas da história de cada lugar. Tudo intensamente vivenciado durante o percurso que inclui até 30 km de caminhada por dia, com paradas para lanches e almoço.
Em cada parada, podem observar traços da cultura e da economia da região. Caso da coleta e aproveitamento do Baru – uma castanha nativa do Cerrado – ou das casas de farinha, onde presenciam o processo de transformação da mandioca não apenas na própria farinha, mas em diversos outros subprodutos, como o beiju e a tapioca. De quebra, entram em contato com o universo roseano.
As referências a Guimarães Rosa estão em toda a trajetória do Caminho do Sertão: em cartazes grafados com trechos das obras do escritor, nas apresentações de arte cênica que ocorrem a cada parada, nas esculturas que a produção do projeto coloca ao longo do caminho e nas referências naturais como veredas, pássaros e espécies vegetais descritos nos livros. Isso sem falar os “Uaicais” – versão mineira dos Haicais japoneses..
Em quase todas as paradas noturnas, os organizadores reúnem-se com os caminhantes para transmitir informações sobre o trajeto e fazer leituras de obras de Rosa. Os encontros, na maioria dos lugares, ocorrem em domos geodésicos – estruturas leves, resistentes e de baixo custo, que têm origem na Geometria Sagrada.1
Mais que uma viagem pelas entranhas de Minas Gerais e um mergulho na literatura de Rosa – o que já seria motivo sufciente para sua existência – o Caminho do Sertão é um projeto que promove atividades sustentáveis nas comunidades da rota do camiho , como informa seu idealizador, o professor, ex-deputado e ex-prefeito de Paracatu, Almir Paraca. A visita às comunidades movimenta a economia local pois tanto as áreas de camping improvisado como as refeições são oferecidas por moradores e devidamente remuneradas. Além disso, o projeto dá visibilidade à luta de entidades – tanto do setor público como do terceiro setor-, pela melhoria das condições de vida das comunidades da região pela preservação ambiental da região.
Sagarana
O distrito de Sagarana é o ponto de encontro e o local de partida da caravana. Os preparativos começam de véspera, com apresentação dos participantes e entrega dos cajados.
Em 2019, cada caminhante ganhou também uma caderneta de notas com capa de tecido bordado e uma aliança feita com um coquinho chamado Tucum.
O adorno foi usado por escravizados em substituição a alianças de metal e por indígenas para selar amizades. No caso dos caminhantes, marca o compromisso com o sertão, com a luta social e com a travessia – externa e interna – proposta por Guimarães Rosa.2
Antes da partida, os caminhantes visitam o parque de esculturas do povoado que mistura harmonicamente imagens de Guimarães Rosa, do educador Paulo Freire e da a fiandeira Gersina Maria – líder das artesãs locais. O parque inclui, ainda, dois conjuntos escultóricos religiosas: um presépio e uma representação da cena da pregação de São Francisco aos animais, com espécies nativas do cerrado como a onça parda, o lobo guará, o tamanduá e a arara, entre outros.
Logo no primeiro dia, surge uma revelação: nessa jornada tudo é farto e intenso, menos as horas de sono. Para que todos – inclusive os mais vagarosos – consigam chegar ao ponto de pouso seguinte, e armar suas barracas antes do anoitecer, é preciso estar de pé às 4h30 da madrugada porque antes da partida tem conversa e apresentações.
E como ninguém é de ferro, depois da caminhada e da montagem do camping, tem jantar com bebida e apresentações que se estendem noite adentro. Mas para sorte dos caminhantes, não é preciso colocar despertador. A hora de pular fora das barracas é lembrada por uma cantiga, do violeiro e compositor Rubinho do Vale, suavemente entoada pelas irmãs Diana e Daiana Campos – que fazem parte da organização do projeto: “Hora de levantar / Hora de se lavar / Hora de despertar para o dia…”
Morrinhos
A primeira parada é no povoado de Morrinhos, ainda no município de Arinos. Para chegar até lá é preciso atravessar o rio Urucuia – descrito por Guimarães Rosa – através do personagem Riobaldo – como o Rio do Amor. Ao pisar em terra firme, os caminhantes são batizados em um ritual preparado pela equipe de produção.
A antiga vila de pescadores é composta apenas por uma rua, uma praça e um enorme silêncio. A igreja parece ser a edificação mais antiga do povoado. Em meio a todo esse sossego, um elemento chama a atenção: uma escultura de concreto que retrata, em tamanho natural, uma das cenas mais marcantes do “Grande Sertão:Veredas”, quando os personagens Riobaldo e Diadorim se conhecem, ainda crianças, e navegam juntos pelo rio De Janeiro.
A história do lugar não está registrada em livros, mas, segundo o historiador Xico Mendes, essa pequena localidade, hoje com apenas 150 habitantes, já foi provavelmente um importante porto que intermediava o comércio entre as minas da região Centro-Oeste e a atividade pastoril do Nordeste.
A partir de meados do século 19, Morrinhos passou a abrigar a sede da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, mas, décadas depois, a paróquia foi transferida para o vizinho município de Buritis.
A transferência teria coincidido com o fim do ciclo do ouro e o início da industrialização do país – época em que Morrinhos perdeu a condição de sede distrital para Barra da Vaca onde havia um porto mais moderno e adaptado à nova realidade.
Saindo de Morrinhos, a caravana passa pelo povoado de Igrejinha e visita um assentamento de Reforma Agrária, onde os caminhantes almoçam antes de seguir viagem.
Fazenda Menino
O pouso seguinte é na Fazenda Menino – um lugar cheio de memórias, muitas delas registradas no livro “A Porta Aberta do Sertão – Histórias da Vó Geralda“, da própria Geralda de Brito Oliveira, em parceria com Renata Ribeiro e Isla Nakano. A fazenda pertenceu ao empresário Max Hermann, que pretendia construir em suas terras, com projeto de Oscar Niemeyer e Roberto Burle Marx, uma cidade autossustentável previamente batizada de Cidade Marina – o nome de sua esposa.3
A Vó Geralda, que na época foi contratada pelo empresário para dar aulas aos filhos de seus funcionários, acabou virando proprietária da sede da fazenda e é ela quem recebe anualmente os participantes do Caminho do Sertão.
Após o jantar, servido na varanda dos fundos da casa, Vó Geralda reúne os caminhantes na sala e ali relata sua história pessoal, suas conversas com Hermann e o pouco que sabe sobre os planos para a cidade que não chegou a existir. Entre os episódios de sua vida pessoal, está a repressão sofrida durante a Ditadura Militar pelo fato de haver trabalhado para um patrão visionário, acusado de comunismo.
A Fazenda Menino também homenageia a obra de Guimarâes Rosa com uma releitura sertaneja da escultura “Love”, do artista ucraniano Alexander Milov. A nova obra, inspirada no famoso moumento, é do artista Waldiney Carvalho e atribui às figuras humanas características de Riobaldo e Diadorim – os personagens já citados, do romance Grande Sertão: Veredas.
Barra da Aldeia
No terceiro dia de caminhada, a distância é bem mais curta e até os mais lentos chegam à Comunidade de Barra da Aldeia com o sol alto. Ainda bem porque nesse lugar de pouso não há chuveiro e o banho tem que ser tomado no rio. Para alguns, o anúncio dessa condição local já soa como promessa de aventura e deleite, mas mesmo os que inicialmente se incomodam com o ‘desconforto’, acabam se divertindo com a situação.
O fato de ter que se ensaboar ao relento não é a única surpresa dessa parada, pois o local do banho é ponto de encontro entre dois rios e isso pode tanto ser visto como experimentado.
De um lado, estão as águas claras, do Ribeirão da Aldeia que banha a vereda de mesmo nome, e do outro ficam as águas barrentas do Ribeirão de Areia. Elas não se misturam porque possuem densidades e temperaturas distintas. Como o encontro se dá bem perto da margem, é possível passar de um pro outro e sentir a diferença.
A segunda novidade se revela somente à noite quando, além de uma apresentação artística que já fazia parte do programa, os caminhantes podem cantar e dançar animados por grupo de músicos da comunidade de Vaca Braba, liderado por um dos sanfoneiros mais conhecidos na região – o Louro da Sanfona.
Serra das Araras
O trajeto até a próxima parada é bastante longo, mas o trecho final compensa qualquer sacrifício. Antes de entrar na cidade, os integrantes do Caminho do Sertão atravessam a Vereda do Feio, uma das mais bonitas da região. Na cidade, uma recepção calorosa, com cartazes de boas vindas aos caminhantes.
Em conversa com moradores, ouvimos histórias sobre uma imagem misteriosa de Santo Antônio que some e reaparece em uma gruta em forma de coração. Talvez por causa de todo esse mistério, a festa de Santo Antônio em Serra das Araras ganhou fama na região, chegando a atrair até 10 mil pessoas e acabou conquistando o título de Patrimônio Imaterial do Município.
É também em Serra das Araras que está enterrado o jagunço Antônio Dó – o homem que inspirou Guimarães Rosa a criar um dos personagens mais curiosos do romance “Grande Sertão: Veredas”. O personagem real Antônio Dó viveu na cidade e sua cova está a poucos quilômetros do trajeto da caminhada.
A antes de chegar ao destino seguinte, os caminhantes fazem uma parada na comunidade quilombola de Morro do fogo. A permanência é curta, mas suficiente para ouvir relatos sobre as tradições e desafios locais, como a Folia de Reis, a procissão de São Sebastião, seguida por carros de boi, e a luta para preservar a região do avanço da monocultura.
São José do Barro Vermelho
O pouso seguinte é o mais recôndito de toda a viagem. Para chegar até São José do Barro Vermelho, é preciso atravessar o Parque Estadual Serra das Araras, onde se localiza grande parte das terras dessa comunidade. Isso, aliás, é motivo de uma questão delicada na região porque o parque foi implantado em uma área onde algumas comunidades quilombolas estavam estabelecidas desde o final do século 19 e até hoje essa questão não está inteiramente equacionada.
O jantar foi servido a céu aberto, em uma espécie de quintal lateral de uma das poucas casas da comunidade, que reúne cerca de 35 famílias. No cardápio, alimentos cultivados pelos próprios moradores, como mandioca e milho.
O nome da comunidade tem inspiração religiosa. São José é o santo de devoção da capela local e de seus moradores. É visto como o protetor dos trabalhadores, por ter sido carpinteiro, e das famílias, por ser o pai de Jesus. Já o Barro Vermelho diz respeito à cor da terra.
No penúltimo dia de viagem, os caminhantes passam pelas comunidades quilombolas de Buraquinhos e Buracos, em uma região de Canions, cujos paredões chegam a 150 metros de altura. A área, conhecida como Vão-dos-buacos ou Vão-do-buraco, como grafa Guimarães Rosa, é citada no Grande Sertão:Veredas como um lugar “onde se forma calor de morte”.., onde se “rói a rampa” – numa referência à dificuldade de escalar suas paredes.
Parque do Grande Sertão: Veredas
O trajeto final leva os caminhantes ao município de Chapada Gaúcha, ou melhor, à praça Euclesio Goobi – onde se realiza o Encontro dos Povos do Grande Sertão: Veredas. 4
A jornada termina no dia seguinte, com uma caminhada de apenas 6 km rumo ao primeiro mirante do Parque do Grande Sertão: Veredas. A despedida é marcada por discursos e apresentações artísticas. Os que dispõem de tempo, permanecem na cidade para, nos dias seguintes, conhecerem o restante do parque.
Os organizadores da caminhada classificam a experiência como um encontro ‘sócioecoliterário’. Já, para os participantes, o evento assume variados significados. De mergulho na Literatura de Guimarães Rosa a trabalho de autoconhecimento. Há, ainda, aqueles que encaram a jornada como uma experiência mística de contato com a essência individual. 5
Notas
- 1 Os organizadores do Caminho do Sertão desenvolveram um projeto próprio de domos geodésicos registrado com o nome de Tecnologia Social Geodésica Sertaneja Multifuncional e certificado pela Fundação Banco do Brasil com o prêmio de Tecnologia Sustentável de 2024
- 2 A aliança de tucum tem ainda outros significados. Para os cristãos, por exemplo, é um símbolo de fé e compromisso, especialmente entre os seguidores da Teologia da Libertação
- 3 Breve teremos matéria, aqui no blog, sobre a Cidade Marina
- 4 Atualmente, o Encontro dos Povos não é mais realizado na praça Euclesio Goobi e o Roteiro do Camiho do Sertão passou por mudanças que podem ser conferidas no site do projeto
- 5 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares ou roteiros relacionados à obra de Guimarães Rosa: Cordisburgo / Sagarana / Morro da Garça / Paracatu / Corinto / Araçaí / Gruta de Maquiné / Morrinhos
Caminho do Sertão – Noroeste de Minas Gerais – Minas Gerais – Brasil – América do Sul
Fotos
- Sylvia Leite
Referências
- Site do Caminho do Sertão
- Livro A Porta Aberta do Sertão, de Vó Geralda, Renata Ribeiro e Isla Nakano
- Reportagem publicada na revista O Cruzeiro
- Reportagem de Talles Lopes no site Midia Ninja
- Site da CNBB
Consultoria
- Almir Paraca
- Diana Campos
- Renata Ribeiro
Que passeio maravilhoso… que viagem!!!! Muito sugestivo!
Maravilhoso mesmo, Soninha. O Caminho do Sertão é uma experiência que recomendo.
Fantástico, Sylvia! Necessário divulgar nossos sertões, que são muitos, como Minas.
Necessário mesmo, Hugo, e o Csminho do Sertso faz isso com muita conoetència.
Muito especial!!!! Grande Ser!! Tão verdade!! ❤️
Sim, o Caminho do Sertão é um projeto muito especial! Vale a pena participar.
Bom saber dos detalhes dessa caminhada tão interessante! Conhecia apenas de informações mais genéricas. E que satisfação ver como estão vivas iniciativas como a desta comunidade e do seu blog, de continuidade de valorização do sertão e da obra do Rosa.