Atualizado em 02/05/2024 por Sylvia Leite
Quem compra uma peça da Cerâmica Serra da Capivara em uma loja urbana ou mesmo lá no sertão do Piauí, não imagina o que está por trás de toda aquela beleza. A empresa é fruto do trabalho socioambiental de uma equipe liderada pela arqueóloga Niéde Guidon – que atua há cerca de cinco décadas na região – e tem regras muito claras desde a sua fundação: emprega somente moradores do entorno do Parque Nacional da Serra da Capivara1, além de não poder usar matérias primas nem adotar processos que degradem a natureza.
Embora a empresa tenha proprietários e fins lucrativos, seu principal objetivo é gerar renda para a comunidade local, com um produto que divulga as pinturas rupestres da Serra da Capivara e ajuda a impulsionar o turismo – ainda tímido na região. Somente a oficina de cerâmica emprega hoje 46 pessoas, mas há ainda os pontos de venda e outras atividades que surgiram em decorrência da oficina, como um restaurante e uma pousada, que elevam esse total para 89 funcionários registrados – fora os que fazem serviços eventuais.
Para se ter uma ideia do que isso representa, na comunidade de Barreirinho – que abriga a oficina – onde há 29 casas – e no povoado mais próximo, o Sítio do Mocó, que reúne outras 140 residências, a maioria das famílias tem pelo menos uma pessoa trabalhando para a oficina de Cerâmica Serra da Capivara. E a empresa emprega, ainda, moradores de Coronel José Dias.
Além de empresar e não agredir a Natureza, a Cerâmica Serra da Capivara tem o compromisso de zelar pelo Parque, assumindo a responsabilidade pelos postos, onde mantém suas lojas, e pela limpeza da área, além de outros cuidados.
O surpreendente é que mesmo tendo como prioridade gerar renda para os moradores da região e proteger a natureza, a empresa consegue se manter, fornecendo peças para cerca de 30 lojas – algumas em outras cidades ou estados, outras em pontos locais que fazem venda direta aos turistas. A Cerâmica Serra da Capivara só precisou de socorro financeiro durante a pandemia, quando perdeu seu maior comprador, que fazia aquisições de meio milhão por ano. A ajuda veio dos recursos pessoais de Niéde Guidon e da família dos proprietários, mas logo foi dispensada porque a cerâmica começou a fornecer peças para uma loja online voltou a se equilibrar.
A história da Cerâmica Serra da Capivara
Para chegar ao estágio atual, a Cerâmica Serra da Capivara precisou percorrer um longo caminho. Tudo começou na década de 1970, quando Niéde Guidon passou a frequentar a região, atraída pelas pinturas rupestres.
O dono da casa onde ela se hospedava, Nivaldo Coelho – que era também o seu guia mateiro -, tinha no quintal uma fabriqueta de telhas moldadas na coxa e Niéde percebeu que a argila usada por ele era de ótima qualidade. Além disso, não agredia a natureza porque sua extração era feita em lagoas, pelo processo de desassoreamento, que – diferente das escavações em jazidas – não provoca danos ao meio ambiente.
Nos anos 1990, a cerâmica foi um dos temas escolhidos por Niéde para a formação de jovens locais, realizada em cinco escolas criadas por ela com apoio do governo francês. O critério para a escolha desses conteúdos era a pré-existência de um saber local ou sua adequação a objetivos turísticos. As outras atividades contempladas foram a produção de mel – também preexistente, porém realizada de forma desordenada -, produtos de cera de abelha como velas e repelentes, reciclagem de papel e corte e costura para a produção de camisetas. Tudo com desenhos reproduzidos das pinturas rupestres a fim de divulgar o Parque Nacional da Serra da Capivara.
Cerca de duas décadas depois, Niéde Guidon contratou Shoichi Yamada – um especialista em cerâmica de alta temperatura, de origem japonesa – para pesquisar as argilas da região e encontrar a matéria prima adequada à produção de peças para uso doméstico. A argila escolhida deveria, por um lado, ter elasticidade para facilitar a modelação das peças e, por outro, suportar altas temperaturas. A condição principal é que fosse uma argila de desassoreamento, a fim de não causar danos ambientais.
Ao longo de um ano e oito meses de trabalho, Yamada encontrou 36 tipos de argila na região – nenhuma delas com as duas características. Levou, então, as amostras para São Paulo a fim de fazer uma série de testes e chegou a uma fórmula que reúne dois tipos de argila: um colhido ali mesmo, em Barreirinho, município de Coronel José Dias, e o outro no município de João Costa, a carca de 75 km de distância da oficina. A primeira tem elasticidade e é a mesma utilizada por seu Nivaldo para a produção de telhas. Já a segunda resiste às altas temperaturas e também já era conhecida na região pelos fabricantes caseiros de tijolos.
Definida a fórmula da argila, era preciso descobrir uma maneira de dar cor e impermeabilidade às peças sem recorrer a esmaltes químicos, o que foi feito com adobe, isto é, uma mescla de argila fundente, também encontrada na região, com pigmentos naturais.
Restava, ainda, garantir a formação contínua de ceramistas, porque as escolas fecharam por falta de recursos no início dos anos 2.000. Adotou-se, então, o aprendizado dentro da própria oficina com a equipe inicial. Hoje, há famílias com duas gerações dentro da Cerâmica Serra da Capivara, e os mais jovens já começam a se interessar pelo ofício de ceramista.
Um exemplo disso é a família de Geovany de Sousa Lima, que na foto aparece ensinando ao primo Wamerson Pereira Paes, de apenas 9 anos, como usar o torno. O pai de Geovany, Josenias Parceira Paes Lima, está na cerâmica praticamente desde o início e além dos dois há mais sete familiares na equipe. O menino Wamerson estava apenas fazendo uma visita, mas saiu satisfeito porque, com a ajuda do primo, conseguiu modelar uma caneca. Se esse encanto perdurar, ele poderá ser o décimo integrante da família Paes Lima a integrar-se à empresa.
De cooperativa a empresa privada
Desde 2003, a Cerâmica Serra da Capivara é tocada por Girleide Oliveira – uma pernambucana que deixou um restaurante próprio e uma carreira de administradora em grandes empresas para, a convite de Niéde Guidon, dar suporte à equipe que tentava proteger e divulgar a Serra da Capivara.
Girleide chegou à região para dirigir o Hotel Serra da Capivara – o primeiro construído com fim de atender ao turismo. O hotel, hoje em reforma, sempre pertenceu ao Estado do Piauí, mas na época era administrado pela Fundação Museu do Homem Americano FUNDHAM, criada por Niéde Guidon. E foi a partir do sucesso dessa experiência que Girleide acabou assumindo a cerâmica.
A ideia inicial de Niéde era fazer uma cooperativa, mas por inúmeras razões o formato não deu certo e ela decidiu criar uma empresa com apoio da equipe de pesquisadores. Mas o empreendimento precisava de alguém da área administrativa, e foi aí que Girleide entrou em cena, adquirindo a empresa junto com o irmão Antônio Marcos Oliveira.
Girleide conta que no início colocava as peças em uma kombi e ia vender em outras cidades do Piauí. Com o tempo, conseguiu fazer contratos de fornecimento nesses locais, mas a venda no Brasil ainda era pequena, o que a levou a exportar principalmente para a Itália. Foram apenas cinco anos de exportação porque nesse meio tempo a Cerâmica Serra da Capivara acabou sendo descoberta por grandes lojas nacionais, que passaram a absorver toda a sua produção.
Os frutos sociais do trabalho de Girleide e de toda a equipe de Niéde Guidon – que criou o alicerce socioambiental para o desenvolvimento da empresa e do turismo na região – não podem ser comprovados por números, porque carecem de estatísticas oficiais, mas os envolvidos no projeto não têm dúvida de que as ações de formação dos moradores e geração de renda proporcionou a redução do alcoolismo e da violência doméstica na região.
Já os resultados da empresa podem ser facilmente demonstrados. Girleide conta que quando assumiu seu posto, cerca de duas décadas atrás, a Cerâmica Serra da Capivara tinha apenas quatro funcionários. Hoje, esse número é cerca de 25 vezes maior se levarmos em conta o restaurante e a pousada, surgidos em função da oficina. E a produção, que sequer era contabilizada no início, alcançou uma média de 50 mil peças por ano.
Girleide contabiliza, também, os reflexos de tudo isso – e da divulgação do próprio parque – sobre o Turismo, que até pouco tempo atrás era eventual e hoje gira em torno de 100 pessoas por fim de semana. O número é bem pequeno para um Patrimônio Mundial da Humanidade, mas representa muito para uma região que ainda é pouco conhecida. E essa procura vem crescendo lado a lado com a estrutura local que já conta com algumas pousadas e restaurantes, além de um aeroporto com dois voos semanais – e um terceiro previsto – ligando a cidade de Raimundo Nonato – um dos municípios da região da Serra da Capivara – a Recife e Petrolina.2
Notas
- 1 Breve teremos matéria sobre o Parque Nacional da Serra da Capivara. Aguarde.
- 2 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares especiais da região da Serra da Capivara: Museu do Homem Americano / Museu da Natureza /
Cerâmica Serra da Capivara – Coronel José Dias – Serra da Capivara – Piauí – Brasil América do Sul
Fotos
- Instagram da Cerâmica - Divulgação
- Sylvia Leite
Que lindo!!
Pois é, Íris: linda a história e lindas as peças da Cerâmica Serra da Capivara.
Que texto excelente, Sylvinha!
Esse empreendimento socioambiental da Serra da Capivara merece ser amplamente divulgado.
Abraços
Obrigada, Val. É realmente um trabalho maravilhoso em todos os sentidos, esse da Cerâmica Serra da Capivara.
Maravilhosas e diferentes estas cerâmicas! Muito especial!!!
Verdade, Ude, as peças são lindas e a história também.
Muito legal!!
Legal mesmo, Bárbara. E além desse belo exemplo de compromisso socioambiental, as peças são lindas.
Que exemplo mais lindo o desses empresários. Que muitos outros se inspirem neles e façam mais pessoas felizes!
Sim, uma beleza. A Cerâmica Serra da Capivara é realmente um exemplo.
A oficina de Cerâmica é um importante trabalho de desenvolvimento econômico e social para as comunidades em volta da Serra da Capivara, com criatividade e valorização do patrimônio arqueológico. Além de de preservar o meio ambiente e servir como escola para as próximas gerações. É fruto da genialidade e generosidade de uma cientista como Niede Guidon. Estive lá e adquiri várias peças que podem ser utilizadas em temperaturas elevadas e são lindas. O turista também pode ter acesso ao conhecimento de como o trabalho é realizado e tive esta oportunidade. Sensacional Sylvia a abrangência com que em Lugares de Memória voçê vai nos enriquecendo de histórias e informações desse Patrimõnio da Humanidade que é a Serra da Capivara.
Obrigada, Gusta, pela leitura, pelo comentário e pela precisa descrição que você fez da Cerâmica Serra da Capivara que certamente enriqueceu a minha matéria.
Que linda a história desse empreendimento. Estou sempre aprendendo contigo.
Muito obrigado Sylvinha.
Eu que agradeço, Joaquim. Pela leitura e pelo comentário. A Cerâmica Serra da Capivara tem mesmo uma história linda!
Nossa estou encantada com essas ceramicas da Serra da Capivara, que coisa linda!!!!
A Cerâmca da Serra da Capivara é linda mesmo. E não apenas no sentido estético, o que não é pouco, mas também em sua forma de produção.
Boa noite. Minha compra chegou. Adorei tudo. Trabalho de mestre respeitando e homenageando a natureza. Parabéns.
Olá, Oksana, você fez compra na cerâmica Serra da Capivara?
Que bacana! Vale a pena incentivar o trabalho deles.
Obrigada por compartilhar sua experiência com nossos leitores.